Quando se fala de uma informação proveniente de meta-análise, normalmente se interpreta como um nível de evidência definitivo, quase como a voz de Deus. Porém meta-análises também devem passar pelo crivo da análise crítica metodológica.
Antes de iniciar esta análise, vamos primeiro fazer uma pequena revisão
história sobre o dabigatran, voltada para os não cardiologistas leitores deste Blog.
Um dos maiores sonhos do cardiologista tem sido anticoagular
cronicamente um paciente com uma droga de ação estável e previsível, sem
necessitar de controle laboratorial (RNI). Parando um pouco para refletir, percebemos
que quase todas as drogas funcionam assim, a ação é tão previsível que não
precisamos medir laboratorialmente seu resultado. Os anticoagulantes, por outro
lado, sofrem interferências biológicas e de fatores ambientais, resultando em uma
ação instável. Portanto sua farmacologia precisa ser monitorada constantemente.
Assim sempre funcionaram os dois mais tradicionais
anticoagulantes, heparina não fracionada (uso hospitalar) e a warfarina (uso ambulatorial).
Na década de 90 foram descobertas as heparinas de baixo peso molecular, cuja administração
poderia ocorrer de forma subcutânea e não se fazia necessário monitoramento laboratorial, pois estas pouco se ligavam a proteínas plasmáticas, o que fazia de sua
ação estável e previsível. Ensaios clínicos randomizados demonstraram que as
heparinas de baixo peso molecular são não inferiores à heparina não fracionada
em diversas patologias (em alguns casos até superiores), disseminando o uso
destas drogas em detrimento da heparina não fracionada. Agora foi a vez do
surgimento de uma alternativa prática de anticoagulantes orais. Os inibidores
diretos da trombina de administração oral foram desenvolvidos da década passada
e não necessitam de monitoramento laboratorial. Seria a grande esperança.
Primeiro veio o ximelagatran, porém estudos iniciais mostraram que esta droga
era muito hepatotóxica. Foi uma decepção. Mas aí inventaram o dabigatran, droga
que se mostrou segura do ponto de vista hepático. O ensaio clínico randomizado
RELY, publicado em 2009, testou o dabigatran na prevenção
de eventos embólicos em pacientes com fibrilação atrial, demonstrando não
inferioridade do dabigratan em relação ao warfarina e até mesmo uma pequena superioridade
na dose de 150 mg (NNT = 345). Não houve aumento de sangramento com dabigatran
em relação à warfarina. Desta forma, ficou demonstrado que tínhamos uma droga
de uso muito mais prático do que warfarina, de eficácia e segurança
comparáveis. Sonho realizado, pelo menos para a indicação de fibrilação atrial.
O problema restante seria o preço da droga, muito alto (em torno de 150 reais
por mês), o que deve perdurar nos próximos anos. No entanto, agora estão dizendo que o sonho de anticoagular os pacientes sem precisar medir o TP causa
infarto do miocárdio. Estranho, um anticoagulante causando infarto. Os próprios autores da mata-análise afirmam "We do not know the pharmacologic mechanism that may result in
dabigatran increasing the risk of MI
or ACS." Mas não saber o mecanismo não significa que a informação não é verdadeira, precisamos analisar sem preconceito contra ou a favor.
Como
surgiu esse história? Isso é uma afirmação baseada em evidências com
características de veracidade?
O problema é que no estudo
RELY a freqüência de infarto do miocárdio foi um pouco maior no grupo dabigatran
quando comparado ao grupo warfarina. Isso levantou uma suspeita. Agora vem uma
meta-análise que mostra o mesmo resultado. Ora, primeiro um estudo levanta
uma suspeita, depois uma meta-análise de vários estudos mostra o mesmo
resultado. A impressão que fica é de confirmação na suspeita. Só que isso
pode ser verdade ou simplesmente ser uma mera ilusão meta-analítica.
Vamos analisar. O gráfico acima é o forrest plot da meta-análise. O pequeno diamante preto na parte
inferior do gráfico representa o efeito resultante da combinação dos diversos
estudos, o qual está do lado direito da linha da nulidade, ou seja, odds ratio
maior do que 1, indicando aumento da chance
de infarto com a droga. Agora observem o resultado de cada estudo
individualmente. A meta-análise foi feita de 7 estudos, sendo o maior deles o
RELY. Enquanto só o RELY possui 18.000 pacientes, o tamanho dos outros 6
estudos varia de apenas 500 a 3500 pacientes. O tamanho amostral do RELY é
maior do que a soma das amostras de todos os outros seis estudos. Neste momento
entra um conceito importante de meta-análises, o effect size. Este efeito diz que a contribuição de um estudo na
análise dos dados deve ser proporcional ao seu tamanho amostral (à sua precisão), naturalmente.
