Meu amigo José Carlos Lima é patologista clínico, responsável pelos laboratórios do Hospital Português, Instituto Cardio-pulmonar e pelo Laboratório LPC. Zé Carlos é um provocador de discussões médico-científicas, está sempre trazendo reflexões críticas sobre paradigmas vigentes. Foi nesse intuito que Zé me entrevistou sobre o consumo de carne vermelha como fator de risco para aterosclerose, a fim de publicar no seu Boletim do Laboratório LPC. Além de desmitificar esta questão, nossa discussão passou por vários conceitos metodológicos importantes. A carne aqui é um bom pretexto para discutirmos níveis de evidências baseados em estudos observacionais. Vejam a entrevista.
Dois grandes estudos avaliaram esta associação, o Health Professionals Study e o Nurses’ Health Study. Estes estudos foram publicados simultaneamente nos Archives of Internal Medicine em 2012, tendo mostrado associação entre a quantidade de carne vermelha consumida e certo aumento de eventos cardiovasculares. No entanto, nem toda associação significa causalidade.
Devemos salientar que estes são estudos observacionais, o que significa que o protocolo não controlou o consumo de carne nos grupos a serem comparados. São estudos que apenas comparam quem consome muita carne contra quem consome pouca carne por conta própria. Estas comparações em estudos observacionais são repletas de fatores de confusão, não suficientemente resolvidos pelas complexas análises estatísticas destes trabalhos.
O que são fatores de confusão?
De acordo com o senso comum, o consumo de carne vermelha é ruim para a saúde. Ao mesmo tempo, este tipo de carne é das mais saborosas. Sendo assim, as pessoas que consomem menos carne são aquelas que, a despeito do sabor sedutor, optam por não consumir em excesso. Em geral, estas pessoas são diferentes das pessoas que não têm a força de vontade para restringir carne. E estas diferenças podem ser as verdadeiras responsáveis pela menor incidência de desfechos cardiovasculares indesejados, como infarto ou acidente vascular cerebral. Estas diferenças são os potenciais fatores de confusão, que podem estar causando uma ilusão do malefício da carne.
Por exemplo, em geral pessoas que têm o perfil consumidor de carne tendem a ter menos cuidado com a saúde, alimentação é mais desregrada, bebem mais, engordam com mais facilidade, procuram médicos com menos frequência, negligenciam seus medicamentos anti-hipertensivos, etc. Portanto, o consumo de carne poderia ser apenas um marcador de hábitos saudáveis e não um “causador” direto de problemas de saúde. Fica a dúvida.
Então como resolver essa dúvida?
Para isso, são necessários os ensaios clínicos randomizados, onde o consumo de carne seria determinado de acordo com o protocolo do estudo (sorteio), deixando de ser a escolha do indivíduo. Ao ser uma determinação aleatória, o uso ou não uso de carne não se associa com outras características do indivíduo. Isto anula os efeitos de confusão. Há inúmeros exemplos de ilusões causadas pelos estudos observacionais que são desfeitas por ensaios clínicos randomizados. Um grande exemplo é o uso de vitaminas, que geralmente aparentam ser benéficas na prevenção de câncer ou infarto em estudos observacionais, porém ensaios clínicos mostra ausência de qualquer benefício.
Há ensaios clínicos testando o benefício do consumo limitado (ou não consumo) de carne vermelha?
Não. Portanto, não podemos afirmar categoricamente que o consumo de carne vermelha deve ser restringido. Por exemplo, há estudos observacionais que mostram associação entre consumo de café e proteção cardiovascular. Porém não há ensaios clínicos. Desta forma, não podemos ficar por aí recomendando consumo de café. O mesmo acontece com consumo moderado de vinho. Não há ensaios clínicos randomizados.
Então você libera totalmente o consumo de carne vermelha para seus clientes?
Para falar a verdade, do ponto de vista de evidências, esse não é um tópico muito relevante a ser discutido. Minha recomendação geral é que devemos ser moderados em tudo que consumimos, incluindo carne vermelha.
Mas essa “liberalidade” não poderia aumentar o colesterol das pessoas?
Uma vez conheci um indivíduo que era filho de uma famosa baiana de acarajé em Salvador. Sua dieta era baseada em acarajé, no café, almoço e jantar. O colesterol deste jovem era absurdamente elevado. Este nível de consumo, de fato, aumenta o colesterol. Porém, tirando estes casos extremos, o que chamamos de consumo liberado em geral não chega a afetar substancialmente o colesterol, pois a maioria do colesterol é produzido de forma endógena (pelo organismo). O colesterol depende mais de nossa predisposição do que da nossa dieta.
Há ensaios clínicos randomizados para dieta restritiva em gordura versus dieta mais liberal e, pasmem, a redução de colesterol é mínima. Na melhor das hipóteses, a redução fica em torno de 5 mg/dl.
Porém a evidência mais importante a este respeito vem de um grande ensaio clínico, o Women’s Health Initiative Dietary Modification Trial, que randomizou 48.000 mulheres para intervenção com dieta (hipolipídica e rica em frutas/vegetais) versus controle. Bem, qual foi o resultado? Ausência de redução de eventos cardiovasculares em seguimento de 8 anos. Percebam como o que se fala é muitas vezes dissociado da evidência científica.
É baseado na revisão sistemática de ensaios clínicos, que o US Prevention Task Force classifica a dieta para prevenção cardiovascular como recomendação apenas Grau C (trocando em miúdos, "faça se quiser").
É baseado na revisão sistemática de ensaios clínicos, que o US Prevention Task Force classifica a dieta para prevenção cardiovascular como recomendação apenas Grau C (trocando em miúdos, "faça se quiser").
Portanto, não adianta demonizarmos certas coisas, apenas para causar a ilusão de proteção em nossos clientes. Isso representa uma atitude mais de auto-promoção do que um ato médico embasado em evidências científicas.
Então, qual a mensagem final?
Temos que consumir alimentos de forma moderada e equilibrada, um pouco de tudo. Evitando os extremos, melhoramos nossa qualidade de vida e quem sabe teremos algum benefício para a saúde. Lembremos também que total liberalidade alimentar predispõe a obesidade, mais um motivo para sermos moderados.
Fora isso, devemos aproveitar a vida.