domingo, 5 de outubro de 2014

O Complexo de Deus



Esta semana estive em Campos de Jordão, para proferir uma Keynote Lecture no International Back Pain Forum (Simplifying the Complex and Complicating the Simple). Este é um evento que reúne cientistas em dor lombar de diversas partes do mundo. Setenta por cento dos participantes eram estrangeiros, predominando Austrália, Reino Unido, Dinamarca, Holanda, de acordo com minha estatística visual. Chamo a atenção desta estatística, pois me pareceu predominar países onde se exerce uma medicina mais racional e socializada. Fico otimista quanto interajo nestes ambientes, onde percebo que os princípios da medicina baseada em evidências de fato fazem parte do consciente ou inconsciente coletivo. 

Na semana anterior, aconteceu em Brasília o Congresso Brasileiro de Cardiologia. Este é um ambiente em que percebo grande avidez por parte dos cardiologistas por discussões reflexivas e baseadas em evidências. Isso também me deixa otimista, vejo um futuro promissor, estamos evoluindo. No entanto, em contraste com o ambiente científico de Campos de Jordão, o Complexo de Deus ainda é muito prevalente no meio cardiológico, principalmente por parte dos “formadores de opinião”. 

Leonardo Costa, organizador do evento em Campos, me pediu para retratar como os princípios científicos influenciam (ou não) o raciocínio cardiológico, para fazer um paralelo com a realidade deles. Sendo assim, o tema de minha conferência foi o Complexo de Deus, cujo conteúdo está apresentado na postagem abaixo.



O Complexo de Deus

O maior obstáculo para a implementação dos princípios da medicina baseada em evidências é o Complexo de Deus. Esta enfermidade psicológica de alta prevalência entre médicos é caracterizada pela presunção de que podemos inventar condutas baseadas em lógica e considerá-las benéficas sem  testá-las devidamente. 

O Complexo de Deus é promovido pela ignorância de dois fatos importantes: a incerteza do pensamento lógico e a existência de fenômenos ilusórios no universo. 

A Incerteza do Pensamento Lógico

Como serem humanos, temos uma tendência natural a acreditar, muito mais do que duvidar. Assim evoluiu nossa mente ao longo destes 200.000 anos. Nos primórdios na humanidade, nossa característica crente foi necessária para um entendimento inicial do universo e por questões de sobrevivência de nossos ancestrais. Naquela fase, não havia conhecimento coletivo organizado, o que obrigava nossos ancestrais em acreditar e aplicar qualquer coisa. Algumas davam certo e eles iam começando a entender o universo e encontrando soluções para coisas básicas. O mundo evoluiu, hoje entendemos o universo de forma mais profunda e não há mais sentido em ser crente. Porém nossa mente evoluiu de forma crente e permanece com esta característica que um dia teve razão de ser.

Além deste tropismo pela crença, nosso raciocínio evoluiu de forma cartesiana. Geralmente pensamos em uma ou duas causas e planejamos intervir nessas poucas causas como forma de solucionar nossos problemas. O que não nos damos conta é que o mundo é formado de sistemas complexos, especialmente o mundo biológico. Um sistema complexo pode ser definido como aquele no qual o desfecho é resultado de um multiplicidade de causas, que interagem entre si de forma imprevisível, tornando impossível garantirmos o efeito de uma intervenção com base em nossa lógica. Isto promove a incerteza do pensamento lógico

O problema é que não nos damos conta disso e nossa mente crente nos faz confiar cegamente nas predições lógica. Em medicina, são inúmeros os pensamentos lógicos (plausibilidade biológica) que são negados quando propriamente testados. Inúmeras postagens deste blog contam essas histórias. 

Uma vez acreditando fortemente em nossa lógica, um outro processo cognitivo se encarrega de validar nossa crença: o viés de confirmação.

Imaginem que eu acredite que a posição de uns planetas no momento do nascimento define a personalidade das pessoas (astrologia). Não é difícil olhar ao meu redor e encontrar dentre meus amigos pessoas cuja personalidade coincidem com seu signo. Ao encontrar essas pessoas, registro mentalmente estes casos e minha crença é validada. Por outro lado, não registro os casos em que a personalidade não coincide com o signo. Isso é o processo natural de memória seletiva pelo qual o viés de confirmação atua. Ou seja, o viés de confirmação se aproveita das coincidências (acaso) para validar nossas crenças. 

Percebam como nossa mente nos engana. Como dizia Kant, a percepção do universo não depende apenas dos sentidos, resulta da interação dos sentidos com nossa mente (nossas crenças). Vemos o que queremos ver. 

Para corrigir este processo crente, existe a ciência. Sim, a função da ciência é diferenciar causa de acaso. Se as personalidades fossem causadas mesmo pelos astros, haveria mais acertos do que erros por parte dos astrólogos. Bem, isso foi testado. Em 1985, foi publicado na Revista Nature um  elegante estudo, no qual os astrólogos acertaram de forma cega a personalidade de parte dos indivíduos. No entanto, erraram na mesma proporção. Em suma, não houve associação estatisticamente significante entre mapa astral e personalidade. Pronto, está apropriadamente testado e a crença está desconstruída por uma observação não enviesada do universo. 

Isto ocorre o tempo todo com condutas médicas, que entram na rotina clínica com base na crença lógica, e depois estudos apropriados mostram que estas nunca deveriam ter sido adotadas. Tudo isso decorre do nosso Complexo de Deus, que nos impede de reconhecer a incerteza do pensamento lógico.

