domingo, 13 de novembro de 2011

Valor Diagnóstico do Escore de Cálcio Zero




Recentemente postamos uma série de artigos entitulada Análise Crítica de Métodos Diagnósticos.

Naquelas postagem discutimos detalhadamente como analisar a veracidade da informação sobre acurácia (1), magnitude da acurácia (2) e utilidade de métodos dignósticos (3,4). A intenção daquela série foi servir de guia para futuras análises da literatura, onde revisamos este conhecimento. Foi o que fizemos na análise do artigo sobre troponina de alta sensibilidade (5) e faremos agora com um artigo publicado ahead of print no Journal of the American College of Cardiology por Villines et al (Estudo CONFIRM).

O trabalho intitulado Prevalence and Severity of Coronary Artery Disease and Adverse Events Among  Symptomatic Patients With Coronary Artery Calcification Scores of Zero Undergoing Coronary Computed Tomography Angiography avalia a acurácia diagnóstica do escore de cálcio coronário na detecção de doença coronária obstrutiva em 10.000 pacientes com sintomas possivelmente anginosos, tendo angiotomografia de coronária como padrão de referência. Nesta postagem, discutiremos o significado diagnóstico destes achados.

Na discussão do trabalho, o autor afirma:

In this large, multicenter, international cohort without known CAD, clinically referred for noninvasive coronary angiography, the absence of measurable CAC significantly reduced, but did not fully exclude, the presence of obstructive CAD on current generation CCTA.

Observem que esta sentença tem uma afirmação positiva (the absence of measurable CAC significantly reduced, the presence of obstructive CAD) e outra negativa (but did not fully exclude) – ambas corretas. Mas o que deve prevalecer como mensagem final? As frases de conclusão do autor sugerem que a mensagem negativa deve prevalecer:

Conclusão do Resumo: In symptomatic patients with a CAC score of 0, obstructive CAD is possible.
Conclusão do Artigo: In symptomatic patients referred for CCTA, the absence of CAC reduces but does not fully eliminate the occurrence of obstructive CAD.

É neste ponto que discordamos.

Primeiro devemos reconhecer que a especificidade do escore de cálcio é insatisfatória, apenas 59%. Mas nossa discussão aqui será mais focada na sensibilidade, pois esta é a propriedade que interfere nas conclusões acima citadas.

Em sentido estrito, a conclusão é correta, ou seja, o escore de cálcio zero não afasta a possibilidade da presença de estenose coronária. Isto porquê a sensibilidade relatada foi 89% para estenose > 50%. Significa que 11% dos pacientes com estenose coronária não teriam este problema detectado pelo escore de cálcio.

Depois de reconhecer que o método não afasta a doença, devemos partir para uma análise mais aprofundada da acurácia. Primeiro, precisamos ter a perspectiva de que nenhum método não invasivo é capaz de afastar totalmente a presença de doença coronária. Mesmo métodos consagrados, tais como cintilografia miocárdica (sensibilidade de 87%), eco-estresse (80%) e até mesmo a angiotomografia de coronária (83%) não têm sensibilidade melhor do que a relatada aqui. Ou seja, nenhuma pesquisa não invasiva de doença coronária é determinística. Isto faz com que precisemos aplicar nesta discussão o raciocínio probabilístico, ou seja, o quanto um resultado negativo do escore de cálcio reduz a probabilidade do indivíduo ter doença obstrutiva. Este é o raciocínio que vai definir o valor da informação escore de cálcio zero.

Para saber o quanto um resultado negativo (escore zero) é capaz de reduzir a probabilidade da doença, precisamos avaliar a razão de probabilidade (RP) negativa (1-sensibilidade/especificidade). O autor fez este cálculo (1 – sensibilidade 0.89 / especificidade 0.59): RP negativa = 0.19. Este é um valor bem razoável, pois entre 0.10 e 0.20 o resultado negativo promove uma mudança moderada na probabilidade pré-teste de doença (RP negativa menor que 0.10 seria uma grande mudança).

