* Quinta postagem da Série Análise Crítica de Evidências sobre Terapia.
* Terceira postagem da série Os Sete Princípios da Medicina Baseada em Evidências. Na primeira postagem apresentamos os primeiro três princípios; na segunda demonstramos o quarto princípio. Na quarta postagem nos antecipamos para o sétimo princípio. Nesta abordaremos o sexto princípio: princípio da complacência. Em postagem futura concluiremos com o quinto princípio e revisaremos todos simultaneamente.
Na série Análise Crítica de Evidências sobre Terapia,
abordamos os tópicos veracidade e relevância da eficácia terapêutica em várias postagens prévias (1, 2, 3, 4). Agora chega a hora de abordarmos o último
tópico, a aplicabilidade da
evidência.
É evidente que nosso pensamento tem sido bastante
rígido nas análises de veracidade e relevância, muitas vezes contradizendo
opiniões mais entusiasmadas em relação a certas formas de tratamento. Esta
rigidez do pensamento baseado em evidências se justifica pela preocupação em
não gerar falsas verdades, o que é pode ser bastante prejudicial (princípio da hipótese nula). Por outro
lado, na análise de aplicabilidade, vocês
perceberão que chega a hora da medicina
baseada em evidências assumir uma postura mais complacente. É o princípio da complacência.
Após concluirmos que uma evidência é verdadeira e relevante, devemos pensar em sua aplicabilidade. O ideal é que ela
seja aplicada a um maior número de pessoas possível.
Isso justifica a maior complacência na análise de aplicabilidade.
Por outro lado, não podemos extrapolar demais.
A decisão a
respeito da aplicabilidade requer maior maturidade científica e clínica, pois não é uma avaliação tão objetiva como as análises de veracidade e relevância. Isto faz com que
muitas vezes indivíduos decidam não aplicar terapia quando deveriam aplicar ou
extrapolar demais uma evidência, como se ela fosse verdadeira em qualquer
circunstância.
Isto passa pelos conceitos de validade interna e validade externa do
trabalho. Observem, validade interna
é o mesmo conceito da análise de veracidade, que se faz nas circunstâncias internas
do estudo em questão, ou seja, a veracidade de uma eficácia exatamente nos
paciente estudados e exatamente
como o tratamento foi aplicado. Já a validade externa descreve até que
ponto podemos extrapolar os resultados de um estudo para uma população
diferente da avaliada ou para uma forma de aplicação um pouco diferente da
realizada no estudo.
Aplicabilidade da terapia se refere a 3
aspectos: em quem esta será aplicada,
como será aplicada, onde será aplicada.
Vamos iniciar pelo problema mais comum: em quem será aplicada. Por exemplo,
quase todos os conhecimentos básicos sobre eficácia terapêutica em cardiologia
foram provenientes de ensaios clínicos realizados em países de primeiro mundo,
no final do século passado (benefício da trombólise ou angioplastia primário no
IAM, antitrombóticos nas síndromes coronarianas agudas, inibidor da ECA ou
beta-bloqueadores em ICC e inúmeros outros exemplos de uma grande lista). Estes
estudos não avaliaram o típico paciente brasileiro, de raça miscigenada. Então podemos
aplicar estes conhecimentos no brasileiro? Nossa decisão histórica foi que
poderíamos aplicar, ou seja, julgamos que a validade
externa daqueles estudos envolvia nossa população. Observe que se fôssemos
rígidos demais privaríamos nossos pacientes destes benefícios. Desta forma, a maior
complacência da medicina baseada em evidências na análise de aplicabilidade
permite que um maior número de pessoas se beneficie dos tratamentos. É por isso
que utilizamos tratamentos em pacientes octagenários,
embora eles não sejam bem representados por ensaios clínicos.
Por outro lado, não podemos ser
totalmente complacentes, essa deve ser uma análise caso a caso. Devemos aplicar tudo isso em uma paciente de 104 anos? Tenho minhas dúvidas ... Devemos ponderar melhor nestes casos extremos.
Então, como
fazer esta análise a partir de um ensaio clínico?
Em primeiro lugar, observamos cuidadosamente de quem se trata a amostra estudada, lendo a tabela de
características clínicas. Lá teremos acesso à média de idade, sexo, raça, gravidade da doença naquela amostra (fração de ejeção
na ICC, escore GRACE na síndrome coronariana aguda) e presença de co-morbidades
(função renal, diabetes). Vale salientar que os critérios de inclusão do estudo
nem sempre refletem a amostra estudada. Por exemplo, você pode ter como
critérios a inclusão de paciente de 18 a 75 anos, mas aquela doença é rara em
jovens e praticamente não há ninguém com idade < 30 anos. Sendo assim, temos que nos condicionar a contemplar bastante a tabela de características clínicas, usualmente a tabela 1 em artigos científicos.
