sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Vacinas COVID-19: "Elefante na Sala" de Evidências

 


Este texto é composto de três partes. A primeira e a última são reflexões, a respeito da interface entre ciência e comportamento social. A parte do meio traz uma análise crítica das evidências, onde tento resolver dúvidas justificáveis e injustificáveis, mostrando o tamanho do elefante na sala


Finalmente passou o azul de novembro e entramos em dezembro. Não me refiro ao dezembro das cores que promovem “conscientização” sobre questões de saúde. Este é um dezembro mais especial: o mês marcado pela aprovação da primeira vacina para prevenção da COVID-19. A primeira de muitas vacinas que promoverão o controle da pandemia em 2021. 


Em paralelo à rigorosa aprovação da primeira vacina, surge uma crescente discussão a respeito de eficácia e segurança. Questionamentos em redes sociais, longos programas de televisão, proliferação de webinars cujos títulos conotam necessidade de esclarecimentos, como se este fosse um assunto confuso: “o que precisamos saber”, “benefícios e riscos”, para mencionar alguns recentes.


Negacionismo? Não chega a tanto. É algo subliminar. Uma excessiva preocupação com detalhes, como se estes fossem mais importantes do que o elefante na sala.


Recebo mensagens de colegas médicos, pedindo minha opinião, inseguros em relação a alguns aspectos. Alguns me questionaram se eu me vacinaria nesse momento. Meu impulso inicial tem sido de uma certa impaciência, que surge da simplicidade com que vejo esta questão. Só consigo enxergar o elefante na sala, de tão grande que é: historicamente, uma das maiores vitórias da história da tecnologia médica, desenvolvida em tempo record, eficácia enorme (imenso tamanho de efeito), utilidade epidemiológica sem precedentes, custo clínico (risco) baixíssimo. 


Esse elefante deveria ofuscar detalhes irrelevantes: “quanto tempo vai durar o efeito da vacina”, “ pessoas imunizadas são capazes de transmitir alguma doença”, "se a vacina reduz a severidade da doença", “a preocupação com o ineditismo da tecnologia baseada em RNA”, só para citar alguns. Há uma evidente assimetria entre o nível de evidência que já dispomos e o interesse no debate baseado em questões secundárias. O problema é que estas tantas dúvidas contaminam a percepção do geral. 


Mas a maior assimetria é a externa ao assunto. Normalmente, médicos superestimam o potencial benefício das condutas e subestimam o dano. No caso da vacina do COVID-19, parece haver uma estimativa (sensação) inversa ao comumente observado. 


Há uma assimetria evidente entre a cautela com detalhes da vacina e a falta de cautela ao instituirmos atos médicos populares, sem comprovação de benefício, caracterizando uso inapropriado ou overuse. Não vemos tamanha preocupação em questionar risco/benefício quando o novembro se torna azul (rastreamento de câncer de próstata), o outubro rosa (rastreamento de câncer de mama), ou o setembro vermelho (check-ups cardiovasculares). Nestes meses, isso sim, deveria haver mais debate. Nesse nosso dezembro, nos beneficiaríamos de menos debate e mais assertividade das ações. 


Foram tantos os questionamentos que resolvi sair de minhas férias cognitivas que começaram há 5 dias e escrever esse texto. Um texto permeado de certa impaciência, mas muita reflexão. 


É bem verdade que precisamos esperar a publicação do resultados das demais vacinas para reforçar essa percepção de sucesso. Não é uma questão de debates e opiniões. É apenas uma questão de leitura de evidências para discriminar as vacinas eficazes e seguras. Estas existirão e espero que sejam quase todas.  


Neste momento, o único ensaio clínico publicado em sua integridade em revista científica foi o da Pfizer, disponível no NEJM. Por isso farei a leitura deste estudo, cristalino em vários aspectos. Reforçando o otimismo, essa semana o FDA disponibilizou os resultados da vacina da compainha Moderna, que parece ir no mesmo sentido da vacina da Pfizer. Quanto à vacina da Oxford, foi publicado no Lancet resultados de uma análise interina (um tanto confusa), o que me faz preferir esperar a publicação final. 


Pareço aqui um tanto contraditório em protestar quando à assimetria de incerteza, pois tenho proposto a incerteza como o cerne do pensamento médico. É a incerteza que promove a maestria do pensamento probabilístico. Afinal, “medicina é a ciência da incerteza”. 


