segunda-feira, 13 de julho de 2015

Medicina Pseudocientífica


* Artigo publicado recentemente no Jornal A Tarde por Luis Correia

A imagem do médico atual se confunde com a de um cientista. Desejando corresponder a esta expectativa, o médico normalmente evita justificar suas condutas com base em crença ou fé, procurando trazer argumentos lógicos para suas decisões. O problema é quando nos deparamos com argumentos pseudocientíficos em prol de condutas fantasiosas. Acredito que a origem disto está na carência de entendimento quanto à essência do pensamento científico. 

Diferente do que acredita o senso comum, esta essência não está na presunção de entender o universo, mas sim na humildade de reconhecer a incerteza de nossas crenças. Esta humildade se apresenta na mente científica sob a forma do ceticismo. A palavra "cético" vem do Grego skeptikos, que significa “aquele que reflete, que indaga, vistoria”. Sendo assim, o cético não é o chato que não acredita em nada, mas sim aquele deseja se aproximar de uma verdade consistente. 

Diferente do cético, o crente já tem sua verdade e procura apenas encontrar justificativas que a respalde. O crente é presunçoso, dogmático, enquanto o cético tem a humildade de reconhecer sua ignorância, que poderá ser reduzida caso apareça evidências da existência do fenômeno em questão. Baseada no ceticismo, a ciência assume o papel de construir o quebra-cabeça de entendimento do universo a partir de peças que tenham a credibilidade de não concluir com base em pseudo-evidências. 

E o que são pseudo-evidências? Uma forma comum de tentar convencer alguém é apresentar uma explicação mecanicista. É como se a explicação do porquê garantisse algo ser verdade. Porém, a existência de uma razão não é prova do crime. Por exemplo, alguns propõem que vitaminas possuem ação anti-cancerígena porque têm efeito anti-oxidante. Mas não é porque oxidação predispõe a câncer, que vitamina reduz incidência de câncer. Na verdade, as evidências de melhor qualidade metodológica indicam a ausência desta ação protetora.

A segunda forma de pseudo-ciência é se deixar enganar pelas ilusões do mundo real, causadas por vieses ou efeito do acaso. 

Um dos tipos mais comuns de viés é o efeito de confusão. Está demonstrado que países europeus com maior população de cegonhas possuem maior taxa de natalidade. No entanto, a conecção cegonhas-natalidade é mediada por um terceiro fator, de confusão. Países com muitas cegonhas têm mais cidades rurais e nestas os casais se sentem mais a vontade para procriar. Não eram as cegonhas, eram os tipos de cidade.

Para filtrar estas ilusões, foi criado no início do século passado o método científico, um conjunto de procedimentos que minimizam as ilusões da observação do universo em seu estado natural. Quanto menos rígido for o método científico, mais susceptível o estudo fica às ilusões do mundo real. Assim, mesmo as condutas mais fantasiosas dispõem de estudos concluindo a seu favor. O que precisamos fazer é separar o joio do trigo, escolhendo evidência de qualidade para testar nossas hipóteses. 


Não que seja errado adotar condutas por fé, pois isso também faz parte da equação da vida. O inadequado é travestir estas decisões de científicas. O equívoco é denominar certas coisas de medicina.


2 comentários:

  1. Prezado Luis, quero parabeniza-lo pelo excelente artigo. Nota-se que há uma confusão ancestral na associação "ser médico equivale a ser cientista". Concordo com você. Creio que todos ganhamos caso os médicos se abram para aprender mais a respeito de método científico, embora saibamos que ciência é algo que muda a cada dia. Ainda bem. Ler Popper seria essencial para a maioria dos "doutores". Skepsis - Skepticos - Skepticoi - são palavras em grego que evocam o "exame", a "vistoria" como você diz, e o médico cético será o "Tomé" dos dias de hoje, que não se conforma em ouvir falar mas que se entrega à pesquisa. Crê quando pode ver, e além de testemunhar pelos sentidos, é capaz de analisar com cuidado, observar e articular os dados antes de julgar ou concluir. Há várias interfaces bacanas entre o seu trabalho e o meu com o Coaching Ontológico. Abraço grande!

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  2. Luis,
    Estou lendo seus textos em ordem inversa e desde me causou curiosidade sobre um aspecto: na sua visão, "propedêutica baseada em evidências" é um paradoxo?
    Me passa a impressão de que a interface da propedêutica com a prescrição (óbvio, via diagnóstico) é que é carregada de confusões acerca do conhecimento científico e suas extrapolações com o cruzamento de evidências frente a um indivíduo (individual, claro. rs).
    Grato!
    José Ricardo.

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