Depois de
divulgar nossa última postagem, em que analiso a falta de evidências sobre o
tratamento da hipertensão leve, fiquei curioso em saber da opinião de Flávio.
Sabia que ele talvez não concordasse com minha ideia, visto que sua principal
linha de pesquisa é voltada para a hipótese do tratamento de pré-hipertensos.
No caso dele, totalmente isento de conflito de interesses.
Desta forma,
resolvi interromper seu período sabático em Harvard e puxar este interessante
assunto científico. Meu email resultou em uma intensa troca de ideias
científicas que varou pela madrugada de terça. Com a permissão de Flávio,
compartilharei trechos desta conversa, delegando partes pessoais. Prestem
atenção na profundidade científica de Flávio. Suas hipóteses são muito bem
embasadas.
Comecei provocando o assunto com uma pergunta
conceitual:
Flávio, de onde vem a definição de HAS como PAS de 140
ou PAD de 90 mmHg? Quanto a risco cardiovascular, há um ponto de inflexão neste
valor de 140/90?
Flávio:
Olá Luis, que coincidência teu e-mail. Meu filho
Felipe, que acessa mais costumeiramente teu blog, mandou tua nota sobre a HAS
leve, onde me citas, muito obrigado. Acho, no entanto, que estás barking to
the wrong tree. Ótimo que levantaste o assunto diretamente comigo. Aquela
meta-análise Cochrane se limita a poucos estudos que fizeram esta pergunta (mild hypertension) há muitos anos,
estudos sem poder estatístico, pois os participantes eram saudáveis. O risco é
evidentemente contínuo e começa bem embaixo, como demonstraram os autores de
coortes em meta-análises poderosas. A primeira em 1990, a segunda em 1995 e a
terceira, definitiva, de 2002.
Cotejando estes
trabalhos é que desenhei as curvas da apresentação em anexo (foto), preparando-me para
responder a pergunta que alguém me faria um dia e eis que de repente, 10 anos
após, tu me fizeste!
A questão é a
seguinte, o risco duplica a cada 10 de diastólica ou 20 de sistólica, começando
em 115 e 75, pelo menos, talvez menos em mais jovens. As curvas exponenciais
que fiz espelham o fato, dobrar valores baixos não tem quase repercussão (1
para 2, 2 para 4), mas ao se aproximar de 140 e 90 a inclinação fica evidente
(16 para 32, 32 para 64, isto de risco absoluto, para qualquer denominador). Nas
apresentações originais das meta-análise de 1990 e 2002 apresentam somente
eixos verticais exponenciados, que retificam os riscos, a análise de 1995 é a
única com riscos reais no eixo vertical, portanto gerando curvas. As coortes
pequenas, como Framingham, que tem até trabalhos relativamente recentes, não perceberam este fenômeno matemático contínuo, e achando que não havia risco abaixo de 90 ou 140. Assim,
hipertensão foi por muito tempo 160/95 (não tinhas nascido), 160/100 para os
britânicos, depois indo para os 140/90.
Mas olha, tenho
certeza substancial, o máximo que pode ter talvez um cientista que sempre
trabalha com a possibilidade de sua hipótese conceitual ser refutada, de que
começa mesmo em 115/75, pelo menos, este será o valor diagnóstico de hipertensão no
futuro. Há abundantes evidências de risco CV em PA abaixo de 140/90, dano em
órgão-alvo e a prova de conceito, veja meu artigo anexo. Depois de amanhã
apresento parte disto que te disse em seminário aqui em Harvard, estou há menos
de 48 horas da expulsão dos Estados Unidos, por atentado contra a ciência
convencional. Grande abraço, Flávio.
Flávio,
fico orgulhoso de ser o primeiro a lhe fazer esta
pergunta. Acertei em cheio, só mesmo você poderia me responder de forma tão completa. Fico
convencido, há um ponto de inflexão em 140 mmHg, parece nítido! Baseado nisso,
é desejável ser portador de uma pressão mais baixa possível, digamos 115/75
mmHg.
Agora vem a segunda questão: é desejável ter nascido
com 115 ao invés de 130 (fato), mas isto garante que usar medicação para
reduzir de 130 para 115 produz benefício? O benefício do tratamento da HAS leve
é uma hipótese plausível ou um fato?
Se for apenas uma hipótese plausível, deveria ter o
mesmo nível de recomendação que 160, ou deveria ser uma conduta mais
individualizada de acordo com nosso paciente?
Faz sentido minha reflexão?
Flávio: Luís, bom papo para a
noite aqui, aí 2:20, não dormes? Vamos por partes, como diz Jack o estripador.
Reduzir PA de 130
para 115 reduz o risco inequivocamente em quem tem doença cardiovascular, anexo
outro artigo meu, já antigo, onde reviso os tradicionais trials de prevenção
secundária e em stroke e em insuficiência cardíaca em que se pensava serem
devidos aos tais efeitos pleiotrópicos, é tudo PA. Os benefícios apareceram ali
porque o risco absoluto era grande. Falta estudo com desfecho primordial em
pré-hipertensão, e não teremos, pois o risco absoluto é muito baixo, precisaria
muita gente. O risco relativo é matematicamente o mesmo, anexo artigo em que
discuto a pré-hipertensão, base para o PREVER prevenção, assunto que abordarei
aqui quarta. E não tem curva J, o outro artigo anexado bem recente meu e de
Sandra, ali rediscuto o assunto e explico o ACCORD.
Flavio, genial essa sua observação conjunta da falta
de interação de hipertensão e benefício do Ramipril no HOPE. Fui no HOPE e
conferi que realmente não há interação. Aí alguém poderia dizer, mas isso é
efeito pleiotrópico. Daí você traz o ALLHAT negando isso. Concordo, para mim,
efeito pleiotrópico é puro marketing da indústria. Vivo dizendo isso. Gostei
desse argumento!!
Minha
Análise Final
O maior valor de um cientista está nas perguntas que
este elabora, mais do que nas respostas. Devo reconhecer que a pergunta de
Flávio é brilhante e muito bem embasada: há um limite inferior para o
tratamento hipotensor?
Talvez nossa diferença resida na minha opinião de que
isso ainda é uma pergunta e Flávio está praticamente convencido da resposta.
Assim é que a ciência se desenvolve, do forte e
intenso debate de ideias. Obrigado Flávio!
Excelente!! Aprendi muito!
ResponderExcluirEduardo Darze
Luís Cláudio,
ResponderExcluirExcelente postagem. Aprender sobre um assunto através de uma fonte que é consenso é o melhor para saber sobre determinado tema, mas nada melhor que ler diálogos assim para estimular o espírito científico. Lembrei das cartas que os físicos do século XX trocaram no berço na física quântica. Rs.
O segundo arquivo "em anexo" (Blood pressure-lowering drugs: essential therapy for some patients with normal blood pressure) não está disponível para acesso pelo portal CAPES. Poderia disponibilizá-lo para download?
Abraço,
Felipe C Argolo
Excelente - debates como estes nos ensina muito!
ResponderExcluirRoberto Dultra