domingo, 28 de novembro de 2010

O Estranho Caso do Fechamento do Foramen Oval Patente em AVC Criptogênico

Segundo o dicionário Wiktionary, criptogênico significa “de causa desconhecida”. Pois bem, é uma prática comum o fechamento de forâmen oval patente (FOP) em pacientes com acidente vascular cerebral (AVC) criptogênico. Isso é baseado na seguinte premissa: se não sabemos a causa do AVC e o paciente tem um FOP, este pode ser a causa (embolia paradoxal), então vamos fechar este buraco que o paciente não mais terá o AVC. No entanto, não há ensaios clínicos que demonstrem este procedimento ser eficaz na prevenção de AVC recorrente.

Na verdade, nem sabemos se FOP realmente causa AVC. Para começar, FOP está presente em 25% da população geral. Sendo uma condição tão comum, pode muito bem estar presente em quem teve um AVC, sem necessariamente ter causado o AVC. Em segundo lugar, estudos de coorte prospectiva demonstram que a associação de FOP e risco de AVC desaparece após ajuste para os demais fatores de risco. Em terceiro lugar, há duas semanas foi apresentado no congresso do AHA o estudo CLOSURE I, o primeiro ensaio clínico randomizado que testa a hipótese de que fechar FOP reduz o risco de um novo AVC. Neste trabalho, 909 pacientes foram randomizados para fechamento percutâneo do FOP associado a AAS e Clopidogrel versus tratamento conservador com AAS e anticoagulante oral. Não houve diferença na incidência de AVC recorrente entre os dois grupos. Ou seja, o primeiro ensaio clínico randomizado foi negativo, reforçando a idéia de que é inadequado indicar procedimentos na ausência de evidências científicas. Vale salientar que alguns pacientes do grupo intervencionista apresentaram AVC decorrente do próprio procedimento, além da ocorrência de complicações vasculares.

O critério de inclusão deste estudo foi descrito como AVC criptogênico e a média de idade da amostra (45 anos, relativamente jovem) reforça a idéia de que era uma população com características criptogênicas. Mas precisamos esperar a publicação do artigo na íntegra, para conhecer melhor a população que foi estudada. Outro detalhe importante é que este ainda é um estudo relativamente pequeno e pode carecer de poder estatístico para detectar diferenças que não sejam de grande magnitude. De acordo com meus cálculos, seriam necessários 5000 pacientes randomizados para gerar um poder de 80% para detectar uma diferença absoluta de 2%.

Outro aspecto é que este estudo não avalia exatamente se o procedimento reduz AVC, pois o tratamento medicamentoso foi diferente entre os grupos. Para testar essa hipótese, o tratamento medicamentoso deveria ser igual nos dois grupos. Não sabemos se não houve benefício porque o fechamento do FOP não vale nada ou porque vale alguma coisa semelhante à anticoagulação. De qualquer forma, sendo igual a anticoagulação, não justifica um procedimento mais complexo e de altíssimo custo (a prótese custa mais que R$ 50.000). Finalmente, fica a questão se em subgrupos específicos, “mais criptogênicos”, pode haver benefício.

Realmente não podemos considerar esta uma questão fechada, mas o conjunto de evidências (FOP como fator de risco e o primeiro ensaio clínico) existentes fala contra o benefício do procedimento. Para agravar a questão da realização de um procedimento sem evidências, temos presenciado a indicação de fechamento de FOP em pacientes que não se encaixam na definição de criptogênico, mas que tiveram um ecocardiograma transesofágico indicando a presença de FOP.

Ontem mesmo, uma amiga me contou o caso de sua tia idosa, que cursou com acidente isquêmico transitório, sendo diagnosticado um FOP no ecocardiograma transecofágico e prontamente tratada com o fechamento do FOP. “Graças a Deus, a causa do problema foi identificada e tratada, agora está resolvido”. Naquela conversa informal, acessando como quem não quer nada os fatores de risco da tia idosa, percebi que clinicamente o quadro era de um AIT de origem aterotrombótica. Isso ainda levanta a questão do uso apropriado de ecocardiograma transesofágico em pacientes com AVC. Indicações indiscriminadas podem levar a fechamento desnecessários de FOP. Assim como cateterismo desnecessário leva a angioplastia desnecessária, ecocardiograma transesofágico desnecessário pode levar a fechamento de FOP desnecessário.

Esse é mais um exemplo do paradigma mecanicista (fechar buraco) prevalecendo sobre o paradigma da medicina baseada em evidências. Esperemos as evidências futuras, há maiores ensaios clínicos em andamento.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O que pensam os pacientes sobre angioplastia coronária eletiva ?



Recentemente foi publicado nos Annals of Internal Medicine um estudo que avaliou o pensamento de pacientes submetidos a angioplastia coronária eletiva em um hospital acadêmico de Massachusetts.

