segunda-feira, 11 de abril de 2011

A Farsa da Pioglitazona para Não Diabéticos


Há duas semanas, foi publicado New England Journal of Medicine o ensaio clínico ACT NOW, o qual randomizou 600 pacientes não diabéticos para utilizar Pioglitazona ou placebo. A conclusão do artigo nos faz acreditar que é bom iniciar tratamento para diabetes em quem não é diabético: "As compared with placebo, pioglitazone reduced the risk of conversion of impaired glucose tolerance to type 2 diabetes mellitus by 72%".

Mas porque uma pessoa não diabética teria que usar um hipoglicemiante oral? Iniciar um tratamento para uma doença em pessoas que não são doentes? Colocado desta forma, a idéia parece questionável. Mas tem muita gente que acha isso uma boa idéia. Esse é um dos muitos exemplos da mentalidade do médico ativo, a qual nos induz a aceitar essa idéia, visto que a população-alvo do estudo envolve pacientes com predisposição a diabetes (indivíduos com intolerância à glicose).

Por outro lado, não podemos ter preconceito só porque a proposta é tratar pessoas não doentes. O que precisamos fazer é analisar criticamente a evidência do artigo, aceitar se for uma boa evidência e rejeitar se for uma evidência insuficiente. Costumo dizer que temos que nos render às boas evidências, só precisamos antes avaliar se a evidência é boa mesmo.

Um argumento a favor desta evidência seria sua publicação na mais importante revista médica, o New England Journal of Medicine. Mas não podemos nos enganar, isso não é garantia de qualidade. Mesmo os artigos do New England Journal of Medicine devem ser analisados criticamente. Então vamos lá.

No ACT NOW, durante seguimento de dois anos, a proporção de pessoas cuja avaliação periódica de glicemia apresentou critérios para diabetes foi menor no grupo Pioglitazona, em relação ao grupo placebo. Esse achado completa critérios de veracidade, visto que este foi o objetivo primário, o estudo tinha poder estatístico para este desfecho laboratorial, o estudo não foi truncado e a diferença foi estatisticamente significante. Ou seja, de fato não diabéticos que utilizam Pioglitazona terão glicemia mais baixa do que não diabéticos que não utilizam a droga. Nada mais óbvio do que isso.

Por outro lado, dizer que este achado laboratorial significa prevenção de desenvolvimento de diabetes é uma verdadeira farsa, pois a avaliação laboratorial foi realizada sob o uso da droga. Suponhamos que o grupo Pioglitazona na verdade tivesse apresentado maior conversão para diabetes. Esse resultado seria mascarado pelo fato de que a avaliação laboratorial foi realizada sob o uso de hipoglicemiante oral apenas nesse grupo. Para falar em redução do desenvolvimento de diabetes, a droga teria que ter sido suspenda dias antes da avaliação laboratorial, para que os grupos fossem comparados em condições iguais. Portanto, esse estudo apenas nos diz que a glicemia fica mais baixa se Pioglitazona está sendo utilizada. Na verdade, pode não ter havido nenhuma mudança metabólica intrínseca no grupo Pioglitazona, apenas o resultado é reflexo do uso da droga no dia da medida laboratorial da glicemia. Esse é um bom exemplo de viés de mensuração da variável desfecho.

Mas vamos supor que esse grosseiro viés não existisse e os autores houvessem de fato demonstrado redução na conversão para diabetes com uso de Pioglitazona. Isso nos autorizaria a utilizar a medicação em não diabéticos? Aí entra a questão dos desfechos substitutos.

Desfechos substitutos são variáveis laboratoriais ou fisiológicas que são utilizadas em estudos que não têm poder estatístico para avaliar desfechos clínicos. Por exemplo, redução da pressão arterial é um desfecho substituto, enquanto redução de AVC é um desfecho clínico. Melhora da densidade óssea da densitometria é um desfecho substituto, enquanto redução da incidência de fratura é um desfecho clínico. Desfecho clínico é o que o paciente sente, é morbidade ou mortalidade, é qualidade de vida ou tempo de sobrevida. Desfecho substituto é apenas uma medida de exame complementar.

Espera-se que a influência da droga no desfecho substituto se reflita em benefício clínico. O problema é que a história da ciência médica está repleta de situações nas quais um aparente benefício em desfecho substituto não causa benefício clínico e às vezes causa até malefício. Poderiamos citar vários destes exemplos, mas vou me limitar a apenas um que tem tudo a ver com a questão da Pioglitazona: o caso da Rosiglitazona.

