Após anos de ansiosa espera, neste mês de junho foram publicados no New England Journal of Medicine os resultados do estudo IMPROVE-IT. Este é o primeiro trabalho adequado para testar o impacto clínico de associar ezetimibe à terapia com estatina. Até então, sabíamos que a associação de ezetimibe potencializava o efeito antilipidêmico das estatinas (LDL-colesterol, um desfecho substituto). No entanto. sabemos que um resultado em desfecho substituto não garante impacto clínico da terapia. Daí a importância deste trabalho testar desfechos clínicos.
Em 2008, a publicação do estudo ENHANCE trouxe dúvidas quanto à eficácia do esquema envolvendo o ezetimibe. Naquele ensaio clínico randomizado em pacientes com hipercolesterolemia familiar, o esquema que adicionava ezetimibe a sinvastatina 80 mg promoveu maior redução de LDL-colesterol do que sinvastatina 80 mg, porém isto não foi acompanhado de maior redução da aterosclerose medida pela espessura médio-intimal de carótidas (desfecho substituto). Naquele momento, ficou patente a precipitação da indústria farmacêutica em promover a utilização de uma droga antes da demonstração de seu efeito em desfechos clínicos.
No mesmo ano, o New England Journal of Medicine publicou um artigo que mostrava como o marketing direcionado para médicos e leigos impactou em grande aumento das vendas do ezetimibe no mercado americano, a despeito da ausência de evidências clínicas, diferente do ocorrido no Canadá. O marketing era prioritariamente voltado para a substituição de esquemas tradicionais com estatina pela combinação de ezetimibe e estatina em baixa dose. Porém, na ausência de estudos suficientemente grandes para avaliar impacto em desfechos clínicos, permanecia a dúvida se a substituição de alta dose de estatina por baixa dose (associado a ezetimibe) poderia promover a perda dos teóricos efeitos pleiotrópicos das estatinas.
Esta contextualização explica porque os resultados do IMPROVE-IT terem sido tão esperados. Estes resultados foram inicialmente apresentados no congresso do American Heart Association em novembro do ano passado. Fugindo ao habitual, o estudo não foi publicado no mesmo dia da apresentação, como ocorre com os grandes ensaios clínicos. Houve especulações de que fortes discordâncias entre editores e autores atrasaram a publicação, enquanto os autores negavam que o estudo não havia sido submetido a revista alguma, devido a “falta de tempo”.
Diante deste pano de fundo, analisaremos os diversos significados do ensaio clínico IMPROVE-IT, o qual em nossa opinião traz implicações tanto positivas quanto negativas para o ezetimibe.
Mais do que isso, os resultados no IMPROVE-IT nos motivam a aprofundar a discussão a respeito do valor da redução relativa do risco, da redução absoluta do risco e do NNT.
IMPROVE-IT Positivo
O estudo demonstrou que a associação de ezetimibe 10 mg e sinvastatina 40 mg reduz a incidência de desfechos clínicos quando comparado ao uso de sinvastatina 40 mg em pacientes que sofreram recente síndrome coronariana aguda e cujo LDL-colesterol é baixo (< 125 mg/dl).
Podemos afirmar que esta observação possui alto nível de confiabilidade: seu baixo risco de viés fica caracterizado por ser um grande ensaio clínico, com 18.000 pacientes randomizados (homogeneidade dos grupos garante ausência de efeitos de confusão), duplo-cego (prevenindo viés de desempenho ou viés de aferição por tendenciosidade de observação), análise por intenção de tratar, baixa perda de seguimento. Quanto ao risco de erro aleatório (acaso), este é um estudo grande, com adequado poder estatístico, conclusão baseada em desfecho primário e na análise de toda a amostra (não foi desfecho secundário, nem subgrupo) e não houve interrupção precoce por benefício (truncamento).
Concluímos portanto que este é um estudo positivo quanto à demonstração da presença de eficácia do incremento anti-lipidêmico pela introdução de ezetimibe à terapia com estatina. É a primeira demonstração de proteção clínica com ezetimibe.
IMPROVE-IT Negativo (a magnitude do efeito)
Ao mesmo tempo em que o IMPROVE-IT mostra a existência de eficácia, este estudo mostra que esta eficácia é mínima, quase irrelevante. Na verdade, este é um estudo positivo em relação à presença do efeito, mas negativo em relação ao tamanho do efeito.