No entanto, devo enfatizar que incerteza não é o mesmo que insegurança. Precisamos mensurar o grau de incerteza, a partir das evidências. Neste post analisarei a qualidade da evidência e “tamanho do efeito” (impacto do benefício) da vacina da Pfizer. A análise da Pfizer serve de pano de fundo para o potencial benefício e segurança das vacinas em geral, e como isso tem se traduzido na percepção da comunidade médica e da sociedade.



Análise de Peculiaridades das Evidências


O estudo da Pfizer constitui um grande ensaio clínico, com poder estatístico e precisão suficiente para rejeitar a hipótese nula com baixo risco de erro tipo I e alta precisão na estimativa do tamanho do efeito. Não houve mudança de protocolo ou desfecho primário quando o artigo é comparado à publicação a priori da sua metodologia. Trata-se de um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, cujo desfecho primário é a ocorrência de COVID após a segunda dose. 


Ausência de Placebo Ativo


Uma das “preocupações” é a de que não houve "placebo ativo" no estudo da Pfizer (nem da Moderna), ou seja, o uso de algo no grupo controle que promovesse semelhantes efeitos adversos (como vacina para outra doença). Placebo ativo é importante quando o tratamento causa efeitos adversos que podem "desmascarar" o cegamento. O paciente acaba por saber que tomou a vacina.


No entanto, o maior problema de estudos abertos (ou desmascarados) está na subjetividade do desfecho. Primeiro, o desfecho COVID-19 ganha objetividade na medida em que necessita de uma confirmação laboratorial. Isso reduz o risco de viés, mas não elimina de todo, pois pacientes que imaginam não ter sido vacinados podem reportar mais sintomas, serem mais testados e apresentarem maior incidência. No entanto, neste estudo controlado com placebo passivo, é pouco provável que esse mecanismo justifique o tamanho contraste entre os dois grupos (168 casos versus 8 casos de COVID-19). Podemos imaginar uma superestimava, mas não no nível de provocar tamanho contraste. 


Intenção de Tratar Modificada


Análise por intenção de tratar é aquela que mantém todos os indivíduos no grupo originalmente randomizado, mesmo que estes não tenham recebido a conduta para a qual foram alocados. Esta técnica previne que se perca o efeito homogeneizador da randomização, principalmente porque pacientes que violam o protocolo são de risco diferente da média.


Intenção de tratar modificada ocorre quando essa regra não é obedecida plenamente e alguns dos indivíduos são excluídos da análise. É um sinônimo (eufemismo) de análise por protocolo, que gera um viés em prol do tratamento.  


No estudo da Pfizer, três tipos de pacientes foram excluídos após a randomização: aqueles em que houve violação de alguma forma do protocolo (99 não usaram nenhuma dose de vacina/placebo, 600 não usaram a segunda dose), os que tiveram menos de 2 meses de seguimento e os poucos que tiveram infecção entre a primeira e segunda dose da vacina, tornando impossível avaliar a eficácia das duas doses. Assim, do total de 43.500 pacientes randomizados, 37.700 foram analisados. Ficaram de fora em torno de 14% dos pacientes randomizados, um número compatível com o usual crossover em estudos intervencionistas. Normalmente consideraríamos de alto risco de viés uma análise por protocolo ou intenção de tratar modificada neste situação. Mas neste caso das vacinas há uma novidade metodológica a considerar. 


Estudos de vacina tem duas particularidades que fazem da análise por protocolo adequada. Primeiro, vacina é uma conduta universal (não decidida pelo médico com base no quadro do paciente), aplicada a pessoas sem a doença em questão. Sendo assim, a violação do protocolo não ocorre por uma mudança de conduta com base no quadro do paciente, é muito mais um evento estocástico, aleatório, não enviesado. Isso reduz o efeito de confusão criado pela exclusão após a randomização. Segundo, vacinas tem normalmente um imenso tamanho de efeito, diferentes de tratamento em geral. Desta forma, computar pessoas que não usaram vacina como se tivessem usado (e vice-versa) promoveria uma grande mudança no resultado da eficácia. Uma mudança maior do que o eventual efeito de confusão da análise por protocolo. 


Desta forma, estudos de vacinação representam uma daquelas situações em que análise por protocolo ganha um nível de evidência pelo menos semelhante à análise por intenção de tratar.


