domingo, 22 de setembro de 2013

Less is More versus More is More: Estudo PRAMI



Nesta semana, o estudo PRAMI foi publicado no New England Journal of Medicine, simultâneo à apresentação de seus resultados no Congresso Europeu de Cardiologia. O resultado deste estudo muito me chamou atenção, pois vai de encontro a um quase onipresente princípio, o less is more.

O paradigma less is more prevalece na maioria das condutas médicas em que se comparou tratamento intenso versus tratamento moderado. São consistentes e repetidas as evidências de que fazer menos exames (indicar para as pessoas certas) ou evitar tratamento exagerado (glicemia, pressão arterial, transfusão) traz maior probabilidade de benefício líquido aos indivíduos. Daí a surge a aplicação da expressão menos é mais em medicina.

Em postagem antiga, demos várias exemplos de comprovação deste princípio em diferentes situações médicas.

Esta expressão foi difundida em meados no século XX pelo alemão LudwigMies van der Rohe, um dos pais da arquitetura moderna, que primava pelo estilo claro e simples, expressando o espírito da era pós-guerra, em contraposição ao estilo gótico ou barroco. Percebemos este estilo nas obras de Frank Lloyd Wright (Guggenheim) ou Oscar Niemeyer. Esta tendência surgiu na renascença, quando Leonardo da Vinci afirmou “simplicidade é a sofisticação mais requintada”. Um exemplo moderno da aplicação deste princípio estético foi o fascínio de Steve Jobs pelo less is more, criando produtos cuja estética reside principalmente em sua linearidade e simplicidade tecnológica. Há algo mais simples do que um telefone sem teclas?

Porém, é na medicina que este paradigma é verdadeiramente comprovado por evidências científicas. A editora da revista JAMA Internal Medicine, Rita Redberg, criou a série de artigos Less is More, já com 83 publicações, que envolvem as mais diferentes situações clínicas em que este paradigma se faz presente. 

Mas por que o estudo PRAMI contradiz o paradigma less is more?

O ensaio clínico PRAMI estudou pacientes submetidos a intervenção coronária primária no infarto com supradesnível do ST e que tinham outras placas provocando estenose > 50%, além da lesão culpada. Estes pacientes foram randomizados para realizar intervenção apenas da artéria culpada pelo infarto (conduta corrente, less is more) versus intervenção não só da lesão culpada, mas também das demais placas presentes (more is more). Pois bem, o PRAMI demonstrou que o more is more foi superior ao less is more na prevenção do desfecho combinado de óbito, infarto e angina refratária em seguimento de 2 anos. 

Este é o tipo de evidência capaz de mudar nosso paradigma de tratamento do infarto com supradesnível do ST. Em medicina baseada em evidências, devemos aceitar evidências de qualidade, independente de nossa crenças (less is more). Mas antes precisamos avaliar a qualidade das evidências. 

Análise Crítica da Evidência do PRAMI

Em primeiro lugar, devemos perceber que este é um ensaio clínico relativamente pequeno, apenas 465 pacientes randomizados, um número bem menor do que o normalmente visto em ensaios clínicos de fase III. Por si só, isto não invalida do trabalho, porém o deixa mais vulnerável aos efeitos de erros aleatórios ou sistemáticos.

Seguindo o check-list de nossa última postagem, o estudo passa na maioria das checagens de erros sistemáticos (vieses), porém um deles necessita melhor avaliação: vies de aferição do desfecho. O desfecho primário deste estudo é o combinado de morte cardiovascular, infarto e angina refratária. Este último é sozinho responsável por 57% dos desfechos do estudo e por ser mais subjetivo (soft), fica mais sujeito a enviesamento. 

Em um momento pontual do texto, o trabalho é descrito como single blind, indicando que apenas uma das partes, o médico ou o paciente, está cega em relação à alocação. Embora não esteja especificado qual das partes, deduzo que seja o paciente cego, sendo que o pesquisador tem conhecimento da alocação. Cegar o paciente previne que o efeito placebo corrompa este desfecho. Por outro lado, o pesquisador pode interpretar um desfecho como angina refratária ao saber que o paciente não foi plenamente revascularizado. 

