domingo, 19 de janeiro de 2014

Carne Vermelha Baseada em Evidências



Meu amigo José Carlos Lima é patologista clínico, responsável pelos laboratórios do Hospital Português, Instituto Cardio-pulmonar e pelo Laboratório LPC. Zé Carlos é um provocador de discussões médico-científicas, está sempre trazendo reflexões críticas sobre paradigmas vigentes. Foi nesse intuito que Zé me entrevistou sobre o consumo de carne vermelha como fator de risco para aterosclerose, a fim de publicar no seu Boletim do Laboratório LPC. Além de desmitificar esta questão, nossa discussão passou por vários conceitos metodológicos importantes. A carne aqui é um bom pretexto para discutirmos níveis de evidências baseados em estudos observacionais. Vejam a entrevista.

Qual a relação entre o consumo de carnes vermelhas e doenças do coração?

Dois grandes estudos avaliaram esta associação, o Health Professionals Study e o Nurses’ Health Study. Estes estudos foram publicados simultaneamente nos Archives of Internal Medicine em 2012, tendo mostrado associação entre a quantidade de carne vermelha consumida e certo aumento de eventos cardiovasculares. No entanto, nem toda associação significa causalidade

Devemos salientar que estes são estudos observacionais, o que significa que o protocolo não controlou o consumo de carne nos grupos a serem comparados. São estudos que apenas comparam quem consome muita carne contra quem consome pouca carne por conta própria. Estas comparações em estudos observacionais são repletas de fatores de confusão, não suficientemente resolvidos pelas complexas análises estatísticas destes trabalhos.  

O que são fatores de confusão?

De acordo com o senso comum, o consumo de carne vermelha é ruim para a saúde. Ao mesmo tempo, este tipo de carne é das mais saborosas. Sendo assim, as pessoas que consomem menos carne são aquelas que, a despeito do sabor sedutor, optam por não consumir em excesso. Em geral, estas pessoas são diferentes das pessoas que não têm a força de vontade para restringir carne. E estas diferenças podem ser as verdadeiras responsáveis pela menor incidência de desfechos cardiovasculares indesejados, como infarto ou acidente vascular cerebral. Estas diferenças são os potenciais fatores de confusão, que podem estar causando uma ilusão do malefício da carne. 

Por exemplo, em geral pessoas que têm o perfil consumidor de carne tendem a ter menos cuidado com a saúde, alimentação é mais desregrada, bebem mais, engordam com mais facilidade, procuram médicos com menos frequência, negligenciam seus medicamentos anti-hipertensivos, etc. Portanto, o consumo de carne poderia ser apenas um marcador de hábitos saudáveis e não um “causador” direto de problemas de saúde. Fica a dúvida.


Então como resolver essa dúvida?

Para isso, são necessários os ensaios clínicos randomizados, onde o consumo de carne seria determinado de acordo com o protocolo do estudo (sorteio), deixando de ser a escolha do indivíduo.  Ao ser uma determinação aleatória, o uso ou não uso de carne não se associa com outras características do indivíduo. Isto anula os efeitos de confusão. Há inúmeros exemplos de ilusões causadas pelos estudos observacionais que são desfeitas por ensaios clínicos randomizados. Um grande exemplo é o uso de vitaminas, que geralmente aparentam ser benéficas na prevenção de câncer ou infarto em estudos observacionais, porém ensaios clínicos mostra ausência de qualquer benefício. 

Há ensaios clínicos testando o benefício do consumo limitado (ou não consumo) de carne vermelha?

Não. Portanto, não podemos afirmar categoricamente que o consumo de carne vermelha deve ser restringido. Por exemplo, há estudos observacionais que mostram associação entre consumo de café e proteção cardiovascular. Porém não há ensaios clínicos. Desta forma, não podemos ficar por aí recomendando consumo de café. O mesmo acontece com consumo moderado de vinho. Não há ensaios clínicos randomizados.

Então você libera totalmente o consumo de carne vermelha para seus clientes? 

Para falar a verdade, do ponto de vista de evidências, esse não é um tópico muito relevante a ser discutido. Minha recomendação geral é que devemos ser moderados em tudo que consumimos, incluindo carne vermelha. 

Mas essa “liberalidade” não poderia aumentar o colesterol das pessoas?