Sendo assim, considero que estamos diante de uma evidência confirmatória, confiável, de baixo risco de viés e erro aleatório. 



Tamanho de Efeito (eficácia)


Imenso! A análise principal foi por pessoas-ano (hazard), mas para simplificar descreverei em percentual de infectados (risco): no grupo vacina a incidência de COVID-19 foi 0.04% (8 casos), comparado a 0.88% (162 casos) no grupo placebo. Isso representa um risco relativo de 0.05 (isso mesmo, quase zero), o que se traduz em redução relativa do risco de 95%, com intervalo de confiança altamente preciso (90% - 98%). 


Esse enorme tamanho de efeito representa praticamente eliminação do desfecho indesejado, algo muito raro em bons tratamentos de doenças, cuja redução relativa do risco fica em torno de 20%-30%. Vacinas, no entanto, diferem do usual. O benefício de muitas vacinas chegam a praticamente 100% em muitos casos. Assim, essa magnitude de benefício não é surpresa, nem é "bom demais pra ser verdade". É o esperado, e que agora começa a se confirmar.  


Confirmado portanto que esta vacina de RNA é altamente eficaz, aumentando a probabilidade de outras apresentarem resultados semelhantes, tal como sugerido pelos dados ontem apresentados da vacina da Moderna. 


Essa perspectiva reforça o elefante na sala.



Efeito Concreto (NNT Individual versus Populacional)


Sabemos que o número necessário a tratar (NNT) tradicional deriva da probabilidade individual de um paciente que recebe um tratamento desfrutar do benefício. Essa probabilidade é a redução absoluta do risco. Comentamos em nosso seminal artigo de 31 de janeiro que o risco individual de uma pessoa adquiria a doença, mesmo em meio a esta pandemia, não é muito alto. Por exemplo, os gritantes 7 milhões de casos do Brasil promovem uma probabilidade individual do evento ocorrer de 3%. No estudo da Pfizer, a incidência da doença no grupo placebo foi ainda menor, 0.88%. 


Assim, embora a redução relativa do risco seja enorme, a redução absoluta do risco foi de apenas 0.84% (0.88 - 0.04), o que resulta em um NNT tão alto quanto 119. Em uma análise individual, não nos impressionaríamos tanto com este tratamento.


No entanto, vale lembrar que, na ausência de isolamento, uma pessoa doente potencialmente contamina 3 outras pessoas (R = 3). Assim, esses 119 preveniriam não apenas 1 caso, mas 4 casos, reduzindo o NNT para 30. Esse já é o início do pensamento sistêmico. 


Mas o pensamento sistêmico toma sua maior forma quando entendemos o verdadeiro caráter populacional deste tratamento. Neste caso, não temos um conjunto de doentes, temos apenas um doente: a população. Não vacinaremos pessoas. Vacinaremos a população. 


Esse nosso paciente, a população, terá sua doença (pandemia) curada se vacinada, e já vimos que não terá a resolução do quadro se não for vacinado. Assim, surge um fenômeno raro: o NNT será 1, caso 70% das pessoas seja vacinada, a doença (pandemia) se resolverá. 


Estamos assim com um benefício exponencial. O NNT populacional é quase determinístico. E está incorreto usar o paradigma do NNT clínico (individual) nesta questão.


Essa perspectiva reforça o elefante na sala. 



A Irracional Dúvida quanto ao Impacto em Letalidade


Uma pseudodúvida que alguns pseudocriteriosos têm apresentado (carta ao BMJ, tweeter) é se vacinas reduzem mortalidade, visto que os desfechos analisados pelos ensaios clínicos não são “duros” como morte. 


Esse questionamento desconsidera o “princípio da obviedade do desfecho fatal”, aplicável a prevenção do surgimento de doenças que levam algumas pessoas a morte. 


[Não é a primeira vez que este equívoco ocorre. Um bom exemplo é o constante questionamento de que estatinas não tem demonstração de redução de mortalidade em prevenção primária. Ora, se estatina previne infarto e se infarto mata alguns, haverá prevenção de morte. Claro, em cenários de poucas mortes como a prevenção primária, o tamanho do efeito será menor, mas a questão não é se há redução de mortalidade. Devo salientar que isso se aplica a situações de assimetria entre benefício e risco. Mesmo que alguma estatina cause uma rabdomiólise e mate uma pessoa, isso é raro, e assimétrico em incidência se comparado ao benefício]. 


