sábado, 9 de julho de 2011

Análise de Aplicabilidade: Ticagrelor


Vejam só que coisa. A gente fica esperando 10 anos para baratear o preço do Clopidogrel. Quanto isso acontece com o genérico, aparece uma melhor opção, cujo preço está no patamar do Clopidogrel antes da queda de sua patente.

No final da última postagem, escrevi que “uma equação envolvendo magnitude de benefício, risco de sangramento e custo da nova terapia permitirá uma decisão individualizada a respeito de qual das duas drogas deverá ser usada.”

Vamos exercitar este pensamento, que corresponde à análise de aplicabilidade de uma evidência científica. Este tipo de análise deve ocorrer após a análise de veracidade da evidência. Ou seja, partiremos do pressuposto de que a veracidade do artigo já foi analisada.

Primeiro, do ponto de vista de saúde pública esta droga não se aplica. Considerando o modesto benefício do Ticagrelor e seu alto preço, uma boa relação de custo-efetividade precisaria ser muito bem demonstrada, principalmente em nosso meio. Ainda não temos esta definição e é provável que não seja uma droga custo-efetiva.

Então fica a decisão para o paciente que vai pagar pela droga, cuja duração do tratamento é de pelo menos um ano após a síndrome coronariana aguda. Normalmente estamos dispostos a pagar um alto preço quando o retorno é muito bom. Mas ninguém vai querer pagar o preço de uma Mercedes e levar um fusquinha modelo antigo. Considerando o NNT de 52, o Ticagrelor não é nenhuma Mercedes, como comentado na postagem anterior. Então precisamos escolher a população que vai se beneficiar mais da droga, transformando um fusquinha em um carro de nível pelo menos médio. Digamos, numa Brasília (essa analogia é para aqueles com mais de 30 anos).

Foi exatamente isso que o estudo PLATO fez, corretamente. Ou seja, selecionou uma população de alto risco. A amostra do estudo PLATO é de risco mais alto do que a amostra do lendário estudo CURE, aquele que validou o uso de Clopidogrel: a incidência do desfecho combinado (morte CV, infarto e AVC) no grupo Clopidogrel do estudo PLATO é 11.7%, comparados a apenas 9.3% no estudo CURE. Isso ocorreu porque no PLATO eram necessários dois de três critérios para o paciente fosse incluído no estudo (dentre eletrocardiograma, marcadores de necrose, idade, DAC prévia, diabetes) e no CURE apenas um de três critérios de inclusão.

Devemos observar que este NNT está otimizado pela correta seleção de uma população de alto risco. Digo correta seleção, pois quando temos uma droga de benefício modesto, devemos identificar uma população de maior risco, cuja redução absoluta de risco será também maior. O PLATO fez isso e obteve o NNT de 52. Caso o PLATO houvesse selecionado uma amostra semelhante à do CURE, o NNT seria 100.

Como calculei isso? De acordo com o PLATO, Ticagrelor (comparado a Clopidogrel) promove uma redução relativa de 19% na incidência de desfechos combinados. Aplicando 19% aos 9.3% do grupo Clopidogrel na população do CURE, haveria uma redução para 8.5%, ou seja, redução absoluta de risco de 1%. Isto dá um NNT de 100.

Isto nos indica que o Ticagrelor deve ser uma droga limitada aos pacientes de alto risco cardiovascular. Primeiro, porque estes são os que vão experimentar uma redução absoluta de risco aceitável. Segundo, porque estes são os que se prejudicariam em esperar cinco dias de suspensão do Clopidogrel caso fosse indicada cirurgia cardíaca. Lembrem-se que o Ticagrelor só precisa ser suspenso por 24 horas antes da cirurgia, pois seu efeito é de curta duração.

Desta forma, no cenário de síndromes coronarianas sem supradesnível do ST, o Ticagrelor teria indicação para os pacientes de alto risco (Escore GRACE > 140 ou sintomas recorrentes durante internamento). Nestes pacientes, o impacto absoluto da terapia provavelmente justifica a troca do tradicional Clopidogrel pelo Ticagrelor. Nos demais, eu ficaria com Clopidogrel.

Quanto ao infarto com supradesnível, o subgrupo de pacientes submetidos a angioplastia primária mostrou resultados consistentes com a amostra geral do PLATO. Considerando que angioplastia primária é um procedimento não planejado, o início de ação mais precoce do Ticagrelor pode ser uma vantagem.

Os pacientes tratados com trombólise não entraram no PLATO, portanto para estes o Clopidogrel continua a droga de eleição, adjunta à Aspirina.
Percebe-se assim que na análise da aplicabilidade de uma evidência, precisamos avaliar criteriosamente qual a amostra estudada e o quanto devemos extrapolar a indicação para além desta amostra. Neste caso, não há sentido em se extrapolar para pacientes de risco baixo. Para conhecer a amostra estudada, devemos prestar atenção aos critérios de inclusão, tabela de características da população e na incidência dos desfechos de interesse. Em segundo lugar, o NNT deve ser contextualizado para a gravidade do paciente, aplicando a redução relativa de risco nos diferentes tipos de população, obtendo as reduções absolutas específicas. Por fim, análises de subgrupo são úteis para mostrar se há consistência do resultado positivo nos diferentes subgrupos, como fizemos agora com o infarto com supradesnível.

Imagino assim que Clopidogrel continue a primeira opção para pacientes com síndromes coronarianas agudas, ficando o Ticagrelor para os subgrupos aqui especificados.

2 comentários:

  1. Professor,
    Parabéns pelo seu blog! Estive um pouco ausente na leitura das últimas publicações, mas percebo que o nível das mesmas continua altíssimo.
    Então, fazendo o dever de casa que me foi designado (o de comentar no blog) rsrsrs...
    Gostei muito dessa publicação. Mostra a importância de realizar uma boa análise das evidências. Afinal de contas, se passasse despercebida a análise de subgrupo que foi realizada (que nesse caso foi importante, não sendo utilizada com o intuito de mascarar resultados) poder-se-ia generalizar o uso dessa nova droga, que (como o senhor concluiu), não é o que as evidências mostram.

    Um grande abraço
    Lucas Olivieri

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  2. Dr. Luis Claudio, parabéns pelo post. A discussão cientifica baseada em evidencias sempre e valida e ajuda na melhora da pratica clinica e no entendimento das evidencias.
    Por favor me permita 1 comentário, não entrando no mérito de comparações entre 2 estudos, o mesmo estudo CURE citado apresentou RRR de incidência de eventos do desfecho primário composto de "apenas 20%" X Placebo, alem do resultado de eficácia ainda apontou para um maior risco de sangramento no braço do clopidogrel. Este resultado outrora poderia ter sido considerado modesto, porém o tempo e a pratica clinica nos mostrou tratar-se de beneficio realmente importante para o tratamento da SCA.
    Acredito que o resultado do PLATO, se confirmado e aplicável na pratica clinica, poderá trazer uma contribuição de magnitude similar a que o estudo CURE trouxe a 10 anos atrás, novamente o tempo nos mostrara...
    Um abraço

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