Fenômenos Ilusórios no Universo

Outro mecanismo mediador do Complexo de Deus é a ignorância de que o mundo a nossa volta é  repleto de associações que parecem, mas não são, causais. Já comentamos neste Blog uma associação verdadeiramente existente e estatisticamente significante entre consumo de chocolate per capita e conquista de prêmio nobel por países. Difícil pensar nesta como uma associação causal, muito provavelmente isto decorre de vies de confusão, ou seja, variáveis associadas ao consumo de chocolate e às premiações, promovendo uma ligação ilusória entre estas duas coisas. 

Assim se acreditou que vitaminas tinham efeito anti-cancerígeno, efeito não confirmado quando avaliado por desenhos de estudos que ajustam para variáveis de confusão (ensaios randomizados). Isto demonstra o segundo papel da ciência, que é diferenciar causa de viés. 

Diferenciando causa de acaso e causa de viés, a ciência discrimina mito e realidade

No entanto, nosso Complexo de Deus nos faz desconsiderar a incerteza do pensamento lógico e a existência de fenômenos ilusórios presentes no universo. Preferimos acreditar em nossas crenças. Preferimos instituir terapia de hipotermia pós-parada baseada em crença falsamente validada por fenômenos ilusórios promovidos por dois estudos repletos de vieses. E mesmo depois de um estudo apropriado ter demonstrado a ausência de benefício, as pessoas continuam propondo este tratamento, com base em subterfúgios de pensamento. Como gosto deste exemplo ...

Mesmo depois da ciência demostrar ausência de benefício, continuamos a dilatar coronárias de pacientes assintomáticos, com base na crença lógica de que é sempre bom desentupir o que está entupido. 

E continuamos a afirmar enfaticamente que exercício físico previne eventos cardiovasculares maiores, mesmo depois da negatividade do estudo LOOK-AHEAD

O problema é o que Complexo de Deus traz prejuízos clínicos, financeiros e culturais. Um dos grandes prejuízos que experimentamos recentemente foi a vexatória derrota de 7 x 1 contra a Alemanha, na Copa do Mundo dentro do Brasil. Sim, isso decorreu da crença de que éramos um bom time, de que iríamos ganhar aquele jogo e a copa do mundo. Se uma visão realista sobre aquele time estivesse presente, o Brasil entraria no jogo de forma defensiva, retrancada. Poderíamos até perder, porém não da forma como ocorreu. Assim fizeram brilhantemente nossos irmãos argentinos.

Somos assim, sofremos do Complexo de Deus. Nossa presunção impede que evidências científicas tenham um papel de protagonista na construção de nossas ideias. O Complexo de Deus torna o homem dogmático, acredita por acreditar. Ou acredita motivado por conflitos de interesse. 

Nosso raciocínio lógico deve servir para a geração de hipóteses a serem testadas cientificamente, diferenciando associações causais de acaso ou viés. O pensamento científico propõe uma posição de humildade do homem perante os fenômenos do universo.

O cientista é humilde. O crente é dogmático. Como profissionais, queremos ser humildes ou dogmáticos?

8 comentários:

  1. Massa Luis! Prefiro meu lado canceriano ascendente humilde do que o imperioso lado ariano, meu signo de nascimento.... o complexo de Deus é de fato uma pegada perigosa principalmente quando vem acompanhado da intenção de "fazer alguma coisa" pra ajudar. Desconsideramos muitas vezes a natureza em sua sabedoria. Observar é um processo ativo e intervir com respeito e humildade, seguindo o primeiro conselho universal da medicina ( Do no harm) tem ficado em segundo plano.
    Será que sabemos o que fazemos?
    A que (ou ao que) estamos servindo?

    ResponderExcluir
  2. Muito bom. A tendência a apostar em "nossas verdades" é comentada pelo filósofo Olavo de Carvalho: "...não é possível o sujeito orientar-se no meio de uma controvérsia sem conceder a ambos os lados uma credibilidade inicial sem reservas, sem medo, sem a mínima prevenção interior, por mais oculta que seja. Só assim a verdade acabará aparecendo por si mesma. O verdadeiro homem de ciência aposta sempre em todos os cavalos, e aplaude incondicionalmente o vencedor, qualquer que seja. A isenção não é desinteresse, distanciamento frio: é paixão pela verdade desconhecida..."

    ResponderExcluir
  3. Como em tudo que diz respeito a educação caminhamos lentamente para um dia parecer com os australianos ou dinamarqueses. Mas a luta e o exemplo de mestres como LCC aceleram o processo, ao menos entre aqueles que tem o privilégio de conhece-lo.

    ResponderExcluir
  4. Penso que o complexo é decorrente da ausência da humildade. O Homem acha-se Deus e o achismo distancia-o do compromisso com a ciência, com a pesquisa, com o estudo, a dedicação e quando estabiliza mata a potência.

    ResponderExcluir
  5. Luis parabéns! Tudo sempre no ponto certo! Excelente post!
    Abr Ricardo Chalhub

    ResponderExcluir
  6. Vou fazer uma provocação construtiva (espero). O texto analisa e defende o ângulo do cientista apenas, sem esboçar a humildade atribuída a si mesmo. Também podemos ver um certo "Complexo de Deus" nos cientistas, quando conferem à ciência a virtude de revelar ao Homem aquilo que ele chama de "verdade". A ciência é do Homem, nunca foi e nunca será infalível. Sendo do Homem, a ciência se desenvolve através de observação, que envolve consciência, que envolve percepção, lógica, crenças... Enfim, na minha opinião, o melhor cientista é aquele que não acredita na ciência. É aquele que pesquisa e trabalha duro para um propósito, mas reconhece a infinita complexidade do universo e tem consciência de que suas descobertas são pequenas verdades, tão frágeis quanto o próprio Homem. "Só sei que nada sei" é um ótimo remédio para o "Complexo de Deus".

    ResponderExcluir
  7. Excelente professor. Poderia postar referências sobre esse assunto?

    ResponderExcluir