O mesmo raciocínio de assimetria pertence à vacina de COVID-19. Eventuais prejuízos muito provavelmente não superam a magnitude do benefício. Afinal, estamos falando em um tratamento que reduz em 95% a incidência de uma doença que já matou 1,6 milhões de pessoas no mundo.


Se COVID-19 mata e nós eliminamos COVID-19, haverá prevenção de mortes. Assim, em casos de prevenção de doenças que matam e de grande assimetria potencial risco e benefício, não há necessidade que o desfecho primário seja mortalidade. A prova do conceito de eficácia está na redução da doença.


É algo tão previsível, que não precisamos de dados empíricos para calcularmos o quanto haveria de redução de mortalidade. Em se considerando que a letalidade por COVID é 0.5%, precisamos prevenir 200 COVIDs para salvar uma vida. Para prevenir um COVID-19 precisamos vacinar 30 pessoas. Sendo assim, precisaríamos vacinar 6.000 pessoas para salvar uma vida (30 x 200). 


Mas seria um reducionismo calcularmos o NNT da morte: como já explicamos, a questão aqui não é de NNT individual. É uma questão populacional. No populacional, pensamos em número absoluto de mortes, não em relativo. E as vidas salvas serão milhares, milhões talvez. Sem contar todos os outros benefícios sociais do controle da pandemia.



A Irracional Dúvida quanto à Segurança


Tecnologia nova no caso da vacina de RNA, seguimento de curto prazo (meses), população muito selecionada nos ensaios clínicos, todos estes tem sido argumentos que trazem dúvida de segurança. No entanto, precisamos perceber a assimetria potencial da eficácia e segurança. Mesmo na ausência de uma evidência como esse grande ensaio clínico, estaríamos diante do princípio da assimetria. Corroborando, estamos com evidência de total ausência de evento adverso sério em 18.000 pacientes que receberam a vacina. Qual a dúvida?



A Irracional Dúvida quanto à Validade Externa


Alguns avaliadores da vacina da Pfizer na reunião do FDA votaram contra a aprovação devido à dúvida da eficácia em indivíduos mais jovens; outros tem questionado se pessoas com história de alergia podem ser vacinadas … Nestes questionamentos, as pessoas não percebem que em todos os exemplos médicos de eficácia e segurança, esses conceitos foram demonstrados em amostras superselecionadas em prol da validade interna do estudo, devendo ser a ideia expandida para a população geral (salvo exceções), com base na raridade do fenômeno de interação, que justifica o princípio da complacência”: em caso de evidências de alta validade interna (em estudos analíticos, que testam hipóteses), a validade externa deve ser expandida para além das características da amostra estudada. 


Essa dúvida é injusta e preconceituosa com aqueles, mais vulneráveis, que não participaram nos ensaios clínicos, pois assim ocorre em testes de provas de conceito. 


Não precisamos de análises de subgrupo comprovando a eficácia em diferentes tipos de pessoa, pois (como escrevemos na última postagem) estas análises sofrem alto risco de erro aleatório e um resultado diferente do estudo geral tem baixo valor preditivo. Ficou para a história o protesto dos autores do estudo ISIS-2 (trombólise no infarto) quanto à exigência dos revisores do Lancet que, ignorando o princípio da complacência, exigiram que fosse apresentada a análise de subgrupos, comprovando benefício em diferentes tipos de pessoas. Em protesto, estes incluiram na análise subgrupos de signos do zodíaco, mostrando que no (meu) signo de libra, o trombolítico não funcionaria. 


Estou preocupado, além de ser libra, tenho história de alergia …



De Eficácia para Efetividade (a dúvida válida)


As vacinas são portanto eficazes e seguras para a população geral, com potencial de promover magnitude de benefício imensa para a humanidade. No entanto, eficácia define quando uma conduta pode ser benéfica. Efetividade define se esta realmente será benéfica. 


Semear dúvida reduzirá o desejo das pessoas serem vacinadas (20% no Brasil e nos Estados Unidos diz que não se vacinará). Normal que um presidente de cognição e intenção questionáveis semeie dúvida. Deixa esse pra lá. Temos que cuidar para que, sem querer, nossa comunidade de profissionais de saúde, interessados em discussões e debates intermináveis, acabe por semear dúvida como forma de pseudocautela. Essa dúvida não é baseada em evidências, racionalidade, e é imprudente. 