Testes com RP negativa moderada são utéis para afastar doença em pacientes com probabilidade pré-teste até intermediária. E foi exatamente isto que aconteceu neste trabalho. A probabilidade pré-teste de doença, estimada pelos critérios de Diamond-Forrester, foi de 32% no grupo com escore negativo e 54% no grupo com escore positivo (probabilidades intermediárias). Desta forma, se o teste for negativo, vamos aplicar uma RP negativa de 0.19 a uma probabilidade pré-teste moderada. Isto é suficiente para reduzir a probabilidade de doença para valores bem baixos. É suficiente para nos deixar em uma zona de conforto. Na mesma zona de conforto que qualquer outro método não invasivo nos deixaria.

Probabilidade pós-teste é o mesmo que valor preditivo. Neste caso, os autores relatam que o valor preditivo negativo do escore de cálcio foi de 96% para afastar estenose > 50% (ou seja, sobra apenas 4% de probabilidade de doença). 

Na verdade, o escore de cálcio é um bom teste para reduzir a probabilidade de doença. Se quisermos tanta certeza para afastar a doença, apenas o cateterismo (que é definido como padrão-ouro) faria melhor. Nenhum outro método não invasivo faria melhor.

Vamos imaginar um homem de 50 anos, que dá entrada no setor de emergência com dor torácica de características intermediária. Digamos uma dor atípica, porém não atípica o suficiente para termos segurança de liberar este paciente. Eletrocardiograma normal, troponina negativa. De acordo com critérios de Diamond-Forrester, este paciente tem 22% de probabilidade pré-teste de doença obstrutiva. Se fizer um escore de cálcio zero, aplicando a RP negativa de 0.19, este indivíduo passa a ter apenas 5% de probabilidade de doença obstrutiva (como calculei? acabo de usar o Medcalc do meu Iphone – categoria evidence-based medicine – post-test probability). Assim, ele pode ser liberado.

A coisa ainda fica melhor se considerarmos os resultados do trabalho relativos a estenose > 70% como definição de doença obstrutiva. Neste caso, a sensibilidade do escore de cálcio sobe para 92%, a razão de probabilidade negativa passa para 0.15 e o valor preditivo negativo (nessa amostra de probabilidade intermediária) para 99%.

Metade dos pacientes deste estudo tiveram escore de cálcio zero. E neste caso, a probabilidade de estenose > 50% cai para 4% e > 70% cai para 1%. Então como rejeitar o valor deste método em pacientes de probabilidade baixa ou intermediária?

Um possível argumento contra a minha idéia é o de que não queremos perder a detecção destes 4% dos pacientes (ou 1% dos pacientes com placa > 70%), pois doença coronária é um problema grave. Mas então, como fazer para melhorar ainda mais a sensibilidade, o que levaria a uma melhora na RP negativa e finalmente a um valor preditivo negativo ainda melhor? Faríamos um angiotomografia de coronária?

Qual a acurácia da angiotomografia de coronária mesmo? Vamos utilizar o CORE-64, principal estudo desta área, publicado no NEJM: a sensibilidade é 83%, especificidade 91%, razão de probabilidade negativa de 0.19. Isto mesmo, 0.19, exatemente a mesma RP negativa do escore de cálcio igual a zero. Por isso, o valor preditivo negativo da angiotomografia de coronária no CORE-64 foi 81%, também não afasta a doença. Ou seja, uma vez que o resultado seja negativo, angiotomografia de coronária não é melhor que escore de cálcio coronário para afastar a doença. Se quisermos certeza mesmo da ausência de doença, deveríamos solicitar cateterismo cardíaco para todo mundo. Porém isso não faz sentido, usar o raciocínio diagnóstico probabilístico faz mais sentido, claro.

Devemos reconhecer que o resultado da angiotomografia identifica um maior número de pacientes sem a doença (especificidade). Este pode ser um argumento válido a favor da angiotomografia. Mas o argumento de que o escore de cálcio zero não afasta doença é errado, pois ele não afasta exatamente da mesma forma que a angiotomografia não afasta. 

Aí surge um novo problema do estudo em questão. Diferente dos estudos  prévios (por exemplo, Gotllieb et al, JACC 2010), o estudo que discutimos hoje não utilizou o cateterismo como padrão de referência para avaliar a acurácia do escore de cálcio. Utilizou a angiotomografia de coronária, a qual não tem melhor sensibilidade do que o escore de cálcio (apesar de ter melhor especificidade). É como uma aluno mediano corrigir a prova de outro aluno mediano (no que diz respeito à sensibilidade). Desta forma, há um problema de veracidade, relacionado à escolha do padrão de referência. Como já comentamos, este é um dos principais ítens da análise de veracidade: qualidade do padrão de referência.