O ideal em um estudo aberto seria considerar apenas desfechos hards. Porém sendo este um estudo pequeno, desfechos hards não teriam a frequência necessária para gerar um poder estatístico satisfatório. Portanto a solução deveria ser cegar o estudo e isto não foi feito plenamente.

Nota-se que os autores tiverem o “cuidado” de considerar apenas anginas que fossem refratárias. A primeira vista isso parece tornar o desfecho mais duro, porém percebam a realidade: ter angina ou não ter é algo mais objetivo do que definir se a angina é refratária ou não. Uma vez tendo angina, isto pode gerar um ajuste de droga, porém o pesquisador que sabe que ficou com lesão não abordada tende a julgar que o ajuste farmacológico não foi suficiente para o controle de seu sintoma. Isto mostra que no caso de um estudo aberto, qualificar um sintoma pode ser mais subjetivo do que simplesmente avaliar se o sintoma ocorreu ou não. Desta forma, em um estudo aberto a definição de refratária não torna o desfecho angina menos vulnerável ao viés de aferição, pode tornar até mais vulnerável. 

Da mesma forma aparentemente “cuidadosa”, os autores consideraram apenas as anginas que tinham isquemia miocárdica demonstrada por exames funcionais. Este é outro detalhe que a primeira vista sugere um desfecho mais criterioso (hard), porém faz exatamente o contrario. Claro que um paciente que tem lesão residual tem maior probabilidade de ter isquemia quando comparado ao paciente que fez abordagem de todas as suas lesões. Este critério, na verdade, gera um preconceito de que os pacientes do grupo mais conservador terão mais angina refratária. Foi incorreto utilizar um critério de imagem para definir um desfecho clínico, principalmente porque, independente do desfecho, um grupo com certeza terá mais isquemia no exame de imagem. Esta foi uma forma pré-concebida de garantir que o desfecho angina fosse mais frequente no grupo que não realizou revascularização completa. 

Por fim, precisamos falar de morte cardiovascular. Tenho dito que morte é o desfecho mais hard que existe, ninguém vai errar sua aferição. Por outro lado, morte de causa específica (cardiovascular) é um desfecho sujeito a interpretações das mais diversas: imaginem um paciente interna por infarto, realiza coronariografia, desenvolve insuficiência renal por contraste e morre - esta morte é cardiovascular ou renal? Ou um paciente interna por pneumonia, durante o curso da infecção apresenta um infarto e morre - morte cardiovascular ou infecciosa? Independente das respostas corretas, observem que há justificativa para qualquer das definições do desfecho.

Desta forma, percebam que uma “cuidadosa” definição de desfechos, aliada ao caráter aberto da observação, pode definir a priori o resultado do estudo de acordo com o interesse do investigador. Este estudo é bom exemplo disso.

Passando para a segunda parte de nosso check-list, entramos na questão do erro aleatório, proveniente do acaso. Vejam os quatro pontos a checar e adivinhem onde está a falha. 

Este é um estudo truncado!! De novo? Por que isso, interromper um estudo tão pequeno justamente no momento em que o resultado está favorável à hipótese testada? Justamente porque ao continuar o estudo, corre-se o risco do resultado (que pode ser por acaso) desaparecer. Já exemplificamos neste Blog inúmeros casos de estudos truncados (Xigris é o mais famoso, inclusive com postagem específica sobre esse tema). Como mencionamos previamente, um interessante trabalho publicado no JAMA mostrou que quando o número de desfechos é menor que 200, o risco de um resultado superestimado fica bem mais alto. Este é o caso do PRAMI.

Observem então que o PRAMI combina algumas características perigosas. Fazendo uma teoria de conspiração, é como se os autores pensassem: vamos fazer um estudo bem pequeno, ajustar os desfechos de forma a favorecer nosso interesse e quando o estudo mostrar positividade, a gente interrompe na hora, para garantir o resultado.