Epílogo: Por que a Assimetria entre Dúvida e Evidência?


Biologicamente, como indivíduos e profissionais de saúde, sofremos da tendência ao overuse, o que denominei há 10 anos de mentalidade do médico ativo. Há evidências de que médicos superestimam o benefícios de suas terapias e a acurácia de seus testes, subestimando os riscos. Na verdade, este pensamento antieconômico é típico do sapiens quando lida com questões pessoais. Temos argumentado que essa tradução é facilitada pelo viés da aversão à incerteza, que nos faz procurar nessas ações a segurança perceptível (sentimento) de que estamos garantidos. Isso justifica tantas condutas irracionais, como rastreamento de certos cânceres, da doença coronária e o uso de medicamentos fantasiosos para tratar indivíduos com COVID-19. O “fenômeno cloroquina” é antigo (biológico) e não foi inventado na era COVID-19.

Neste ponto, chegamos a uma intrigante questão: por que no caso das vacinas há uma cautela (relutância) assimétrica ao elefante na sala de evidências? 

Alguns diriam que se trata de viés ideológico (político), o que pode ser um agravante. Porém não desejo reduzir minha discussão a esta situação (momentânea) de "alguns" países. Percebo uma relutância desproporcional em pessoas sem viés político ... uma relutância que não presencio quando, de forma antieconômica, uma medida populacional como rastreamento de câncer de próstata se torna tão popular. Como tentativa de resposta, racionalizarei uma hipótese no campo da psicologia social, algo a ser testado empiricamente no futuro. 

Por que a aversão ao risco (de morrer de COVID-19) e o desejo de segurança perceptível não prevalece nesse momento? Devido ao outro viés típico do sapiens: o viés do presente (present bias).


Em minhas aulas de overdiagnosis e overtreatment, costumo iniciar com o exemplo do colete salva-vidas dos aviões, que não reduzem mortalidade, mas são universalmente utilizados a fim de gerar segurança perceptível. Mas pode ser que segurança perceptível se aplique apenas situações de perigo iminente, coisas que nossos ancestrais viviam constantemente, mesmo fora de um avião. Estar em um avião se refere a um "perigo" no momento presente. 


Observem que isso é diferente de desenvolvimento um diabetes, infarto ou AVC. Estes incidentes não dizem respeito ao presente, mas sim ao futuro. Nestes casos, não se ouve falar em overuse de dieta adequada, peso ideal, interrupção de tabagismo, estilo de vida adequado. Pelo contrário, a dificuldade das pessoas em aderir a estas medidas está em nossa tendência a preferir a gratificação imediata ao investimento no futuro. Viés do presente justifica porque não adianta explicar às pessoas que elas precisam emagrecer ... a sobremesa do agora é mais sedutora. 


No caso do COVID-19, temos a percepção de que, individualmente, nosso risco não é alto, nem iminente. A vasta maioria das pessoas que conhecemos não morrem de COVID-19, e esta ocorrência não está no aqui e agora, mas é uma possibilidade remota no futuro. Isto explica porque as pessoas teimam em não aderir plenamente a medidas de distanciamento social. 


Portanto, a aversão ao risco não é forte e isso abre espaço para o viés do presente. E o que há no presente de tão gratificante? O hobismo médico. Este termo é utilizado pelo cientista político Eitan Hershpara descrever hobismo político, como a justificativa para a intensa polarização, como uma competição de quem tem mais argumentos. Vira muito mais um jogo do que um debate frutífero, e isso não é bom para a sociedade. Deveríamos depositar o desejo de jogar em situações mais adequadas para o jogo, como o debate entre torcidas de diferentes times de futebol sobre qual é o melhor time (Grêmio ou Internacional, Bahia ou Vitória, Cruzeiro ou Atlético Mineiro). Isso é divertido e não prejudica a sociedade.


O debate sobre questões médicas virou outra pandemia desde o início do ano. As pessoas sentem imensa satisfação ao compartilhar artigos de jornais populares, revistas médicas ou preprints, assim como debater, questionar, refutar, defender, em padrão de hobby. Esse é o assunto do momento, tal como ocorre durante uma olimpíada e copa do mundo de futebol. 


Na ausência de uma forte aversão ao risco, optamos pelo hobismosem perceber que a intensidade deste debate enfraquece a importância do advento da vacina. Pois onde há intenso debate, há dúvida, dilema, opiniões divergentes. 