Esta minha colocação pode gerar estranheza, visto que o NNT do IMPROVE-IT é 50, algo que ainda se considera moderada relevância. Por exemplo, este é o NNT que nos fez associar Clopidogrel ao AAS em pacientes com síndromes coronarianas agudas, de acordo com o estudo CURE. Então porque estou dizendo que o IMPROVE-IT é um estudo negativo em relação ao tamanho do efeito? Esta minha afirmação é baseada na redução relativa do risco de apenas 6%.
É neste momento que nossa discussão ganha um aspecto didático adicional ao que temos dito a respeito do NNT.
A (correta) noção que se tem passado no ensino da medicina baseada em evidências é de que a redução relativa do risco sozinha pode gerar uma ideia hiperinsuflada do benefício de um tratamento, o que nos obriga a calcular a redução absoluta do risco (RAR) e o NNT (100/RAR) para ter uma melhor noção da magnitude do efeito. De fato, é comum propagandas utilizarem reduções relativas do risco ao invés de reduções absolutas, pois normalmente os tratamento benéficos tem reduções relativas em torno de 20% a 40% e reduções absolutas em torno de 2 a 4%. Isto faz com que usualmente seja mais sedutor falar em redução relativa.
Não é só porque a redução absoluta é um número menor que esta se torna mais confiável. É também porque esta se aproxima mais do real impacto. Por exemplo, dizer que ganhei 50% de uma herança (relativo) não tem muito significado se eu não souber quanto é a herança (absoluto). Essa apologia ao absoluto é uma revisão do que já sabemos.
Agora vem o conhecimento novo, exemplificado pelo estudo IMPROVE-IT: quando a redução relativa do risco é muito pequena, a redução absoluta do risco e o NNT de um estudo positivo podem hiperinsuflar o benefício do tratamento. Os papéis se invertem!!
Por quê?
A redução relativa do risco representa o efeito intrínseco do tratamento, o que tende a ser constante, independente do risco basal do paciente. Já a redução absoluta varia de acordo com o risco basal do paciente, não é uma propriedade intrínseca. Quanto maior o risco basal, maior a redução absoluta, para uma mesma redução relativa. Quando o efeito intrínseco do tratamento é mínimo, como no IMPROVE-IT, podemos insuflar o resultado para algo relevante ao aplicar o tratamento em uma amostra de grande incidência do desfecho.
Foi isto que ocorreu no IMPROVE-IT. O estudo compara um tratamento bom (estatina) com um mero aprimoramento deste tratamento (associação de ezetimibe) e ainda em pacientes com colesterol baixo (< 125 mg/dl). O efeito intrínseco do tratamento só poderia ser mínimo. Já sabendo disso, os autores escolheram pacientes com síndromes coronarianas agudas (maior risco) e definiram o desfecho como o combinado de 5 componentes, em lugar dos 3 componentes tradicionais (morte, infarto e AVC). Desta forma, a incidência do desfecho foi de 34%, fazendo com que uma mínima redução relativa de 6% resultasse em uma razoável redução absoluta de 2%, gerando um NNT de 50.
Normalmente falamos que redução absoluta do risco (RAR) e NNT são medidas mais representativas de relevância, pois este englobam tanto o relativo quanto o absoluto (redução relativa do risco x risco absoluto = RAR). Mas quando uma redução relativa muito pequena é acompanhada de um razoável NNT, devemos ter cuidado. Duas são as possibilidades:
1. O NNT está artificialmente insuflado pela amostra do estudo ser formada de um subgrupo de pacientes com maior risco; ou por um desfecho combinado de vários componentes, alguns menos relevantes.
Ambos fenômenos ocorreram com o IMPROVE-IT: foi escolhida uma população de grande incidência de desfecho (síndromes coronarianas agudas) para validar clinicamente o ezetimibe; e o desfecho foi o combinado de morte, infarto, AVC (duros) + internamento por angina e necessidade de revascularização (moles). Dentre os 170 desfecho prevenidos, apenas 1 morte foi prevenida, sendo o restante divididos entre infarto ou revascularizações.
Segunda possibilidade:
2. O NNT retrata corretamente uma boa magnitude de efeito, pois o risco habitual da doença é muito alto, fazendo com que uma pequena redução relativa tenha um impacto médio bom. É o que ocorre com uso de IECA na ICC, que promove apenas 16% de redução relativa (SOLVD), porém ICC é uma doença de alta mortalidade, garantindo um NNT alto. Aqui não há a seleção de um subgrupo específico de risco, toda a doença (ICC) tem alto risco.
