Da Série Análise Crítica de Evidências sobre Terapia -
Terceira Postagem
Na
postagem anterior iniciamos a avaliação da relevância terapêutica pela análise
do tipo de desfecho testado no trabalho científico. Após análise do tipo de
desfecho, devemos quantificar a magnitude do benefício da terapia quanto à redução
do desfecho indesejado. Um benefício comprovado (veracidade), pode variar
de mínima magnitude a uma enorme magnitude. Seria simplório afirmar “esta terapia é comprovadamente
benéfica, devemos implementar.” Precisamos saber o grau de benefício para tomar
a decisão clínica certa, ponderando em relação ao custos, inconvenientes e
riscos da terapia.
Para
isso, utiliza-se o NNT, que significa Número
de pacientes Necessário a Tratar a fim de prevenir um desfecho
indesejado (Number Needed to Treat). Esta medida quantifica o grau de benefício: quanto menor este número, maior o benefício. O ideal é um NNT de 1, que
significa que todo paciente tratado se beneficia da terapia. Por exemplo, um
NNT de 1 para o desfecho morte significa que se implementarmos a terapia o
paciente vai sobreviver e se não implementarmos o paciente vai morrer. Um NNT
de 100 significa que de 100 pacientes tratados, um vai ter sua vida salva pela
terapia.
O NNT
nos fornece uma importantíssima noção filosófica a respeito do alcance dos atos
médicos, noção normalmente ausente no nosso inconsciente coletivo. Refiro-me à
consciência de que nossas decisões são limitadas em termos de eficácia. O
sistema biológico é complexo e um tratamento implementado não garante
benefício. É impossível prever de forma acurada quem é o paciente que vai se beneficiar.
Desta forma, o que fazemos é tratar um grande número de pacientes, na esperança
de que alguns se beneficiem.
Observem
a figura acima, que representa um tratamento hipotético cujo objetivo é
prevenir apenas morte no infarto de
risco alto. Neste caso, o tratamento só precisaria ser implementado nos 12% dos
pacientes que morrem na fase aguda do infarto (as carinhas vermelhas do grupo
controle). Porém, no momento da admissão não sabemos quem vai morrer (vermelho) e quem vai
sobreviver (carinhas laranjas do grupo controle), pois o paciente não chega na
emergência com a cara pintada de vermelho ou laranja. Desta forma, tratamos
todos os pacientes, para que aqueles 12% que estão predestinados a morrer recebam
o tratamento. Os outros 88% (laranjas) não precisariam receber o tratamento, pois não
iriam morrer. Porém mas não sabemos quem é quem.
Agora
vamos nos concentrar nestes 12% que vão (ou iriam) morrer. Quase nenhum tratamento
consegue impedir a morte de todos os predestinados. Portanto apenas uma parcela
dos pacientes terão sua morte prevenida. Na figura do grupo tratamento, apenas
4 dos 12 pacientes predestinados não morrem. Estas são as carinhas verdes, os
que são salvos pelo tratamento.
Desta
forma, tratamos 100 pacientes para prevenir 4 mortes: 100/4 = 25, ou seja,
precisamos tratar 25 pacientes para prevenir 1 morte. Este é o NNT.
Embora
o conceito de NNT tem sido bem difundido, minha percepção é que a noção
filosófica não é muito prevalente no pensamento médico. Por exemplo, uso de
stent farmacológico versus stent
convencional. O primeiro reduz reestenose, é verdade. Porém percebemos que quando elegemos o stent farmacológico, o fazemos como se o este tipo de stent fosse prevenir a reestenose em todos e como se o stent convencional fosse
provocar reestenose em todos. Ou seja, como se o NNT fosse de 1. Digo isso,
pois vemos algumas vezes pacientes internados por 40 dias a espera da liberação
de um stent farmacológico pelo
convênio. Ou pacientes instáveis que deixam de receber um tratamento imediato
em artéria criticamente obstruída para esperar a liberação de stent farmacológico. Mas qual o NNT
do stent farmacológico em comparação ao stent convencional? Para reestenose
clínica é 16. Significa que, em média, precisamos
implantar stents farmacológicos em 16 pacientes (no lugar do convencional),
para prevenir reestenose em 1 destes 16 pacientes. Certas horas, o médico não
lembra disso e toma decisões como se o NNT fosse 1.
A magia do NNT é nos dar exatamente esta
percepção.
De posse do NNT da estatina em prevenção primária em pacientes dislipidêmicos (conhecimento científico = NNT de 53 para infarto – não reduz morte), decidiremos se um paciente que se queixa de dor muscular deve ter sua estatina suspensa. Para isso precisamos também do julgamento clínico que avaliará subjetivamente o quanto aquele efeito colateral está reduzindo a qualidade de vida do paciente. Este é um dos momentos especiais, quando o conhecimento científico (NNT) se alia ao julgamento clínico (percepção subjetivo do médico) na decisão terapêutica. Cada um com sua função, se complementando na hora certa.