Isso quer dizer que o impacto do RELY na metaanálise é maior do que o impacto
de todos os outros estudos somados.
Agora observem o resultado de cada estudo. Como já
sabemos, o RELY mostra aumento do risco de infarto com dabigatran. Por outro
lado, a tendência nítida do conjunto dos 6 estudos pequenos é a ausência de
efeito do dabigatran no infarto. Tanto
pela estimativa pontual (4 estudos com o pontinho em cima da linha da nulidade), como pela
posição dos intervalos de confiança (dois estudos com o ponto do lado direito, mas o intervalo de confiança invadindo demais o lado esquerdo do gráfico), o conjunto dos estudos pequenos sugere
ausência de associação entre infarto e dabigatran.
Agora vejamos, temos um estudo (RELY) de alta
influência no resultado da meta-análise sugerindo aumento de risco, somado a um
conjunto de estudos pequenos que não mostram associação. Qual o resultado final da
meta-análise: prevalecerá o resultado de maior influência, a despeito dos
outros estudos sugerirem ausência de malefício.
Essa meta-análise não confirma
o resultado no RELY, e sim praticamente copia o resultado do RELY. Os outros estudos não estão de acordo como RELY, simplesmente não conseguem anular seu resultado. Desta forma,
é criada uma ilusão meta-analítica baseada apenas no RELY.
Meta-análises avaliam também a heterogeneidade entre os resultados dos estudos, no intuito de testar se existe discordância entre eles. Um teste estatístico é realizado, cujo o valor de P < 0.05 indica heterogeneidade, e se não for estatisticamente significante indica homogeneidade. Esta meta-análise sugeriu homogeneidade entre os estudos. Baseado nisso, alguém poderia interpretar que os estudos pequenos estão dizendo a mesma coisa que o RELY. Engano, na verdade os 6 estudos pequenos são tão semelhantes entre si ao dizer que não há associação, que esta semelhança prevaleceu sobre a heterogeneidade de apenas um estudo, o RELY. Ou seja, dentre os 7 estudos, 6 se assemelham (na nulidade), por isso que o teste mostrou homogeneidade.
Mas o RELY não é um estudo grande, randomizado, de boa qualidade metodológica? As conclusões do RELY não devem ser vistas como verdadeiras? Sim, em relação ao seu desfecho primário. Quando falamos
de desfechos secundários, como já comentado neste Blog, há uma boa probabilidade
do erro tipo I. Ou seja, encontrarmos associação falsas, decorrentes do
problemas da múltiplas comparações: quando múltiplos desfechos (secundários) são testados
simultaneamente, algum pode aparecer significativo por acaso. Inclusive alguns
autores sugerem que o valor de P a ser considerado estatisticamente significante
para múltiplas análises secundárias não seja 0.05, seja 0.05 / número de
análises = 0.05 / 6 (neste estudo) = 0.008 (correção de Bonferroni). Se fizéssemos isso, veríamos que o limítrofe 0.048
descrito pelo RELY na verdade não representa significância estatística. Pode ser que
tudo não passe do bom e velho acaso.
Análises secundários como a do infarto no RELY devem ser vistas como geradoras de hipóteses, a serem descartadas ou confirmadas por outros estudos. O que foi feito aqui foi confirmar a hipótese gerada pelo RELY, analisando o próprio RELY. O mesmo estudo que gerou uma hipótese um tanto implausível é incluído na meta-análise que vai responder a questão, e além disso é o maior de todos os estudos. É o mesmo que utilizar o conhecimento da probabilidade pré-teste de doença para laudar a imagem de um exame diagnóstico. Claro que a interpretação da imagem do teste vai ser influenciada pelo que se sabe previamente. Outra analogia: quando se cria um escore prognóstico a partir de uma amostra, este deve ser validado em outra amostra, diferente da que foi utilizada para a derivação do escore. Para evitar o erro da repetição. Considerando que a hipótese foi criada a partir de um achado inesperado do RELY, seria necessário ter excluído este estudo da meta-análise em questão. Aí sim seria uma validação da hipótese gerada pelo RELY.