Isso também explica o feitiço do tempo quanto ao eterno interesse na discussão sobre as cloroquinas e ivermectinas, um debate que há muito perdeu de vista o benefício ao paciente. O interesse contrário ou a favor virou uma obsessão que vai além do interesse na redução de mortalidade. Claramente, não é mais uma discussão clínica. 


Uma outra espécie de hobismo justifica a popularidade dos meses coloridos. O risco de câncer de próstata, mama ou infarto não é iminente. Portanto, a explicação para a popularidade do rastreamento não deve estar na aversão ao risco. Deve estar no hobismo médico, ou seja, no prazer momentâneo em saber que estamos fazendo a coisa certa. As pessoas se sentem elegantes, cuidadosas, é o mesmo que ter seu carro limpo, sem arranhões, é uma sensação do momento presente. É o saber que está "usando o convênio".


O problema da cautela excessiva ou preocupação com detalhes sobre vacinas está no hobismo médico surgido com a pandemia COVID-19. Precisamos colocar esse fenômeno cognitivo em nosso rol de preocupações quando pensamos na promoção de uma cultura médica racional. A meu ver, um intenso debate sobre a importância, segurança ou necessidade das vacinas é irracional. Há momentos em que a discussão deve aplicar o princípio do menos é mais


Proponho assim que discussões médicas sobre vacinas priorizem estratégias logísticas de como tornar algo muito eficaz também efetivo em curto espaço de tempo. Deixemos a teoria neste momento, e vamos à prática. Façamos o Zé Gotinha sorrir de satisfação, e ignoremos aqueles que dizem não ter interesse pessoal em se vacinar. Estes passarão, assim como a pandemia. 


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12 comentários:

  1. Prof, uma pergunta "Talebiana"(que só se aplica a vacina de rna) - visto que a tecnologia é nova, não seria o caso de que os efeitos colaterais tenham fat tails/efeitos coletarais desconhecidos? É um argumento semelhante ao que ele usa contra os GMOs.

    Fellipe

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    1. Esse é o meu principal receio! Vacina de RNA tem perfil de EA a longo prazo desconhecido! As tecnologias de Oxford, Sinovac e J&J são utilizadas em todas as outras vacinas q usamos no nosso calendário vacinal. Especialmente as vacinas com partículas virais, me parecem mais seguras a longo prazo e, se os estudos iniciais demonstrarem perfil de segurança a curto prazo, tudo de bom! Fácil ser reproduzido por outros labs, maior facilidade de produção e distribuição, menor custo, etc, etc, etc...

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  2. Parabéns pelo artigo, excelente como sempre. Mas permita-me uma discordância. Na afirmação “para prevenir um COVID-19 precisamos vacinar 30 pessoas” considera-se que um caso evitado elimina a transmissão para mais três. Entretanto, se toda população será vacinada, serão 120 vacinados para evitar um caso e os cálculos mudam. Talvez um pouco menos, se nem todos foram vacinados, mas com base no estudo precisaríamos vacinar 24.000 pessoas para salvar uma vida (120 x 200).

    E aí vem uma questão pouco debatida. Dados citados pela imprensa colocam a vacina de Oxford/AstraZeneca como a mais barata, em torno de R$ 18,00. A Coronavac da Sinovac estima-se em R$55,00. Em outros locais, o custo da vacina chinesa seria até 4 vezes maior, mas o contrato vazado (verdadeiro?) com o Instituto Butantã não especifica o preço. Afirma que será “acordado” posteriormente. Vendida por uma empresa com histórico de corrupção, e vinda de um país que não prima pela transparência, pode torná-la um instrumento de lucros astronômicos através de achaque contra governantes honestos ou de acordos com governantes corruptos.

    Com base nos cálculos que fiz, mantido o NNT da vacina da Pfizer, o custo de vida salva pela vacina de Oxford custaria R$ 432.000,00. Já com a chinesa, R$1.320.000,00. Há muitos outros aspectos a ser incluídos na análise de custo-efetividade, incluindo os custos adicionais da logística/aplicação e, por outro lado os impactos positivos sobre a economia. Acho que está na hora da sociedade brasileira, onde milhões de brasileiros não tem acesso a médicos qualificados e a intervenções custo-efetivas no SUS, passam necessidades, etc. discuta de forma racional este aspecto.

