sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Café Científico com Flávio Fuchs

Depois de divulgar nossa última postagem, em que analiso a falta de evidências sobre o tratamento da hipertensão leve, fiquei curioso em saber da opinião de Flávio. Sabia que ele talvez não concordasse com minha ideia, visto que sua principal linha de pesquisa é voltada para a hipótese do tratamento de pré-hipertensos. No caso dele, totalmente isento de conflito de interesses.

Desta forma, resolvi interromper seu período sabático em Harvard e puxar este interessante assunto científico. Meu email resultou em uma intensa troca de ideias científicas que varou pela madrugada de terça. Com a permissão de Flávio, compartilharei trechos desta conversa, delegando partes pessoais. Prestem atenção na profundidade científica de Flávio. Suas hipóteses são muito bem embasadas.

Comecei provocando o assunto com uma pergunta conceitual:

Flávio, de onde vem a definição de HAS como PAS de 140 ou PAD de 90 mmHg? Quanto a risco cardiovascular, há um ponto de inflexão neste valor de 140/90?

Flávio: Olá Luis, que coincidência teu e-mail. Meu filho Felipe, que acessa mais costumeiramente teu blog, mandou tua nota sobre a HAS leve, onde me citas, muito obrigado. Acho, no entanto, que estás barking to the wrong tree. Ótimo que levantaste o assunto diretamente comigo. Aquela meta-análise Cochrane se limita a poucos estudos que fizeram esta pergunta (mild hypertension) há muitos anos, estudos sem poder estatístico, pois os participantes eram saudáveis. O risco é evidentemente contínuo e começa bem embaixo, como demonstraram os autores de coortes em meta-análises poderosas. A primeira em 1990, a segunda em 1995 e a terceira, definitiva, de 2002.

Cotejando estes trabalhos é que desenhei as curvas da apresentação em anexo (foto), preparando-me para responder a pergunta que alguém me faria um dia e eis que de repente, 10 anos após, tu me fizeste!



A questão é a seguinte, o risco duplica a cada 10 de diastólica ou 20 de sistólica, começando em 115 e 75, pelo menos, talvez menos em mais jovens. As curvas exponenciais que fiz espelham o fato, dobrar valores baixos não tem quase repercussão (1 para 2, 2 para 4), mas ao se aproximar de 140 e 90 a inclinação fica evidente (16 para 32, 32 para 64, isto de risco absoluto, para qualquer denominador). Nas apresentações originais das meta-análise de 1990 e 2002 apresentam somente eixos verticais exponenciados, que retificam os riscos, a análise de 1995 é a única com riscos reais no eixo vertical, portanto gerando curvas. As coortes pequenas, como Framingham, que tem até trabalhos relativamente recentes, não perceberam este fenômeno matemático contínuo, e achando que não havia risco abaixo de 90 ou 140. Assim, hipertensão foi por muito tempo 160/95 (não tinhas nascido), 160/100 para os britânicos, depois indo para os 140/90.

Mas olha, tenho certeza substancial, o máximo que pode ter talvez um cientista que sempre trabalha com a possibilidade de sua hipótese conceitual ser refutada, de que começa mesmo em 115/75, pelo menos, este será o valor diagnóstico de hipertensão no futuro. Há abundantes evidências de risco CV em PA abaixo de 140/90, dano em órgão-alvo e a prova de conceito, veja meu artigo anexo. Depois de amanhã apresento parte disto que te disse em seminário aqui em Harvard, estou há menos de 48 horas da expulsão dos Estados Unidos, por atentado contra a ciência convencional. Grande abraço, Flávio.

Flávio,

fico orgulhoso de ser o primeiro a lhe fazer esta pergunta. Acertei em cheio, só mesmo você poderia me responder de forma tão completa. Fico convencido, há um ponto de inflexão em 140 mmHg, parece nítido! Baseado nisso, é desejável ser portador de uma pressão mais baixa possível, digamos 115/75 mmHg.

Agora vem a segunda questão: é desejável ter nascido com 115 ao invés de 130 (fato), mas isto garante que usar medicação para reduzir de 130 para 115 produz benefício? O benefício do tratamento da HAS leve é uma hipótese plausível ou um fato?

Se for apenas uma hipótese plausível, deveria ter o mesmo nível de recomendação que 160, ou deveria ser uma conduta mais individualizada de acordo com nosso paciente?

Faz sentido minha reflexão?

Flávio: Luís, bom papo para a noite aqui, aí 2:20, não dormes? Vamos por partes, como diz Jack o estripador.

Reduzir PA de 130 para 115 reduz o risco inequivocamente em quem tem doença cardiovascular, anexo outro artigo meu, já antigo, onde reviso os tradicionais trials de prevenção secundária e em stroke e em insuficiência cardíaca em que se pensava serem devidos aos tais efeitos pleiotrópicos, é tudo PA. Os benefícios apareceram ali porque o risco absoluto era grande. Falta estudo com desfecho primordial em pré-hipertensão, e não teremos, pois o risco absoluto é muito baixo, precisaria muita gente. O risco relativo é matematicamente o mesmo, anexo artigo em que discuto a pré-hipertensão, base para o PREVER prevenção, assunto que abordarei aqui quarta. E não tem curva J, o outro artigo anexado bem recente meu e de Sandra, ali rediscuto o assunto e explico o ACCORD.

Flavio, genial essa sua observação conjunta da falta de interação de hipertensão e benefício do Ramipril no HOPE. Fui no HOPE e conferi que realmente não há interação. Aí alguém poderia dizer, mas isso é efeito pleiotrópico. Daí você traz o ALLHAT negando isso. Concordo, para mim, efeito pleiotrópico é puro marketing da indústria. Vivo dizendo isso. Gostei desse argumento!!

Minha Análise Final

O maior valor de um cientista está nas perguntas que este elabora, mais do que nas respostas. Devo reconhecer que a pergunta de Flávio é brilhante e muito bem embasada: há um limite inferior para o tratamento hipotensor?

Talvez nossa diferença resida na minha opinião de que isso ainda é uma pergunta e Flávio está praticamente convencido da resposta.


Assim é que a ciência se desenvolve, do forte e intenso debate de ideias. Obrigado Flávio!

3 comentários:

  1. Excelente!! Aprendi muito!

    Eduardo Darze

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  2. Luís Cláudio,

    Excelente postagem. Aprender sobre um assunto através de uma fonte que é consenso é o melhor para saber sobre determinado tema, mas nada melhor que ler diálogos assim para estimular o espírito científico. Lembrei das cartas que os físicos do século XX trocaram no berço na física quântica. Rs.

    O segundo arquivo "em anexo" (Blood pressure-lowering drugs: essential therapy for some patients with normal blood pressure) não está disponível para acesso pelo portal CAPES. Poderia disponibilizá-lo para download?

    Abraço,

    Felipe C Argolo

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  3. Excelente - debates como estes nos ensina muito!

    Roberto Dultra

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