Esta semana assisti ao
filme Um Método Perigoso (A Dangerous Method) que retrata a relação entre Freud, o pai psicanálise, e seu discípulo Jung. Este filme me fez lembrar de quem considero um dos pais da Medicina Baseada em Evidências
no Brasil, Dr. Carlos Alfredo Marcílio, e de sua influência em nosso pensamento
médico-científico.
O filme de ontem
me inspirou a relatar uma recente conversa
de fim de tarde com Dr. Marcílio, quando ele me relatou sua experiência nos
primórdios da medicina baseada em
evidências.
Em dezembro do
ano passado, Dr. Marcílio me telefona e fala de forma direta e objetiva: “impressionante como duas pessoas com tanto
em comum não conseguem um tempo para sentar e conversar”. Entendi a
mensagem e prontamente me agendei para ir à casa dele no dia seguinte, o que vinha prometendo há meses. Naquele final de tarde, na companhia de um vinho
do porto, como uma linda vista para o mar de seu apartamento em São Lázaro,
conversamos sobre a vida e sobre medicina baseada em evidências.
Esta postagem e
suas reflexões refletem o conteúdo desta conversa.
Dr. Marcílio morava
em Boston na década de 70, onde era residente de nefrologia em Harvard. Durante
sua residência, ele presenciou um período histórico, quando os conceitos
epidemiológicos se tornaram mais prevalentes no pensamento do médico clínico.
Epidemiologia é
uma ciência que surgiu muito antes disso, no início do século XX, promovendo
avanços significativos no campo da saúde pública, como controle de doenças
infecciosas e, na segunda metade do século passado, o descobrimento dos
fatores de risco cardiovascular. Esta última descoberta (Framingham Heart Study) é responsável pela progressiva queda da mortalidade cardiovascular que experimentam a maioria dos países do mundo, incluindo o Brasil.
No entanto, ao
longo das décadas permanecia uma dicotomia entre epidemiologia e raciocínio
clínico. O conhecimento de metodologia científica era de domínio dos epidemiologistas ou sanitaristas, enquanto o clínico não se preocupava com
isso. Uma lacuna histórica.
Lentamente, os
clínicos começaram a perceber que a decisão individual seria melhor embasada no
conhecimento obtido por estudos da coletividade, ou seja, de amostras
populacionais. Claro, estudando uma amostra de pacientes podemos chegar a uma
conclusão mais confiável do que considerar apenas algumas experiências individuais. Isso foi aproximando a clínica da epidemiologia. O termo Epidemiologia Clínica começa a ser usado com mais frequência.
O termo Epidemiologia Clínica foi criado muito tempo antes, na década de 30, por John Paul, que sugeria que conhecimento a nortear nossas decisões deve ser
proveniente de evidências epidemiológicas, em detrimento do achismo baseado em plausibilidade e da
“minha experiência clínica” restrita aos poucos e enviesados pacientes que
vivenciamos. Mas era um termo um tanto esquecido, ou pelo menos sua prática era esquecida. Dr. Marcílio vivenciou de perto este ponto de inflexão, o início da mudança de paradigma. Isto porque Harvard foi um dos principais locais onde a idéia floresceu.
Apesar da ênfase na Epidemiologia Clínica, percebeu-se que a dicotomia
permanecia com o passar dos anos, os clínicos em geral eram resistentes à
mudança de paradigma, pois não tinham aprendido medicina desta forma. Conta Dr.
Marcílio que foi na década de 80 que os estudiosos no assunto começaram a
discutir um termo que tirasse o estigma da epidemiologia e aproximasse a
ciência médica da prática clínica. Foi então que David Sackett e seu grupo da Universidade de
McMaster no Canadá cunharam o termo medicina
baseada em evidências.
Percebam que medicina
baseada em evidências não surgiu neste momento, foi apenas uma mudança de
nome, uma estratégia de marketing, no intuito de promover um avanço na prática
médica, avanço este que já deveria ter acontecido décadas atrás. Nesta época,
já de volta ao Brasil e como diretor do CNPQ, Dr. Marcílio trouxe o grupo da McMaster ao Brasil para promoção de cursos nesta área e se deu o início da difusão deste conhecimento em nosso país.