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    1. Júlio, obrigado pelo reflexivo comentário, como sempre. Este me dá oportunidade de expandir o conceito de NNT populacional (NNT = 1) para a ideia de custo monetário. "Custo-efetividade" é algo que se aplica ao paradigma individual (clínico), ou seja, quando devo gastar para salvar 1 vida. Minha ideia apresentada no texto é que a "vacinação" é 1 tratamento para 1 paciente, que se chama população. Neste caso, se aplica mais o conceito de impacto orçamentário (custo total) do que de custo-efetividade. Vamos dizer que um mix de vacina gere um valor médio de 20 reais. Precisamos vacinar 70% da população para controlar essa epidemia, uns 150 milhões de brasileiros. Assim, 20 x 150 = 3 bilhões. O governo gasta 143 bilhões de reais com o SUS. Ou seja, 3 bilhões para resolver essa epidemia não é muito, em termos relativos. De novo, o paradigma é populacional (população como um todo), não individual (população como soma das pessoas).

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  3. Concordo com o comentário de Dr Júlio. O NNV sempre vai estar condicionado ao número de pessoas vacinadas e também a que tiveram a doença e soroconverteram e talvez outras situações de condições que não serão susceptíveis à doença. Acredito que o NNT de vacinas (number needed to vaccinate) não dá a informação necessária para entender o efeito de um programa de vacinação. Acredito que isso pode ser feito de forma melhor com modelos (SEIR, por exemplo, que leva em consideração fatores como R-0, imunidade, etc).

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  4. Bom e pragmático. Nem o mais fanático idólatra acredita que a franca cruzada antivacinal, encabeça pelo inominável rei do gado, tenha nada a ver com preocupações de cunho científico. É uma combinação de obscurantismo e consciência de que será julgado pela incapacidade de criar a logística. As intermitências intelectuais dos mesmos cloroquiners, que baixam o santo da MBE apenas quando convém, são melhor explicadas pela dissonância cognitiva de quem se sente na obrigação de passar pano para o indefensável.

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  5. Muito importante a certa impaciência neste momento. Ela permitiu um texto bastante assertivo e elucidativo. Discussões vazias sobre estas vacinas já temos testemunho demais! Valeu, Luís!

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  6. — Devemos raciocinar também em termos de Medicina Econômica: é necessário considerar a evolução econômica das populações em função de dois cenários — permanecer com as medidas atuais versus com vacinação.

    — Isso dito, necessitamos também considerar um "vested bias", o que corresponderia a avaliar quais os setores da população têm a ganhar com cada alternativa. Essa consideração implicaria também em um pensamento que eu consideraria "ético-econômico".

    — Por fim, a capacidade de produção total de vacinas não é infinita, e nos concerne o fato de que é necessário otimizar estratégias de aplicação para
    maximizar os efeitos.

    — Que vença o melhor: "O Elefante" ou "O Crocodilo", com o perdao pelo trocadilho.

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  7. Parabéns por mais um post com informações elucidativas e cognitivamente enriquecedor.
    Sobre a questão do mascaramento de vacina/placebo vejo que haveria um potencial de viés sim, porém contrário à intervenção.
    É plausível pensar que pessoas que sabem que foram vacinadas tendam a ter um comportamento de maior risco de exposição ao vírus que quem desconfia que tenha utilizado o placebo. Isto iria diminuir o efeito encontrado pois poderia aumentar a incidência de COVID19 naqueles indivíduos que não desenvolveriam a imunidade. Ou seja, o viés de performance poderia levar a um estudo com resultado falso negativo. Felizmente, o tamanho do efeito foi muito grande e mesmo que este mecanismo tenha atuado, foi superado pela eficácia da vacina.

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  8. Textos sempre muito elucidativos, reflexivos e com alto valor agregado.
    Uma dúvida. O NNT da Coronavac seria menor que o da Pfizer então? ( 56 X 119?)

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  9. Excelente artigo, Professor Luís!
    Estou lendo-o em julho de 2021, sete meses após sua publicação e ainda trás atualidades ao debate que insiste permanecer na mesa dos incaltos, semi-negacionistas (aqueles que namoram com a tendência do negar o que não conhecem mas acabam por reconhecer os benefícios que a ciência já trouxe para suas vidas) ou oportunistas ideológicos de plantão.

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