Uma vez conhecendo exatamente quem foi
avaliado no ensaio clínico, vamos saber que é neste tipo de paciente que o
estudo tem a validade ideal. Vamos agora à validade externa. Quando nos
depararmos com um paciente diferente da amostra estudada, devemos nos
perguntar: existe alguma forte razão
para aquele benefício se perder neste tipo de paciente; ou para surgir um
efeito adverso grave. Ou como diz David Sackett, “nosso
paciente é tão diferente daqueles do estudo de forma que os resultados não se
apliquem a ele?”
Por exemplo, o clássico estudo SOLVD demonstrou que
enalapril reduz mortalidade em pacientes com ICC, cuja média de fração de
ejeção foi 25% e não tinha ninguém com fração > 35%. Vamos supor um paciente
sintomático, com fração de ejeção de 40%. Devemos usar enalapril? Existe
alguma forte razão para aquele benefício se perder neste tipo de paciente? A
resposta é não. Portanto nós costumamos usar inibidor da ECA em pacientes com
disfunção moderada ou até disfunção leve.
Evidências sobre tratamento de hipertensão é outro grande exemplo. Todos os ensaios clínicos que demonstram redução no risco de eventos cardiovasculares com o tratamento são realizados em amostras de hipertensos pelo menos moderados e de alto risco cardiovascular. Isto é feito para que a incidência de desfechos seja grande o suficiente para oferecer o poder estatístico necessário. Mesmo assim, nós extrapolamos estas evidências para pacientes com hipertensão leve e de baixo risco. Ou seja, qualquer paciente que se mantenha hipertenso apesar de medidas não farmacológicas serão colocados em tratamento medicamentoso. É mais um exemplo do princípio da complacência.
Ao extrapolar, devemos ter em mente que a magnitude do benefício tente a ser menor (para uma mesma redução relativa do risco, o NNT aumenta na medida em que o risco absoluto diminui). Ou seja, se um hipertenso de baixo risco tiver sintomas de hipotensão postural com a droga, uma eventual suspensão não lhe deixará tão vulnerável quando um paciente de alto risco.
Na verdade, quando extrapolamos para amostras de baixo risco (fração de ejeção maior, pressão arterial menor), devemos recalibrar o NNT, a partir da incidência de eventos esperada na população em questão. É só aplicar a redução relativa do risco (que tende a ser relativamente constante) no risco absoluto esperado daquele tipo de população sem tratamento. Isso nos dará a redução absoluta do risco esperada, que permitirá o cálculo do NNT na amostra de baixo risco (100/RAR).
Este tipo de raciocínio também se baseia no fato de que
interação qualitativa
entre o efeito da droga e o tipo do paciente é um fenômeno muito raro em
medicina. Mais comum é
interação
quantitativa. O que quer dizer isso?
Interação qualitativa é uma droga ser
benéfica em um subgrupo de paciente e maléfica em outro subgrupo (a qualidade
do efeito da droga muda). Isso quase nunca ocorre, em se considerando o
mesmo desfecho nas duas análises.
Interação quantitativa é quando a magnitude do efeito da terapia muda com o
tipo de paciente, ou seja, o paciente com fração de
ejeção maior vai ter menor benefício ou na pior das hipóteses não vai ter
benefício. É pouco provável que na presença de benefício em pacientes com
fração muito baixa, haja malefício nos de fração mais alta. Esta observação de como as evidências se comportam é a base científica para o
princípio da complacência na análise de aplicabilidade.
Este mesmo raciocínio nos induz a
utilizar inibidor da ECA em pacientes com miocardiopatia chagásica, nos quais
esta terapia não foi suficientemente testada. Já quanto ao uso de
beta-bloqueador em chagásicos, acho que esta análise deve ser mais criteriosa e
individualizada, pois estes pacientes possuem mais predisposição a
bradiarritmia (menor validade externa). No outro extremo, a aplicabilidade das evidências de desfibrilador implantável (CDI) pode ser pequena nos chagásicos. O
número de choques nestes pacientes é muito alto, podendo até ser prejudicial,
causar lesão miocárdica e agravamento da função ventricular. Este tópico é discutido de forma provocativa por Anis Rassi Jr., em artigo publicado no J Cardiovasc Electrophysiol em 2007. Por este motivo,
será realizado no Brasil o ensaio clínico CHAGASIC, idealizado por este autor e financiado pelo Ministério da Saúde.
Enoxaparina foi demonstrada eficaz para o
tratamento de SCA, mas pacientes com disfunção renal severa não fizeram parte
dos estudos. Neste caso, há razão para que a droga cause problema nestes
pacientes, pois a disfunção renal pode provocar aumento da ação anticoagulante,
causando sangramento. Portanto não devemos extrapolar para estes pacientes.
E assim vai, são múltiplos os exemplos e
nós devemos pensar, refletir caso a caso. Observem que nesta situação, não há
uma medida específica (valor de P, NNT, RR, RA). É um pensamento criterioso que
deve avaliar o grau de extrapolação da validade interna de um estudo, ou seja,
a validade externa. Gosto de denominar isso de limiar de validade externa, o qual varia com cada situação.