No entanto, percebemos que a dicotomia ainda existe de forma bastante prevalente. Ainda hoje quem mais entende
de metodologia científica são os epidemiologistas, que em sua maioria não
praticam clínica. Isso gera uma lacuna entre conhecimento cientifico e prática clínica.
Os clínicos, em sua maioria, se julgam distantes deste conhecimento. Esta
sequela história é a maior barreira à medicina
baseada em evidências.
Mas existem
outras barreiras. Em paralelo com o “surgimento” da medicina baseada em
evidências, os conflitos de interesse cresceram vertiginosamente nas últimas
décadas. Antigamente, eram em menor número as opções de fármacos, os métodos diagnósticos sofisticados, assim como procedimentos de alto custo.
Como desejável progresso tecnológico, surge o indesejável conflito de interesse
na prática médica. São mais remédios a serem prescritos, mais exames a serem
solicitados, mais material a ser usado em procedimentos. Mais propaganda a ser
realizada. Mais lucro de procedimentos.
Esta
coincidência cronológica entre surgimento do paradigma da medicina baseada em evidências com o ponto de inflexão do progresso
tecnológico bloqueou de certa forma a aplicação do paradigma. E isto ocorreu
por meio dos conflitos de interesse. Imagino que se o paradigma da epidemiologia clínica
tivesse se estabelecido tempos antes, como na década de 50, hoje estaríamos em outra fase.
Dr. Marcílio tem
sido uma das vozes mais ativas contra a influência maciça da indústria
farmacêutica no pensamento médico. A despeito dele ser nefrologista, testemunhei
sua presença eventual em congressos de cardiologia, geralmente “puxando a
orelha” da comunidade cardiológica quando esta se deixa seduzir em demasia pela
indústria.
Outro mecanismo
de inibição da medicina baseada em
evidências é o fato de que todo progresso tecnológico ativa nossa mente
cartesiana e a idéia de que a mera aplicação da tecnologia, do tratamento novo,
do exame novo, do novo procedimento fará bem ao paciente (mentalidade do médico ativo). Neste caso, as pessoas se esquecem de
procurar saber se a nova tecnologia de fato traz benefício clínico.
Mas Dr. Marcílio
é otimista e acho que este otimismo vem de vivência de tempos mais remotos,
quando menos se falava disso tudo. Começamos a ver nas escolas médicas alguns
focos de pensamento baseado em evidências: a Sessão de Medicina Baseada em
Evidência, criada e coordenada pelo Prof. Antônio Alberto Lopes (outro pioneiro
da epidemiologia clínica em nosso meio) no Hospital das Clínicas; o
surgimento da disciplina Raciocínio Clínico Baseado em Evidências no curso
médico da Escola Bahiana de Medicina há cinco anos, a qual tenho o prazer de
coordenar. Devo a idéia desta disciplina à mente constantemente criativa da Profa. Marta Menezes, coordenadora do curso. Outro aspecto positivo é o atual foco que a Associação Bahiana de Medicina está dando ao tema por meio de seu Diretor Científico Jorge Pereira e do presidente Antônio Carlos Vieira Lopes (ambos entusiastas da medicina baseada em evidências).
Porém ainda
estamos engatinhando. Quando o pensamento baseado em evidências estiver de fato presente no curso médico, não será necessária uma disciplina específica para
isso, pois todas as disciplinas abordarão seus assuntos sob esta ótica. Assim
como todas as sessões clínicas enfatizarão este paradigma.
Este é um mero resumo de uma conversa de fim de tarde, no fim do ano passado, que perpassa questões individuais até chegar na medicina baseada em evidências, o motivo de nossas constantes conversas neste Blog.
O filme Um Método Perigoso mostra
um Freud genial, que procura manter um pensamento científico, evitando os
devaneios místicos de Jung. Porém o Freud do filme tem uma diferença de Dr. Marcílio. O
primeiro prefere seguidores sem criatividade e se incomoda quando Jung propõe
novos paradigmas. O segundo é um constante incentivador. Por exemplo, devo a idéia da criação deste Blog a Dr. Marcílio.
O título deste filme também nos remonta a uma reflexão final. Não praticar medicina baseada em evidência é um método perigoso de fazer medicina.