Em resumo, o que precisamos entender é que nenhum método não invasivo afasta a doença coronária obstrutiva. Neste caso, o que temos que procurar é o raciocínio probabilístico e não o pensamento determinístico. O raciocínio probabilístico promove a interação do quadro clínico com o resultado de um exame, nos oferecendo uma probabilidade de doença final que nos deixa confortáveis para tomar uma decisão.

Na verdade, o artigo em questão vai ao encontro das evidências que mostram ser o escore de cálcio um método aceitável para afastar doença coronária em pacientes com probabilidade pré-teste baixa ou intermediária. Não vai de encontro, tal como tentam sugerir os autores.


* Um melhor entendimento desta discussão ocorre após revisão das série de postagens Análise Crítica de Métodos Diagnósticos.

2 comentários:

  1. Caro Prof Luis,

    se possível haveria como incluir uma análise de custo-efetividade? Lembro da época das UDTs (em extinção?) e do uso do TE e da CMPE em repouso.
    Abaixo colei um pequeno parágrafo retirado da diretriz de dor torácica comentando sobre o TE.

    A sensibilidade e a especificidade do teste positivo ou inconclusivo para eventos cardíacos está em torno de 75%, sendo que estes resultados identificam um subgrupo de pacientes com maior
    risco de IAM, necessidade de revascularização miocárdica e de readmissão hospitalar
    5,50,88,89
    O valor preditivo negativo do teste para eventos também é elevadíssimo (> 98%) 50,86,88,89
    .

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  2. Luis Claudinho,,

    É preciso entender as limitações do Core 64 à luz da época e condições em que foi realizado. As you know, cada exame de imagem é dependente da habilidade do intérprete. Eu executo angio TC cardíaca em muitos pacientes, após exames de eco estresse ou nuclear que são realizados com resultados ruins devido a dificuldades técnicas ou resultados inconclusivos.

    Nenhuma modalidade é isenta de falhas, incluindo angioTC. Mesmo a cinecoronariografia que é reconhecida por ter uma variabilidade interobservador significativa no relato de estenose percentual e tem dificuldades com lesões intermediárias quando comparada com IVUS, ou pior ainda, contra FFR, não está isenta de limitações.
    Estudos iniciais demonstraram que 30% dos exames não-invasivos de coração, significativamente positivos, foram associados com cinecoronariografia normal, portanto, foram considerados falsos positivos. Estudos subseqüentes com IVUS demonstraram que os exames cardíacos foram verdadeiros positivos e os falsos negativos foram angiografias com lúmens patentes, cercados por aterosclerose.
    Meu ponto não é se angioTC é perfeita ou se todos os que a executam são capazes, mas que decisões devem ser tomadas 1) à luz da qualidade do exame (FC injetada, obesidade, grau de calcificação, diâmetro dos vasos, etc.) e 2) com base na avaliação correta da probabilidade pré-teste. O valor preditivo negativo da angioTC cai muito se a avaliação da probabilidade pré-teste for equivocada. Se o médico solicitante avalia o paciente como baixa probabilidade (seja por uma interpretação equívoca da característica dos sintomas, ou pela não exploração adequada do risco cardiovascular) e decide que “basta um escore de cálcio” para reduzir o risco naquele seu paciente sintomático, ALGUNS ATÉ COM TESTES FUNCIONAIS DE IMAGEM POSITIVOS, como já tive a oportunidade de receber, então estará incorrendo em erro. Esse fato é confirmado por trabalhos que avaliaram o papel do escore de cálcio na dor torácica da emergência (portanto probabilidade pré-teste mais elevada, em média) e concluíram que o VPN era muito baixo para ser empregado como método de triagem.

    Embora o escore de cálcio não preveja a obstrução, também tem sido demonstrado que muitos dos eventos cardíacos ocorrem de ruptura de placa não obstrutiva (50%). O VPN para eventos em 2 anos de um exame de angioTC coronária NORMAL (sem placas de qualquer tipo) é de 100%. É hora então de repensar a doença e identificar aqueles pacientes verdadeiramente de risco, para que através de manejo médico eficaz, a maioria dos ataques cardíacos possam ser prevenidos. Mas não é sobre prevenção de morte prematura que estamos falando?

    Abraços,

    Fábio Vilas-Boas

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