Uma vez conheci um indivíduo que era filho de uma famosa baiana de acarajé em Salvador. Sua dieta era baseada em acarajé, no café, almoço e jantar. O colesterol deste jovem era absurdamente elevado. Este nível de consumo, de fato, aumenta o colesterol. Porém, tirando estes casos extremos, o que chamamos de consumo liberado em geral não chega a afetar substancialmente o colesterol, pois a maioria do colesterol é produzido de forma endógena (pelo organismo). O colesterol depende mais de nossa predisposição do que da nossa dieta.

Há ensaios clínicos randomizados para dieta restritiva em gordura versus dieta mais liberal e, pasmem, a redução de colesterol é mínima. Na melhor das hipóteses, a redução fica em torno de 5 mg/dl. 

Porém a evidência mais importante a este respeito vem de um grande ensaio clínico, o Women’s Health Initiative Dietary Modification Trialque randomizou 48.000 mulheres para intervenção com dieta (hipolipídica e rica em frutas/vegetais) versus controle. Bem, qual foi o resultado? Ausência de redução de eventos cardiovasculares em seguimento de 8 anos. Percebam como o que se fala é muitas vezes dissociado da evidência científica.

É baseado na revisão sistemática de ensaios clínicos, que o US Prevention Task Force classifica a dieta para prevenção cardiovascular como recomendação apenas Grau C (trocando em miúdos, "faça se quiser").  

Portanto, não adianta demonizarmos certas coisas, apenas para causar a ilusão de proteção em nossos clientes. Isso representa uma atitude mais de auto-promoção do que um ato médico embasado em evidências científicas.

Então, qual a mensagem final?

Temos que consumir alimentos de forma moderada e equilibrada, um pouco de tudo. Evitando os extremos, melhoramos nossa qualidade de vida e quem sabe teremos algum benefício para a saúde. Lembremos também que total liberalidade alimentar predispõe a obesidade, mais um motivo para sermos moderados. 

Fora isso, devemos aproveitar a vida.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A Oração do Acaso



Como primeira postagem deste ano novo, decidi escrever sobre o principal fenômeno da natureza: o acaso. Reconheço que pode parecer uma heresia falar de sorte ou azar em um blog científico. Porém essa aparência decorre do fato de que o acaso não recebe do pensamento comum o valor que merece. Há inclusive aqueles que julgam que o acaso inexiste: “nada é por acaso.”

No entanto, os matemáticos já demonstraram de forma irrefutável a existência deste fenômeno. Aliás, nem é preciso ser tão matemático assim. Jogue uma moeda para cima 10.000 vezes. Obviamente, perceberá que a moeda cairá com cara para cima a metade das vezes. Pode repetir esse experimento quantas vezes quiser, o mesmo sempre ocorrerá. Essa é uma simples prova de que não há um fator causal interessado que a moeda caia predominantemente em cara ou coroa. Se não há um fator causal, é tudo aleatório (acaso). E a prova de que o aleatório existe é que podemos predizer quantas vezes a moeda cairá em cara. É só saber a regra do jogo, ou seja, saber as leis de probabilidade. 

O acaso está intimamente relacionado ao pensamento científico. Isto porque a função primordial da ciência é identificar associações causais, entender como os fenômenos acontecem. Neste processo é muito importante que o cientista leve em consideração que muitos fenômenos não possuem causa específica, se dão por obra do aleatório. Sendo assim, fazer ciência é diferenciar acaso de causa. Há coisas que decorrem de uma causa (fumar causa câncer) e há outras que existem por acaso. A utilização de metodologia científica adequada discrimina causa de acaso. Metodologia científica é uma forma de evitar erros de observação decorrentes de vieses ou do acaso. Isso se faz necessário, pois observações carentes de metodologia nos fazem concluir por falsas relações causais. E isto ocorre todo dia, a todo momento quando pensamos intuitivamente.

Por exemplo, quando julgamos que um paciente sobreviveu a uma condição grave devido a uma promessa que fizemos, estamos estabelecendo uma relação causal (promessa → sobrevida). No entanto, quase todo paciente (mesmo grave) tem alguma probabilidade de sobreviver. Na realidade, houve uma coincidência entre o paciente ter (aleatoriamente) sobrevivido e termos feito uma promessa. Mas o que costumamos fazer é uma análise retrospectiva enviesada, pensando que se o paciente sobreviveu, foi porque rezamos. E nos esquecemos (memória seletiva) de todos os outros casos em que promessas foram feitas e o paciente não sobreviveu. 

