Da
Série Análise Crítica de Evidências sobre Terapia - Segunda Postagem
Na primeira postagem desta série
discutimos como avaliar a veracidade da informação científica sobre terapia.
Uma vez definido um grau aceitável de veracidade, devemos instituir o
tratamento? Não exatamente, pois para que se justifique um tratamento, o tipo
de informação trazido pelo trabalho (mesmo que verdadeira) precisa ser
relevante.
A relevância deve ser analisada de duas
formas. Primeiro, aquela informação verdadeira realmente garante benefício
clínico ao paciente? Segundo, o benefício clínico trazido é de magnitude
suficiente que justifique os esforços (custo, risco, às vezes desconforto) para
se instituir a terapia?
A primeira questão diz respeito ao tipo
de desfecho analisado. E a segunda questão ao famoso número necessário a tratar
(NNT), que melhor descreve a magnitude de um benefício.
Inicialmente devemos analisar qual é o
tipo de desfecho que foi definido como primário. E aí entra a importante distinção
entre desfecho clínico e desfecho substituto (surrogate, em inglês).
Desfecho clínico é o verdadeiro impacto da doença na
vida do paciente. É o que paciente sente, é morbidade (qualidade de vida) ou
mortalidade (tempo de sobrevida). Teoricamente, morte é o evento clínico mais
importante na hierarquia de relevância. Abaixo de morte, estão AVC, infarto, angina,
internamento por ICC, qualidade da visão em paciente com catarata, fratura em
paciente com osteoporose. Para que uma evidência sobre terapia seja
suficiente para recomendar a utilização da mesma, se faz necessário que o
desfecho avaliado seja de caráter clínico.
Desfechos
substitutos são variáveis laboratoriais ou fisiológicas que são utilizadas em
estudos que não têm poder estatístico para avaliar desfechos clínicos. Por
exemplo, no tratamento anti-hipertensivo, redução da pressão arterial é um
desfecho substituto da redução de AVC (desfecho clínico). Melhora da densidade
óssea na densitometria é um desfecho substituto, enquanto redução da incidência
de fratura é um desfecho clínico. Desfecho substituto é apenas uma informação
obtida em um exame complementar, a qual o paciente não sente. Ao fazer um Doppler de carótidas, podemos
demonstrar aterosclerose. Se o paciente for assintomático, essa aterosclerose
observada é um desfecho substituo de um futuro AVC que poderá acontecer. Mas
não há garantia alguma que irá acontecer. Da mesma forma, não há garantia de
que um tratamento que melhore esta aterosclerose reduza a probabilidade de AVC.
Como desfechos substitutos são em geral variáveis numéricas, se consegue poder estatístico para detectar mudança destes desfechos mesmo em estudos de porte modesto. Isso justifica a utilização de estudos com desfechos substitutos antes dos ensaios de desfechos clínicos.
Conceitualmente,
espera-se que a influência do tratamento no desfecho substituto se reflita em
benefício clínico. O problema é que a história da ciência médica está repleta
de situações nas quais um aparente benefício em desfecho substituto não causa
benefício clínico e às vezes causa até malefício: vernarinona é um inotrópico
positivo que melhora fração de ejeção (desfecho substituto), mas aumenta
mortalidade; flecainide é um anti-arrítmico que reduz extrassístoles (desfecho
substituto), mas aumenta mortalidade; torcetrapib aumenta em 70% o
HDL-colesterol (desfecho substituto), mas aumenta mortalidade; doxazozin, um
anti-hipertensivo testado no estudo ALLHAT, aumentou eventos cardiovasculares;
rosiglitazona reduz glicemia, porém há evidências de que aumenta eventos cardiovasculares;
vitaminas podem ter demonstrado efeito anti-oxidante em partículas de LDL
(desfecho substituto), mas não alteram risco de infarto. Isto ocorre porque os
sistemas biológicos são do tipo complexo, o que torna impossível prever o
verdadeiro efeito de uma intervenção, baseado na lógica. Por mais lógico que
possa ser.