Sabemos que, à luz das melhores evidências científicas, angioplastia coronária não previne morte, nem infarto do miocárdio em pacientes com doença coronariana estável, sejam sintomáticos ou assintomáticos. Essa afirmação é embasada em ensaios clínicos randomizados de boa qualidade metodológica, como o estudo COURAGE e BARI-2D. Estes resultados se reproduzem em qualquer extensão da doença aterosclerótica, sejam indivíduos com compromentimento uniarterial, biarterial ou triarterial. Seriamente, não se questiona mais este paradigma.

O estudo em questão avaliou o que os pacientes pensavam a respeito de suas angioplastias eletivas. Pois bem, a imensa maioria (em torno de 80%) acreditava que o procedimento iria prolongar suas vidas e prevenir infarto do miocárdico. Por que será que os pacientes têm uma noção equivocada do procedimento que estão realizando? Estes não deveriam saber exatamente o porquê de seus procedimentos?

Claro que sim. Mas talvez estes não estejam sendo informados devidamente pelos médicos. Muito provavelmente, especialmente os pacientes assintomáticos. Fico imaginando como um médico sincero justificaria o procedimento para um paciente assintomático: você tem uma obstrução coronária, precisamos desobstruir, apesar de que isso não vai prevenir morte, nem infarto. O que vai fazer é prevenir sintomas. Ah, mas você não tem sintoma, é mesmo. Mas é muito importante que você nunca se esqueça de usar Aspirina e Clopidogrel depois da angioplastia, porque se não o stent pode trombosar, causando infarto e em alguns casos morte.

Percebe-se que é impossível justificar, o que nos faz pensar que provavelmente os médicos deixam a entender nas entrelinhas que o benefício é maior do que o benefício real. Só assim um procedimento desse pode parecer justificável em um paciente assintomático.
Isso está de acordo com a entrevista que foi feita com os médicos destes pacientes. A maioria dos cardiologistas reconhece a ausência de evidências, mostrando uma discordância grande de conhecimento entre eles e seus pacientes. Ou seja, há um nítido problema de comunicação. Culpa do paciente? Não sei, excluindo os oligofrênicos, provavelmente um paciente tem capacidade de entender que um procedimento não reduz mortalidade ou infarto. O que nem Einstein entenderia é porque estaria fazendo um procedimento sem benefício. Daí o problema de comunicação, ou seja, é melhor não se comunicar direito, ser vago nas observações.

Vemos com frequência angioplastia sendo indicada em indivíduos assintomáticos, cujo teste isquêmico de rastreamento para doença coronária foi positivo. Percebo que não são necessariamente os médicos intervencionistas que propõem o procedimento. Na maioria das vezes, são os próprios clínicos que se sentem mais seguros se o procedimento foi realizado.

Este trabalho é uma evidência científica de que precisamos refletir como estamos transmitindo as informações aos nossos pacientes. É um exemplo da mentalidade do médico ativo prevalecendo sobre o paradigma da medicina baseada em evidências.

domingo, 21 de novembro de 2010

Há mesmo interação antagônica entre Clopidogrel e inibidores de bombas de prótons?


Nos últimos anos, estudos observacionais e dados de agregabilidade plaquetária provocaram a legítima preocupação de que inibidores de bombas de prótons poderiam inibir a ação do Clopidogrel. Uma recente publicação do New England Journal of Medicine resolve esta questão em grande parte: trata-se do estudo CONGENT, um ensaio clínico randomizado para Omeprazol ou placebo, em 3.873 pacientes que vinham usando AAS e Clopidogrel, após síndromes coronarianas agudas ou implante de stent. Não houve aumento na incidência de eventos cardiovasculares com uso do Omeprazol, sugerindo que este não inibe a ação benéfica do Clopidogrel. Foi o primeiro ensaio clínico a testar esta hipótese, gerada por estudos observacionais.

Mais um exemplo de que hipóteses geradas por estudos observacionais muitas vezes não são confirmadas por ensaios clínicos. Nos estudos observacionais, os pacientes cujos médicos prescrevem Omeprazol tendem a ser muito diferentes dos que não recebem a droga. Isso gera um forte viés de confusão. Só um ensaio clínico randomizado para controlar perfeitamente este viés.

Também mais um exemplo de que desfechos substitutos nem sempre predizem desfechos clínicos. Estudos que avaliam agregação plaquetária sugerem que Omeprazol inibe o efeito antiagregante do Clopidogrel. Mas agora sabemos que isso não se traduz em desfechos clínicos.

Como limitação, o CONGENT foi um estudo truncado, ou seja, interrompido antes do planejado. Isso pode ser um problema, como já citamos no passado a exemplo do estudo JUPITER. Mas esse problema ocorre mais quando os autores mostram uma diferença, que quando aparece promove a interrupção do estudo. Não foi o caso, ou seja, o estudo não foi interrompido porque se detectou diferença no desfecho segurança, reduzindo a probabilidade de que o achado tenha sido artificialmente criado pela interrupção.