De posse do NNT da estatina em prevenção primária em pacientes dislipidêmicos (conhecimento científico = NNT de 53 para infarto – não reduz morte), decidiremos se um paciente que se queixa de dor muscular deve ter sua estatina suspensa. Para isso precisamos também do julgamento clínico que avaliará subjetivamente o quanto aquele efeito colateral está reduzindo a qualidade de vida do paciente. Este é um dos momentos especiais, quando o conhecimento científico (NNT) se alia ao julgamento clínico (percepção subjetivo do médico) na decisão terapêutica. Cada um com sua função, se complementando na hora certa.
Percebam
então que são dois os componentes que determinam o NNT. Primeiro, a quantidade
de paciente que vai sofrer o desfecho indesejado (risco). Depois a eficácia do
tratamento em prevenir este desfecho. Desta forma, uma mesma droga pode ter um
NNT baixo (grande magnitude) quando aplicada em um paciente de alto risco, ou um NNT alto (pequena relevância) quando aplicada a um paciente de baixo risco.
Risco é
a probabilidade do paciente
apresentar um desfecho indesejado. Em trabalhos científicos isto é chamado de
risco absoluto. Quando subtraímos o risco observado no grupo controle pelo
risco observado no grupo tratamento, obtemos a redução absoluta do risco. Por
exemplo, RA de morte no grupo droga é 12% e RA de morte do grupo placebo é 8% =
RAR = 12% - 8% = 4%. Essa é a magnitude da redução absoluta do risco. Agora, NNT
é 100 dividido pela RAR = 100/4 = 25.
RAR = RA
do controle – RA do tratamento
NNT =
100 / RAR
A
maioria dos artigos não trazem o cálculo do NNT, cabe a nós utilizar a RAR descrita no artigo e calcular o NNT. Ou seja, cabe a nós interpretar a
magnitude do benefício do tratamento.
E como
interpretar a magnitude, utilizando o valor no NNT? NNT abaixo de que número
implica em tratamento relevante?
Não existe uma resposta única para esta pergunta, pois isto depende de
algumas coisas. Primeiro, depende do tipo
de desfecho, assunto da postagem passada. Um NNT de 40 para morte terá uma
relevância maior do que um NNT de 40 para infarto não fatal ou para desfechos
combinados que incluam situações não fatais. Outra variável é o tempo de
tratamento necessário para obter o benefício. Trombólise no infarto tem NNT de
20 para prevenir morte na fase hospitalar, enquanto inibidor da ECA em ICC tem
o mesmo NNT de 20, só que previne morte ao longo de um 1 ano. Trombólise é
então mais relevante no IAM do que IECA na ICC.
Mesmo
diante destas variáveis, precisamos de um número que nos sirva de guia. Este
número é 50. NNT < 50 para morte é considerado tratamento de grande
relevância e para desfechos não necessariamente fatais NNT < 50 é tratamento
de moderada relevância. Abaixo, vejam um guia lógico para interpretação.
Ainda
tem o NNT para causar prejuízo (harm)
ao paciente. Este é chamado de NNH (Number
Needed to Harm). E isso permite que comparemos o NNT com o NNH, ou seja,
façamos um raciocínio de risco/benefício. Por exemplo, Clopidogrel em síndromes
coronarianas agudas reduz eventos cardiovasculares não fatais (em 1 ano), porém
aumenta a incidência de sangramento maior. O NNT é 48, enquanto do NNH é 100. Por
isso que normalmente utilizamos Clopidogrel em SCA, pois em geral o benefício
supera o risco.
Desta forma, o NNT é uma medida que oferece um valor filosófico e um valor prático.
O valor filosófico é inserir no pensamento médico a noção não determinística do
tratamento: tratar (ou não tratar) não é o único determinante do desfecho. O
valor prático é quantificar o benefício e o malefício, aprimorando nossa
capacidade de decisão clínica.
Excelente texto!!!
ResponderExcluirJá tinha lido antes sobre o assunto, mas não de uma maneira tão clara.
Claudio das Virgens
ResponderExcluirA magia do NNT I – como usar este conceito acertamente?