Até aqui comentamos da validade de uma
evidência para o tipo de paciente. Mas também devemos pensar sobre validade em
relação à forma como a terapia é
aplicada. Vejamos. Imagine que um estudo mostra benefício da atorvastatina
80 mg versus placebo. Mas isso é uma terapia de alto custo. Podemos então aplicar a evidência
utilizando atorvastatina 10 mg se isto for suficiente para trazer o LDL-colesterol para níveis ótimos? Parece-me que sim. Na pior das hipóteses teríamos uma redução da magnitude do benefício, que possivelmente não será grande se 10 mg for suficiente para atingir um LDL-colesterol de 70 mg/dl.
Percebam que muitas vezes precisamos
variam um pouco a forma de tratamento para torná-lo factível. Até um certo
ponto, isso é aceitável. Usar uma droga mais cara na fase aguda e depois mudar
para uma droga de custo mais baixo para o uso crônico pode ser aceitável, se
não houver uma
grande razão para isso causar problema. Por exemplo, em pacientes com síndromes
coronarianas agudas de alto risco, Ticagrelor ao invés de Clopidogrel pode ter
um NNT que justifique seu uso da fase aguda, mas esta é uma droga de alto custo
e, a depender do paciente, pode ser razoável fazer a transição para
Clopidogrel no uso de longo prazo.
Diferentemente do que alguns pensam, medicina baseada em evidências não é copiar com exatidão a conduta de ensaios clínicos na prática.
Um ensaio clínico é feito para testar uma hipótese. Sendo assim, a especificidade da amostra estudada e outros aspectos de seu desenho existem para evitar vieses ou maximizar o contrate de resultado entre intervenção e controle, aumentando seu poder estatístico. Uma vez provada a hipótese, a tradução disso para a prática clínica pode sofrer certa variação a fim de que se torne realidade. Isso não é infringir a evidência, é valorizá-la a ponto de criar condições para que esta seja aplicada ao maior número de pacientes.
Por fim, onde será aplicada a terapia. Este item diz respeito a terapias que
dependem da habilidade da equipe médica. Ou seja, procedimentos invasivos ou
cirurgias. Transcatheter Aortic-Valve Implantation (TAVI)
é uma forma
percutânea de corrigir doença da valva aórtica, em pacientes que queremos
evitar cirurgia. Esta forma foi validada pelo ensaio clínico PARTNER, que mostrou redução de mortalidade quando comparado ao tratamento clínico de pacientes com impossibilidade clínica de cirurgia. No
entanto, devemos antes analisar se nossa equipe de clínicos, intervencionistas,
ecocardiografistas está suficientemente treinada para reproduzir os resultados
deste estudo.
Um segundo aspecto que diz respeito
ao onde será aplicada é a questão de custo. Uma terapia pode ser
eficaz, porém não custo-efetiva, fazendo um país de medicina racional e
socializada decidir pela não implementação generalizada daquele tratamento.
Ao falar deste assunto, devemos mencionar
os
guidelines de aplicabilidade de
terapia, os quais classificam o nível de evidências das recomendações em A, B
ou C. Nesta classificação, há com frequência violação dos princípios da
medicina
baseada em evidências. Nível A é aquela situação em que há comprovação da
veracidade do tratamento, ou seja, um ensaio clínico randomizado de boa
qualidade, demonstrando benefício em desfecho clínico; nível C é ausência de
evidência, quando a recomendação ocorre por consenso de especialista. Este só
se justifica em situações de plausibilidade extrema (
paradigma do para-quedas). Muitos
têm feito estas recomendações em outras situações, de forma bastante
inadequada. E o nível B, quando se aplica? Exatamente nas situações que estamos
discutindo nesta postagem. Ou seja, em situações em que a evidência não diz
respeito àquele tipo específico de população, mas há uma evidência de qualidade
em outra população que se decide extrapolar. Ou seja, afirmar que devemos
utilizar IECA em pacientes com fração de ejeção de 45% não é apenas consenso de
especialistas, é uma recomendação baseada evidências de pacientes com fração de
ejeção de 25%. Nível B não se aplica a evidências de veracidade questionável,
tais como estudos com vieses importantes ou que avaliam desfechos
substitutos. Estes devem gerar hipóteses, mas não recomendar terapias.
Sendo assim, após ler o artigo (rígida análise
de
veracidade e
relevância), devemos refletir sobre
em quem, quando e onde aplicaremos aquela terapia. Nesta postagem
procuramos traçar uma sequência de pensamento, que aborda os aspectos que
necessitam ser avaliados neste tipo de pensamento que requer maturidade científica
e julgamento clínico.
O
princípio da complacência na análise de
aplicabilidade de evidências potencializa o impacto positivo de uma evidência que
julgamos ser
verdadeira e
relevante. Esta é a hora de sermos mais
contemplativos.
* Na próxima postagem desta série, discutiremos análise de subgrupo, um importante tópico relacionado a aplicabilidade da terapia.