Outro problema que o truncamento poderia ter gerado é um reduzido poder estatístico. Mas o tamanho amostral do trabalho foi bem razoável. Calculei o poder estatístico para detecção de uma diferença absoluta de 2% em desfechos combinados. O estudo tem poder de 80%, ou seja, o truncamento não impactou muito no poder estatístico. Digo isso porque o Omeprazol reduziu sangramento maior (desfecho relevante) em torno de 2% em termos absolutos. Sendo assim, só se tornaria relevante um aumento em desfecho cardiovascular na ordem de 2%, para que o risco superasse o benefício. Pelos dados, é muito pouco provável que o estudo tenha sofrido de erro tipo I (baixo poder estatístico), foi muito parecida a incidência de desfecho cardiovascular nos dois grupos (hazard ratio = 0.99).

Mesmo assim, o guideline do ACC/AHA sobre uso de inibidor de bomba de prótons, publicado também nesta semana, questiona bastante o estudo. Baseado na teoria da conspiração farmacológica, isso é lobby dos fabricantes de inibidores de bomba mais novos, que temem perder o mercado para o velho Omeprazol.

sábado, 6 de novembro de 2010

Bloqueadores dos Receptores da Angiotensina (BRA) Causam Câncer?



Em julho deste ano foi publicado no Lancet Oncology a meta-análise Angiotensin-receptor blockade and risk of cancer, que tem causado grande repercussão. Nesta meta-análise, cinco ensaios clínicos randomizados para BRA ou placebo foram combinados em relação ao desfecho câncer. Os pacientes randomizados para BRA tiveram uma incidência de 7.2% de câncer, comparados a 6% de câncer no grupo placebo (RR = 1.08; 95% IC = 1.01 - 1.15; P = 0.02). Desta forma, houve uma associação estatisticamente significante entre uso de BRA e câncer. Dito isso, precisamos avaliar criticamente se esta associação é verdadeira, ou seja, se podemos afirmar que há causalidade entre BRA e câncer. Qual o nível de evidência trazido por este estudo?

Primeiro, o desfecho aqui estudado (incidência de câncer) não foi o objetivo primário de nenhum destes estudos. Sabemos que a informação mais confiável de um estudo vem de seu objetivo primário, informações de objetivos secundários estão mais sujeitas ao erro tipo I, ou seja, aquele no qual se afirma a existência de uma associação, porém na realidade a associação não existe. Este erro decorre do fato de que muitos são os objetivos secundários testados simultaneamente, o que aumenta a probabilidade de alguma associação aparecer significante por obra do acaso. Este fenômeno é chamado Problema das Múltiplas Comparações. Por este motivo, às vezes os estudos mostram um resultado significativo em um objetivo secundário, que não se confirma em estudos posteriores.

O que ocorre com efeitos adversos (como câncer, por exemplo) é que a maioria dos ensaios clínicos testam um grande número de efeitos adversos (compreensível) e quase nunca um efeito adverso é um objetivo primário do estudo. Assim, múltiplos desfechos são testados e o que aparece significativo pode decorrer do acaso.


Para piorar a questão, em dois dos cinco estudos (34% dos pacientes) câncer não havia sido uma informação pré-especificada, tendo sido coletada de forma não padronizada e retrospectiva. Isso provoca um viés de observação importante.

Terceiro, existe um potencial viés de publicação referente aos dados de câncer. Este viés é bem possível, pois câncer nunca foi um desfecho considerado potencialmente importante em relação aos BRA. Como mostrou o trabalho, vários estudos que não citavam o desfecho câncer não puderam ser incluídos na análise. Estes podem ser estudos que não tenham mostrado associação entre BRA e câncer, não sendo assim um desfecho que se julgou importante relatar. Este viés pode fazer com que de forma artificial a maioria dos trabalhos publicados seja a favor da associação. O viés de publicação é um questão inerente de meta-análises, porém especialmente no caso de um desfecho adverso (secundário), este viés se torna um problema maior, pois desfechos secundários são menos publicados.


Desta forma, estes três aspectos (desfecho câncer ser secundário, potencialmente sofrer do viés de publicação e em alguns estudos ter sido uma informação retrospectiva) fazem com que classifiquemos esta meta-análise como uma fraco nível de evidência.


Isso não é uma defesa do uso de BRA como anti-hipertensivo. Na verdade, esta classe não deve ser considerada escolha de primeira linha, pois são poucas ou inexistentes as evidências indicando redução de desfechos clínicos com estas drogas no tratamento da hipertensão. Sendo assim, as drogas com mais evidências (diurético, antagonistas do câlcio e inibidor da ECA) devem ser as de primeira escolha e os BRA devem ficar para aqueles paciente que precisariam usar IECA, porém têm intolerância. Mas isso não tem nada  a ver com câncer.


Esta meta-análise levanta uma possibilidade para que se defina câncer como um dos desfechos principais de futuros ensaios clínicos com BRA. É apenas um estudo gerador de hipótese. Considerando a carência de plausibilidade biológica e os potenciais viéses deste estudo, é provável que esta associação não se confirme nos estudos futuros, focados nesta questão. Mas isso é só uma previsão, às vezes a gente se surpreende.