Luís, excelente publicação eletrônica...de grande utilidade para tomada de decisão a beira do leito, no contexto do consultório...desde que bem compreendido. Ao ler seus comentários de fácil entendimento e aprendizado, pergunto-me o que nos motiva, nós médicos, a adotar medidas terapêuticas no tratamento das doenças nas suas mais variadas apresentações, cujo benefício é questionável...vejamos:
As SCA tem uma grande impacto social pela sua alta mortalidade. A compreensão da ativação plaquetária como modelo fisiopatológico responsável pela trombose coronária, após a instabilização de uma placa ateromatosa, determinando IAM, permitiu-nos desenvolver uma série de intervenções através da utilização da inibição plaquetária, com redução significativa de morte e de eventos cardiovasculares combinados (MACE), representando importante avanço na terapia clínica das SCA. A partir daí perseguimos a melhor a antiagregação plaquetária, do ácido acetil salicílico em monoterapia à sua associação com tienopiridinicos (clopidogrel, mais recentemente prasugrel e ticagrelor – inibidor não –tienopeiridino do ADP). Aumentamos a potência da dupla-inibição plaquetária, mas encontramos um grande problema: aumento de eventos hemorrágicos graves. Neste contexto, hemorragia, anemia e, por consequência, hemoterapia que aumentam significativamente o risco de morte nas SCA.
Claudio das Virgens
ResponderExcluirMagia do NNT II - como utilizar este conceito?
Recentemente foram publicados dois artigos médicos, em revistas médicas de grande impacto, com expectativas de grande potencial de mudança das condutas no tratamento da doença coronariana: OASIS VII e TRITON TIMI-38.
O OASIS VII foi um ensaio clínico randomizado bifatorial que testou clopidogrel dose-dupla (600 mg dose de ataque + 150 mg/d x 7d, seguido de 75 mg/d) versus dose standard (300 mg then 75 mg/d) e AAS : alta Dose (300-325 mg/d) vs Baixa dose (75-100 mg/d), tendo como eventos de eficácia : Morte de causa cardiovascular , IAM ou AVC em 30 dias e trombose de stent em 30 dias; e, hemorragia, definida pelos critérios do CURRENT defined Major/Severe and TIMI Major, como evento de segurança. Os resultados deste estudo demonstraram que trombose definitiva dos stents foi menor no grupo de dose-dupla de clopidogrel que na terapia standard (58 [0•7%] vs 111 [1•3%]; 0•54 [0•39—0•74], p=0•0001), bem como ocorreu redução significativa de eventos primários (330 events [3•9%] vs 392 events [4•5%]; adjusted hazard ratio 0•86, 95% CI 0•74—0•99, p=0•039), mas não houve diferença entre alta dose versus para o braço do AAS. No entanto, estes benefícios ocorreram às custas do aumento de sangramentos maiores no braço do clopidogrel em dose-dupla (139 [1•6%] vs 99 [1•1%]; 1•41, 1•09—1•83, p=0•009). Neste contexto, veja que o NNT para se obter redução dos eventos primários combinados de IAM, Morte e AVC foi de 166, enquanto o NNH para determinar hemorragias graves foi de 200. Embora estes números demonstrem que a estratégia proposta não tem relevância para redução de desfechos clínicos, devido ao a redução do risco relativo (RRR) de 42% o estudo concluiu que “Double-dose clopidogrel significantly reduced stent thrombosis and major CV events (CV death, MI or stroke) in PCI”, embora considerassem o seguinte: “There was a modest excess in CURRENT-defined major bleeds but no difference in TIMI major bleeds, ICH, fatal bleeds or CABG-related bleeds” , mas o NNT para redução de trombose do stent foi de 166.
De acordo com os autores do estudo para cada 1000 pacientes SCA que foram submetido a ICP o uso de dose-dupla de clopidogrel por 07 dias comparado a dose standard preveniu 6 IAM e 7 trombose de stents ao custo de 3 hemorragias severas, mas sem aumento de sangramento fatal, relacionado a CABG ou pelos critérios do TIMI para sangramento maior ; e, para pacientes que não foram submetidos a ICP deveria ser mantida a dose standard do clopidogrel.
O TRITON TIMI-38 duplo-cego, por sua vez comparou um novo tienopiridinicos, prasugrel 60 mg dose de ataque + 10 mg/dia versus clopidogrel 300 mg dose ataque + 75 mg/dia em paciente portadores de SCA com Intervenção Coronariana Percutânea (ICP) planejada . Neste, o NNT para se obter redução do desfecho primário de morte CV, IAM e AVC foi de 46, de 77 para redução de trombose do stent, mas com NNH de 167 para eventos hemorrágicos graves, inclusive às custas de AVC hemorrágico fatal.
Considerando o nomograma apresentado neste blog para interpretação do NNT, será que estes achados permitem que de fato implantemos a estratégia do OASIS VII e do TRITON TIMI-38 na prática clínica, como tenho visto frequentemente em ambiente de hospitais universitários ou clínica privada? Por outro lado, no TRITON TIMI-38 a modesta redução de eventos clínicos, foi contrabalançada pelo excesso de eventos hemorrágicos inclusive fatais (AVC-H), que não foram vistos no OASIS VII. Será que o NNT nestes estudos não foram adequadamente entendidos pelos cardiologistas clínicos e intervencionistas? Tem a redução do risco relativo poder maior para recomendar uma conduta que a redução absoluta do risco e o consequente NNT?.