Como já comentamos neste Blog, Rosiglitazona foi um hipoglicemiante oral utilizado apenas com base no conhecimento de que a droga reduzia glicemia (desfecho substituto). Virou um sucesso comercial. Anos depois, foi publicado o estudo RECORD, dimensionado para avaliar desfechos clínicos. Resultado, o estudo não demonstrou benefício clínico, sendo observado aumento da incidência de insuficiência cardíaca. Desta forma, no ano passado a droga foi teve seru uso restrito.

O desfecho primário do ACT NOW foi a dosagem de glicemia de jejum > 125 mg/dl. Para disfarçar isso de desfecho clínico, os autores denominaram “desenvolvimento de diabetes.” Como se fosse uma ocorrência clínica. Foi até calculado o NNT (número necessário a tratar) para prevenção de um caso de diabetes. Até uma curva de incidência cumulativa de diabetes for criada. Tudo isso um desfecho substituto parecer desfecho clínico.

Diabetes só seria desfecho clínico se fossem utilizados sintomas de diabetes como critérios. E mesmo assim, seria um desfecho clínico menor. O que interesse mesmo é se a terapia em questão é capaz de reduzir a incidência de desfechos cardiovasculares (morte, infarto, AVC), insuficiência renal, sintomas de retinopatia hipertensiva. E não temos garantia disso. Lembrem-se que a Rosiglitazona reduz glicemia e aumenta eventos cardiovasculares.

Neste contexto, é surreal a sugestão do uso de uma glitazona, com base em um pequeno estudo de desfecho substituto e em pessoas que nem diabéticas são.

Esse é um grande exemplo da tendência trazida pelos interesses comerciais. Em primeiro lugar, se rotula de doente uma população sem doença. Em segundo lugar, inventa-se que esse grupo de pessoas precisa ser medicada. Pronto, lucro certo.

A indústria farmacêutica costuma utilizar desfechos substitutos para convencer médicos ingênuos do uso de terapias de eficácia desconhecida. Um estudo de desfecho substituto tem valor científico para gerar uma hipótese de eficácia, mas está longe de ser suficiente para modificar conduta clínica.

7 comentários:

  1. Mais uma vez parabéns, já me sintia incomodada no consultório com o número elevado dos meus pacientes não diabéticos sendo medicados pelos colegas endocrinos para previnir diabetes.
    Infelizmente, muitos médicos acham menos trabalhoso medicar os pacientes para previnir doenças do que orientar modificações de estilo de vida (MEV) que demanda maior comprometimento do próprio médico. No caso de optar pela MEV ainda teríamos que ser um exemplo, o que muitos de nós não são.

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  2. Falou tudo, Lu'is. Nada deixou para mim... Parab'ens!

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  3. Luis como sempre brilhante , o que tbem chama atencão é o trabalho assinado pelo Defronzo extremamente prestigiado na Endocrinologia.
    Faz crer que mesmo os mais brilhantes cedem as tentações de "mercado".
    Wálmore

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  4. Oi Luís, parabéns pelo excelente artigo. Se puder, gostaria que avaliasse os últimos estudos sobre finasterida x disfunção sexual sob a ótica da MBE. A mídia fez um estardalhaço grande após a divulgação de estudo recente em que até um quinto dos homens tiveram esses efeitos adversos, contrastando com estudos anteriores em que apenas 1,7% destes foram afetados. Fico grato. Abs, Marcos

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  5. Marcos, me mande esse artigo da Finasterida.

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  6. Dr Luis,

    Excelente post! Fez-me lembrar das primeiras aulas de análise crítica de literatura científica, na época com Bruno Bezerril como professor...
    É interessante perceber, mesmo com pouca experiência, como é forte a tendência a indrotução de práticas médicas apoiadas em desfechos substitutos...

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  7. mto interessante seus comentarios, porem vc se esquece que o risco CV ja esta duplicado nos pacientes com IGT e triplicado nos com DM inicial!! outros estudos com pio mostraram beneficos CV e reduçao de AVC em pacientes diabeticos, sem falar no link de NAFLD com DCV,
    dentre outras coisas .....
    sds
    JT

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