Implicações Práticas

O resultado do PRAMI, caso verdadeiro, mudaria um importante paradigma no tratamento do infarto. Nesta circunstância clínica, trocaria o paradigma do less is more para o more is more

Pode até ser que o resultado do PRAMI seja verdadeiro, mas não é uma garantia. O princípio científico da hipótese nula afirma que na ausência de evidência forte o suficiente, devemos permanecer com a ideia da ausência do fenômeno. Nesta discussão, não estamos afirmando que o tratamento das múltiplas angioplastias não seja benéfico. Estamos apenas chamando a atenção de que não podemos afirmar que seja benéfico. Percebam o detalhe filosófico. 

Esta mudança de paradigma promoveria aumento significativo da (já enorme) quantidade de intervenções coronárias, gerando um curso logístico e econômico ainda mais elevado do que o já existente.

Sou totalmente a favor de mudanças de paradigma, em postagem recente fiz uma apologia à transgressão, quando citei Nilton Bonder. No entanto, mudanças de paradigmas devem ser mediadas por argumentos mais fortes do que aqueles que sustentam a ideia corrente. O estudo PRAMI não tem nível suficiente para promover esta mudança.

13 comentários:

  1. Sensacional! Merece uma "carta ao editor".

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  2. Adorei, principalmente a comparação com as artes e a arquitetura.

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  3. Perfeito. Faz sentir orgulho da medicina baiana. Parabéns pela clareza do texto Luis.

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  4. São pessoas como o Luis, indivíduos "com tempo" para fazer estas coisas (uma franca provocação à desculpa da falta de), que me fazem seguir acreditando na Medicina. Pessoas que pensam, certo ou errado - mas coisa linda o simples ato de pensar [mais] livre, solto... Às vezes erra então, no momento ou na antecipação. E várias não ajuda muito, como quando critica aquilo que traria conforto (há algo mais inquietante para a mente e o coração do que a dúvida???) e não tem respostas definitivas para dar. Mas, PARABÉNS, Luis Correia!

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  5. Outras observações:
    estudo patrocinado pelo NHS - a princípio sem interesse comercial.
    autores nao declaram conflito de interesse, com exceção dos Wald, que são acionistas da polypill (sem relação com o estudo)
    IAM anterior mais presente no controle (29 x 39%)
    mais diabéticos no controle (15 x 21%)
    pacientes com angina refratária: 63% usavam nitrato no grupo controle - terapia subótima?
    sem informação sobre tempo pota-balão--> ausência de dado que muda significativamente o prognóstico.

    Uma pena que não se possa aceitar os dados desse trial, com tantos erros metodológicos

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  6. Parabéns, excelente comentário. Eu gostaria de acrescentar apenas mais um. Faltou comentar o problema do grupo controle. Conforme meta-análise abaixo, e conforme nossa prática atual, o grupo controle deveria ser um grupo de "staged PCI". No PRAMI, os investigadores foram explicitamente (HÁ MENÇÃO NA PARTE DE MÉTODOS) desestimulados a realizar "staged PCI". "This meta-analysis supports current guidelines discouraging performance of multivessel primary PCI for STEMI.
    When significant nonculprit vessel lesions are suitable for PCI, they should only be treated during staged
    procedures. (J Am Coll Cardiol 2011;58:692–703)

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  7. Prami foi simples cego (pacientes não sabiam sua randomizacao)

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  8. Vocês tem razão, o estudo é single blind. Observem que corrigi o texto, obrigado.

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  9. Observem também que a nossa conclusão continua a mesma.

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  10. mais um comentário que reforça a conclusão: o critério de infarto era de, nos primeiros 14 dias após a intervenção, somente admitir infartos COM SUPRA e com EVIDÊNCIA ANGIOGRÁFICA de trombo, ou seja, em até 14 dias após a intervenção, só se mediu infartos com supra que foram cateterizados novamente!!!

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  11. Nesta discussão a evidência maior é que os vieses não foram ao acaso portanto significativas
    Parabéns!
    Fernando Neiva

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