Há ainda alguns desfechos que podem ser interpretados como
clínicos no que dizem respeito a qualidade de vida, porém são substitutos em
relação à eventos que levam a risco de vida. Por exemplo, redução de peso é um
desfecho clínico, pois melhora qualidade de vida em obesos. Por outro lado, a
redução de peso não é garantia de redução das conseqüências clínicas da
obesidade, tal como eventos cardiovasculares. De fato, sibutramina reduz peso
(embora pouco – apenas 5 Kg em ensaios clínicos randomizados), porém aumenta risco
de eventos cardiovasculares.
A indústria farmacêutica costuma tentar (e consegue)
convencer médicos da utilização de substâncias de benefício clínico não
comprovado, utilizando apenas argumentos de desfechos substitutos. Isso é muito
com anti-hipertensivos, como o tal do Aliskireno, droga já comentada neste Blog. Observem:
Diuréticos,
inibidores da ECA e antagonistas dos canais de cálcio possuem comprovação científica
de que sua utilização promove redução do risco de eventos cardiovasculares,
tipo infarto, AVC, óbito. Estas classes de drogas possuem efeito anti-AVC,
anti-infarto, anti-morte. Quanto ao Aliskireno, por enquanto esta é apenas
uma droga anti-hipertensiva. Mas estes são desfechos substitutos, sem garantia
de benefício clínico. Portanto, o Aliskireno não pode ser usado como
alternativa a drogas que possuem comprovação de proteção quanto a desfechos
clínicos. Não podem ser colocadas como drogas de primeira linha, tal como
sugerido na atual Diretriz de Hipertensão da Sociedade Brasileira de
Cardiologia.
Para complicar, no final do ano passado o estudo ALTITUDE
foi interrompido (ainda não publicado). Este era um ensaio clínico randomizado
para Aliskireno ou placebo, em hipertensos diabéticos que já vinham em uso de
IECA ou BRA. Houve aumento na incidência de AVC com o Aliskireno, o que motivou
à interrupção do estudo. Vejam só, a droga reduz pressão (desfecho substituto),
porém pode ser que aumente AVC (desfecho clínico). É o paradoxo dos desfechos,
um fenômeno frequente.
Portanto, um estudo de desfecho substituto tem relevância
limitada à geração da hipótese de benefício, servindo de degrau para a
realização de ensaios cujos desfechos sejam clínicos. Estes sim tem o poder de
modificar nossa conduta.
Mas os desfechos clínicos também devem ser analisados
criticamente quanto a sua importância. Primeiro quanto a sua hierarquia.
Eventos cardiovasculares, por exemplo, temos em ordem decrescente de valor:
morte, AVC, infarto, internamento por angina...
Mas não é só isso. Precisamos avaliar a definição do
desfecho. Vejamos o caso do infarto. Há estudos cuja definição de infarto
garante que o evento é clinicamente importante (dor precordial, corrente de
lesão do eletrocardiograma, ...), enquanto há estudos cuja definição de infarto
se aproxima mais de um desfecho substituto: por exemplo, elevação de marcador
de necrose após angioplastia. E AVC: temos variações de eventos transitórios
até eventos com alto grau de seqüela.
Tudo isso deve ser considerado.
Portanto, em primeiro lugar, precisamos avaliar a
qualidade do desfecho. Em segundo lugar, precisamos fazer uma avaliação
quantitativa do grau de redução do desfecho. Esse é o assunto da próxima
postagem: a magia do NNT.
Professor, vez por outra tenho algumas discussões com alguns colegas acerca da transposição de resultados de estudos americanos ou europeus, em centros de referência, para a realidade do SUS. Na nossa realidade, os pacientes não terão o mesmo grau de atenção e acesso a rede de saúde dos ensaios clínicos controlados. Será que tratamentos que, em centros de referência, tiveram "apenas" impacto em reinternação ou angina, teriam impacto em mortalidade no Brasil? Será que estes deveriam merecer um nível de recomendação "maior"?
ResponderExcluirDavi J. F. Solla
Davi, esta é a análise de Aplicabilidade, que vem depois da análise de relevância. Chegaremos lá.
ResponderExcluirExcelente texto! estou estudando a disciplina de MBE na faculdade de medicina, aqui em Recife, eo sr. é uma de nossas maiores referências.
ResponderExcluirMarcelo
Parabéns pelas aulas, são excelentes
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