Além destas análises estatísticas, há outras
justificativas para este resultado. A fim de demonstrar que algo provoca
infarto, este algo deve ser comparado ao nada (placebo) e não a uma coisa que
previne infarto. Sabemos que warfarina previne infarto tão bem quando aspirina
(AAS é preferido pois é mais prático e causa menos sangramento). Então pode ser que para prevenir infarto, warfarina seja melhor do que dabigatran, por isso a incidência de infarto com dabigratran foi maior. Mas isso não quer dizer que dabigatran é pior que
placebo, ou seja, que causa infarto.
Mas vamos considerar que tudo que eu falei está
errado e que dabigatran de fato provoca infarto. Aí vem a segunda questão: qual
a magnitude do problema? O aumento absoluto do risco de infarto com dabigatran foi de 0.21%. Calculando o NNH (number
needed to harm) para infarto, 100 / 0.21 = 476 pacientes. A cada 476
pacientes tratados com dabigatran, um apresenta infarto, sendo que no estudo
boa partes desses infartos foram silenciosos, sem nenhuma repercussão clínica.
Ou seja, o problema é irrelevante, comparado ao ganho de praticidade da anticoagulação com dabigatran.
Portanto, esse negócio de dabigatran causando
infarto é irrelevante e tem alta probabilidade de ser devido ao acaso. Lembram
que no início diziam que estatina causava câncer?
Com isso tudo isso, não quero dizer que o dabigatran deve ser
adotado de forma indiscriminada, sem o cuidado necessário. Na verdade, acho que
devemos ser muito cautelosos. Primeiro, haverá uma tendência (freada pelo
preço, é verdade) de maior indicação de anticoagulação, devido à maior
praticidade. Hoje em dia, o médico pensa duas vezes (ou 3, 4, 5 vezes) antes de
indicar anticoagulação crônica, pela complexidade do tratamento. Com dabigatran,
a facilidade pode predispor ao uso indiscriminado. Coincidentemente ou não,
paralelo ao advento do dabigatran, inventaram o escore CHADSVASC, cuja
utilização indica anticoagulação para 92% dos pacientes com fibrilação atrial. Temos que ter cuidado, dabigatran causa sangramento quase tão frequente como a warfarina. Segundo, temos evidências de eficácia apenas em fibrilação atrial. Já vi gente
usando para trombo em VE, embolia pulmonar. Ainda não temos dados para estas
indicações. Terceiro, a ausência do controle laboratorial pode fazer falta em
algumas situações específicas. Quarto, temos que iniciar o uso devagar, para aprendermos a usar um anticoagulante cuja forma de utilização representa uma mudança de paradigma, algo que não estamos acostumados. Esta é um droga cuja efetividade (mundo real) pode ser diferente da eficácia demonstrada nos ensaios clínicos, por erro ou negligência na sua utilização. Portanto, temos que ser cautelosos e monitorar o uso da droga no mundo real (estudos de efetividade).
Usualmente fazemos postagens críticas em relação a drogas, por motivos didáticos e porque criticar é mais divertido do que apoiar. Mas deve ter dado para perceber que
neste artigo fiz a defesa de uma droga recentemente lançada pela indústria. É importante
salientar que não tenho vínculo algum com o fabricante desta ou de nenhuma
droga. Nosso vínculo é com a verdade científica, devemos ser imparciais, seja
contra ou a favor da indústria. Devemos ser parciais a favor do paciente. Dabigatran,
apixaban, rivaroxaban representam um avanço médico, que não podemos resistir
com base em evidências questionáveis, em detrimento de boas evidências de
eficácia. Aliás, lembrando a velha teoria da conspiração, será que o apixaban
ou rivaroxaban estão por trás destas críticas ao dabigatran? Estamos no mundo
capitalista.
A forma mais fácil de convencer alguém é dizer: uma meta-análise recentemente publicada comprova que ... A mensagem principal desta discussão é a de que meta-análises não garantem bom nível de
evidência simplesmente porque são meta-análises. Sabemos que nem sempre é assim.
* O conteúdo desta postagem foi aceito como Letter to the Editor, a ser em breve publicada nos Archives of Internal Medicine.