Sendo assim, podemos seguir a seguinte regra:
Se a redução relativa do risco for razoável (> 20%), devemos aprofundar a análise para o cálculo do NNT. Esta nos dirá se o efeito intrínseco se reflete em uma diferença absoluta importante.
Se a redução relativa do risco for pequena, concluímos que o impacto do tratamento é pequeno. Neste caso, este deve ser reservado apenas para situações de alta incidência do desfecho.
Sendo assim, esta postagem traz o valor de sabermos a propriedade intrínseca de um tratamento (redução relativa) e não apenas o NNT. Ambos devem ser levados em consideração.
Vejam que o efeito do IECA na ICC na verdade é pequeno, mas como esta é uma doença de alta mortalidade, este efeito se torna relevante. Percebem a profundidade do pensamento?
IMPROVE-IT Negativo (imprecisão do resultado)
Outra aspecto do IMPROVE-IT é a imprecisão de suas estimativas. Falamos em uma redução relativa do risco de apenas 6%, mas para piorar este cenário está o intervalo de confiança desta estimativa, que vai de 1% a 11%. Ou seja, na verdade a redução relativa pode ser tão pequena quanto 1%. Considerando este pior cenário, o NNT seria de 288.
Já falamos neste Blog que um estudo pequeno é muito impreciso em relação à magnitude do efeito. Neste caso, o estudo é grande (N = 18.000), mas se torna pequeno (impreciso) quando tenta retratar um efeito tão pequeno.
O Uso Clínico do Ezetimibe
Este estudo demonstra que a prescrição de ezetimibe em pacientes que estão em uso de estatinas, com colesterol bastante razoável (LDL-médio = 90 mg/dl), promove um efeito benéfico de mínima magnitude. Um efeito deste tipo tornará a prescrição desta combinação uma exceção, reservada para inusitadas situações em que uma redução relativa do risco de 6% promova uma redução absoluta de magnitude satisfatória em desfechos duros. O mínimo efeito apresentado pelo estudo implica muito mais no não uso do tratamento para a maioria dos pacientes do que no uso do tratamento para uma minoria. Por este motivo, retratamos este como um estudo mais negativo do que positivo.
Como já discutimos, em torno de 40% das condutas propostas como baseadas em evidências são implicações indiretas de estudos. Vejo utilidade um pouco maior do IMPROVE-IT com uma evidência indireta do que como evidência direta proposta pelo trabalho. Refiro-me ao paciente que permanece com colesterol alto, a despeito de um tratamento máximo com estatina. Não foi exatamente isso que foi avaliado no trabalho, mas os resultados do IMPROVE-IT indiretamente indicam que a associação de ezetimibe pode promover redução de eventos nestes pacientes. Pois se promovem no paciente com colesterol normal, por que não promoveria no paciente com colesterol alto. Conforme gráfico da análise de meta-regressão trazido pela discussão do artigo (veja abaixo), quando maior a redução absoluta de colesterol, maior a redução relativa do risco.
Isso indica que se usarmos o conceito do IMPROVE-IT em uma população de colesterol maior, podemos obter um benefício maior. É um bom exemplo do uso de evidência indireta. Esta tende a ser uma aplicação mais útil, pois estaríamos corrigindo um colesterol ainda elevado, a despeito da estatina. É o caso em que a aplicação indireta de uma evidência parece fazer mais sentido do que a evidência direta.
Além disso, no IMPROVE-IT o ezetimibe foi associado a um esquema de moderada potência de estatina (sinvastatina 40 mg). Não seria melhor trocar por estatina mais potente, em alta dose, como foi feito no estudo PROVE-IT? Não temos a resposta do que seria melhor. Já na situação em que um esquema mais potente de estatina já estaria sendo usado, temos apenas o ezetimibe para aprimorar o tratamento. Mais uma argumento a favor do uso indireto da evidência ao invés da aplicação como feito no IMPROVE-IT.
Mesmo assim, esta indicação também parece ser de exceção, não garantindo uma grande relevância do IMPROVE-IT.
Pelos motivos discutidos neste texto, de uma forma (direta) ou de outra (indireta), este estudo tem aplicabilidade clínica limitada.
