O recente estudo publicado no New England Journal of Medicine “demonstrando” suposta eficácia da anticoagulação plena em paciente com COVID-19 moderado foi tema do nosso podcast da semana passada. Naquele podcast, apresentamos argumentos múltiplos para a conclusão de que a publicação se trata de um “anti-estudo”: o tipo que nos afasta da verdade, desrespeitando a “constituição do conhecimento”. O que discutirei nesse texto não é um dos múltiplos fatores que reduzem a veracidade deste estudo. O objetivo é discutir a interpretação do odds ratio proporcional, uma medida de associação menos intuitiva do que as tradicionais odds ratio, risco relativo ou hazard ratio, e que deixou dúvida em muitos colegas.
A escolha desta medida de associação pelo estudo em questão foi estatisticamente adequada, portanto não estamos diante de um viés de análise de dados. O uso desta medida de associação incrementa o poder estatístico, traz precisão ao estudo, encurtando seus intervalos de confiança, reduzindo erros aleatórios do tipo I e II. Portanto, a discussão do odds ratio proporcional não se trata de avaliação de veracidade. Mas cabe ao consumidor da ciência avaliar também a relevância da conduta, o impacto, o tamanho de efeito. E o aspecto pouco compreensível desta medida dificulta esta tarefa.
Portanto, neste texto mostrarei como interpretar esta medida, mostrando que uma análise pode evidenciar um fenômeno verdadeiro, porém pouco relevante.
Ensaios clínicos são modelos de estudos que acompanham longitudinalmente pacientes inicialmente virgens do desfecho, permitindo o cálculo de risco ou hazard. Portanto, usualmente se utiliza risco relativo ou hazard ratio. No entanto, quando se faz uso de regressão logística tradicional (desfecho dicotômico), a equação matemática nos fornece o odds ratio. No entanto, neste estudo o desfecho primário não é dicotômico, é numérico, representado pelos dias livres de suporte ventilatório ou circulatório. Assim, um paciente poderia ter a pontuação de 0 dias ou um máximo de 21 dias. Caso o paciente morresse, seria a ele atribuído uma pontuação de -1, para caracterizar este como um paciente pior do que aquele que ficou em suporte circulatório todos os primeiros 21 dias, mas sobreviveu.
Originalmente esta é uma variável numérica discreta (pois não tem decimais entre os dias), que passa a ser considerada ordinal no modelo de regressão logística. Portanto, o desfecho é ordinal com 22 posições possíveis (-1 a 21) e não dicotômico (sim ou não). E para este tipo de desfecho ordinal se usa regressão logística ordinal cujo resultado é apresentado em odds ratio proporcional.
Até agora expliquei o porquê do uso deste tipo de odds ratio. Agora vamos discutir como interpretar, o que o odds ratio proporcional de "1.27 (95% IC, 1.03 to 1.58)" apresentado pelo artigo e que indica proteção da terapia de anticoagulação. Lembrando, o odds ratio tradicional é simplesmente a chance (P/1-P) de um evento acontecer no grupo tratamento / chance do evento acontecer no grupo controle. Portanto um valor < 1 significa proteção. Mas nesse caso os autores inverteram, colocaram o tratamento no denominador e o controle no numerador. Portanto, OR = 1,27 significa 27% de aumento de chance de um prognóstico melhor. Se fosse um odds ratio tradicional, indicaria 27% maior chance do de benefício do grupo tratamento. Mas no caso do OR proporcional não é bem assim, pois não há evento dicotômico.
O que a regressão logística faz, em seus “bastidores”, é criar diferentes definições de desfechos dicotômicos baseados em todos os possíveis pontos de corte da variável ordinal que definiria um evento. Por exemplo, se eu usar o ponto de corte de 10 dias livre de oxigênio, pacientes com < 10 dias serão evento e pacientes com 10 dias ou mais serão não evento. Isso é feito com todos os pontos de corte, gerando vários odds ratios para cada definição. O odds ratio proporcional é uma média destes odds ratios tradicionais.
Este procedimento aumenta o poder estatístico em encontrar alguma diferença verdadeira, pois estamos testando de várias formas, do ponto de corte mais baixo ao ponto de corte mais alto. Observe que aqui não existe uma tendência de usar algum ponto de corte que mais favoreça o resultado, se utiliza todos. Por outro lado, o odds ratio pode ser resultado de dicotomizações que criaram diferenças, mas os pacientes ainda podem ser muito parecidos se considerássemos a variável como numérica (comparação do número de dias entre os grupos). Por exemplo, pacientes < 10 podem ser todos 9 dias, e pacientes > 10 podem ser todos 11 dias.
E observe que é exatamente isso que acontece neste estudo. Na figura acima, as cores representam a proporção de pacientes em cada número de dias, veja como as duas barras coloridas são quase idênticas. Do mesmo jeito, o gráfico abaixo mostra a proporção de pessoas em cada posição da variáveis ordinal. Observem como as barras são muito parecidas. Portanto, estamos diante de um número de dias muito parecido entre os dois grupos, embora estatisticamente significante. Na verdade, a tradução para relevância clínica desta achado é um tamanho de efeito muito pequeno, não bem representado pelo odds ratio proporcional.
Se já existe alguma dificuldade em interpretar a relevância clínica do desfecho “dias sem oxigênio”, fica mais difícil intuir a partir do odds ratio proporcional. Portanto, este tipo de desfecho, aliado a este tipo de medida de associação podem ter um valor em prova de conceito, mas dificilmente em demonstrar a relevância de um efeito que justifique uma recomendação médica. Principalmente em se tratando de anticoagulação.
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Ótima postagem, salvarei nos favoritos
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