Sugiro que façamos uma revisita a estas evidências (OASIS VII/TRITON 38) para refletirmos melhor a nossa prática...”aprender mais para servir melhor”, eis o lema a ser adotado pelos médicos!
A imagem do link abaixo ilustra bem o post (pelo menos foi como me senti! ). A mistura do clássico "Le Penseur" com a imensidão de informação médica nos tempos modernos.
ResponderExcluirParabéns pelo site. Sem dúvida um oásis filosófico, diante desta desvirtuada medicina contemporânea.
http://3.bp.blogspot.com/_RCRspjkiQCU/TD4_EEqafEI/AAAAAAAAAcg/A-SQ2J1xfuA/s1600/L_O_pensador.jpg
Thiago Ferreira
Peço licença ao autor do blog para adicionar um link que irá auxiliar na melhor compreensão deste belo texto.
ResponderExcluirhttp://www.scielo.br/pdf/rbp/v27n2/a15v27n2.pdf
Parabéns pela publicação, sou frequentador assíduo do blog e gostaria de agradeçer pelos momentos de aprendizado e reflexão proporcionados.
Anivaldo Junior
Luis , um duvida.
ResponderExcluirPara calcular o NNT é necessario saber o RAR.Quando o teste estatístico utilizado é o teste de hipóteses e valor P ,não dá para saber o NNT.correto?
é por isto que a utilização do intervalo de confiança (estimativa ponto?tem surgido como alternativa ao teste de hipótese?
é mais fácil raciocinar com o NNT , principalmente no dia a dia ,do que saber se uma intervenção tem significancia estatística, correto?
Janine
Não, Janine. Primeiro você avalia o valor de P da diferença na incidência do desfecho entre os dois grupos. Se P < 0.05, é um dos critérios de veracidade da associação. Depois disso, você vai querer saber se essa associação verdadeira é também relevante. Então simplesmente calcule o NNT. Quando o desfecho é dicotômico, sempre dará para saber o NNT. É só subtrair um grupo por outro.
ExcluirTem que ter as duas coisas: primeiro significância estatística (valor de P), depois significância clínica (NNT).
ExcluirNão dá pra a analisar significância clínica, sem antes ver de a associação é verdadeira (significância estatística).
Texto claro e objetivo, parabéns pela excelente exposição de tão importante tema nos dias de hoje! Joaquim Custódio Jr., médico endocrinologista - Salvador/BA
ResponderExcluirExcelente texto
ResponderExcluirFantástico! Parabéns pela didática ao elaborar seus textos!
ResponderExcluirParabéns pelo texto. Muito claro e útil.
ResponderExcluirPeço licença para verificar possibilidade de um equívoco. No parágrafo abaixo parece haver uma troca de raciocínio entre os grupos. Grupo Controle - Risco 12% e Grupo Droga 8%.
Risco é a probabilidade do paciente apresentar um desfecho indesejado. Em trabalhos científicos isto é chamado de risco absoluto. Quando subtraímos o risco observado no grupo controle pelo risco observado no grupo tratamento, obtemos a redução absoluta do risco. Por exemplo, RA de morte no grupo droga é 12% e RA de morte do grupo placebo é 8% = RAR = 12% - 8% = 4%. Essa é a magnitude da redução absoluta do risco. Agora, NNT é 100 dividido pela RAR = 100/4 = 25.
Parabéns pelo texto. Muito claro e útil. Peço licença para alertar possível troca no raciocínio do paragrafo abaixo entre os dois grupos. Teste = 12% e Droga - 8%.
ResponderExcluirRisco é a probabilidade do paciente apresentar um desfecho indesejado. Em trabalhos científicos isto é chamado de risco absoluto. Quando subtraímos o risco observado no grupo controle pelo risco observado no grupo tratamento, obtemos a redução absoluta do risco. Por exemplo, RA de morte no grupo droga é 12% e RA de morte do grupo placebo é 8% = RAR = 12% - 8% = 4%. Essa é a magnitude da redução absoluta do risco. Agora, NNT é 100 dividido pela RAR = 100/4 = 25.
Parabens pela clareza. Nao tinha lido esse tema tão importante de forma tão elucidativa e cristalina.
ResponderExcluirObrigada pela sua explicação, de fácil compreensão, parabéns !
ResponderExcluirMuito bom!!
ResponderExcluirLuis, como calcular NNT quando o desfecho primário é uma diferença entre dois grupos de uma variável contínua? Diferença entre as médias dos grupos? Como pressão arterial? Tem como?
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