O Verdadeiro Valor do IMPROVE-IT
Para mim, o maior valor do IMPROVE-IT está em sua mensagem científica, cristalizado em mais uma evidência a favor da hipótese do colesterol como fator de risco cardiovascular. Estatinas promovem redução de colesterol e reduzem risco cardiovascular, sendo um critério de reversibilidade a favor da hipótese do colesterol como fator aterosclerótico. No entanto, os críticos a esta hipótese argumentavam que a redução de risco com estatina poderiam decorrer de seus efeitos pleiotrópicos. O IMPROVE-IT é uma evidência de que a redução do colesterol com uma droga que não é estatina também reduz risco. Este é o verdadeiro valor deste estudo, o de trazer mais uma evidência de que o colesterol como fator de risco já venceu a inércia da hipótese nula.
O grande valor do IMPROVE-IT é em aprimorar nosso conhecimento: a respeito da hipótese do colesterol e da análise crítica do aclamado NNT, sob a luz de uma mínima redução relativa do risco.
Sem perder o trocadilho, o que o IMPROVE-IT melhora mesmo é nossa maturidade científica.
Infelizmente haverá muita gente deturpando o verdadeiro sentido, discutido muito bem nessa postagem, sobre o uso do ezetimibe. Não será surpresa ver em pacientes de risco cardiovascular pequeno a moderado, ou mesmo aqueles com colesterol LDL baixo, prescrição associada, com o pensamento more is more, mesmo que o benefício seja de pequena magnitude. Essa vai se tornar uma evidência de viés de confirmação, favorecendo a crença do benefício do ezetimibe para alguns profissionais que defendem essa ideia. Espero sinceramente que esteja errado.
ResponderExcluirAcho que você está prevendo corretamente
ExcluirAcredito que a associação ezetimiba + estatinas poderia ter um benefício naqueles casos que não se poderia usar altas doses de estatinas por seus efeitos colaterais. O estudo abre uma nova visão de se testar novas drogas em associação com estatinas, talvez no futuro em uso sem associação. A diminuição do risco relativo em 6%, fará com que se utilize na população com maior frequência. Isso fará que se avalie melhor tal associação na população geral.
ResponderExcluirAo ler o estudo e treinar análise crítica de evidências tive a mesma impressão. Acho que os resultados do IMPROVE-IT foram superestimados. Além disso, achei bastante interessante a sua análise professor, no que se refere de certa forma ao princípio da moderação.Reduções plausíveis de mortalidade são acompanhadas de reduções de risco relativo moderadas - 10 - 25% . A série publicada por Callif e Demets no circulation ilustra bem isso. Para incrementar este raciocínio basta analisar os estudos que demonstram benefício do uso de Aspirina no IAM, Trombolíticos no IAM, ou mesmo as estatinas para prevenção secundária e perceberemos que RRR variou nessa faixa mencionada. O WOSCOPS, por exemplo, demonstra uma RRR de 31% para o desfecho combinado, com uma Redução de risco absoluto de 2,4%, para uma população com LDL médio de 190. Por isto achei esta Redução de risco relativo do IMPROVE-IT baixa e contrastada com o redução do risco absoluto. Como você bem concluiu , o efeito intrínseco do tratamento só poderia ser pequeno. Outra ponto a acrescentar é que: Será que este estudo também não pode servir de base de maneira equivocada para a insistência de muitos médicos em adotar metas terapêuticas? Visto que, o grupo tratado com ezetimiba mais estatina atingiu o LDL médio anual de 53,2 vs cerca de 69 mg/dl no grupo estatina + placebo e partindo desse princípio será que no que se refere no combate ao colesterol - more is more? Deveria existir um ponto de inflexão, onde a redução do LDL não apresentaria mais benefícios. Ademais, uma das perguntas do estudo é esta; Is even lower, even better?
ResponderExcluirOutro ponto é. Qual o custo efetividade desta associação?
Além disso, fica uma questão pertinente. A importância de saber analisar criticamente uma evidência, ela foi publicada após a última diretriz da AHA - temos um exemplo real de que a capacidade de análise crítica é fundamental, pois livros e diretrizes desatualizam rapidamente, devido a velocidade com que pesquisas são publicadas e a informação se reproduz. A despeito do que foi falado, prevejo também um aumento dessas prescrições, pois a maioria dos médicos se atentarão apenas aos resultados positivos desse estudo, sem entender as entrelinhas.
Ótima análise, Lucas.
Excluir