O leitor neste momento deve estar me julgando cético ao afirmar que promessa não influencia na sobrevida. Mas só estou fazendo esta afirmação pois esta hipótese foi testada cientificamente. Revisão sistemática da Cochrane meta-analisou 10 ensaios clínicos em que 7.046 pacientes críticos foram randomizados para reza intercessória ou não reza: não houve associação entre reza e sobrevida. Essa é a beleza da ciência. Ciência nada mais é do que uma observação cuidadosa da natureza. Não temos o direito de simplesmente acreditar ou não acreditar. O que precisamos fazer é observar se o fenômeno é verdadeiro ou não. E a melhor forma de observar é por meio da metodologia científica, prevenindo vieses e a confusão entre acaso e causa.

Provavelmente a prece tem benefícios psicológicos ou espirituais para quem está rezando (não estou sugerindo que serve para nada), porém não reduz mortalidade. E este conhecimento a respeito dos efeitos da prece é muito importante, pois se houvesse associação causal com sobrevida, a prece deveria fazer parte dos protocolos assistenciais de pacientes críticos, como indicação classe I. Ao saber que não há esta relação causal, não precisamos estruturar nossos serviços para esta conduta, não precisamos montar um time de prece. Isto fica então a gosto do cliente ou da família, que deve rezar se isso os fizer sentir bem.

Neste ponto do texto, percebam que partimos do acaso, passamos pela ciência e chegamos na religião, de forma natural, em uma discussão que aproxima ciência e fé. Porém muitos religiosos preferem distanciar ciência e fé, pois desta forma fica mais fácil criar mitos e crenças de acordo com seus interesses, sem que haja uma filosofia por trás disso tudo. Pensar e procurar entender nosso universo, como ele funciona, não é uma heresia. Estudar cientificamente os efeitos da fé é um ato de respeito a esta prática comum a inúmeras culturas. Esconder-se atrás dos “mistérios da fé” é fugir da reflexão, congelar nosso cérebro e consequentemente nossa alma. Foi isso que quis dizer Pauster: "um pouco de ciência nos afasta de Deus, muito nos aproxima".

Um dos maiores equívocos de nosso pensamento intuitivo é a propensão de não reconhecer o acaso como um dos principais determinantes dos eventos a nossa volta, tal como abordado por autores como Leonard Mlodinow ("O Andar do Bêbado") ou Thomas Gilovich ("How We Know What Isn’t So”). Muitas vezes, inconscientemente, preferimos atribuir nosso destino a falsas relações causais, pois nos sentimos mais em controle quando pensamos entender o porquê das coisas. Porém às vezes não há um porquê, é tudo aleatório. Ou pelo menos uma mistura do aleatório com variáveis causais. Na realidade, o mundo é multivariado, não cartesiano, não determinístico, no sentido de que um fenômeno é provocado por uma multiplicidade de fatores: fatores causais mais o acaso. Nos modelos estatísticos multivariados, sempre há o resíduo, que é a variabilidade não explicada por nossas equações preditoras. Estes resíduos decorrem do acaso

Um dos filmes mais brilhantes de Woody Allen é Match Point, uma apologia ao acaso. A metáfora é o match point do jogo de tênis, quando ganhar ou perder apenas um ponto pode determinar o destino de um jogo. Na primeira cena do filme, a bola bate na extremidade superior da rede, se desloga verticalmente para cima e a imagem congela. A partir deste momento, a bola começaria a descer, mas para que lado da rede? Aí entra o aleatório, determinando o destino daquela jogada. Poderia sera apenas o destino de uma jogada, mas muitas vezes o “efeito borboleta” se faz presente: um fato aparentemente de pequena importância promove grandes consequências, por uma reação em cadeia. O resultado de apenas um ponto em um jogo de tênis pode determinar seu destino final. Isso aconteceu quando uma tal seleção brasileira de voleibol perdeu o jogo quase ganho em uma dessas recentes olimpíadas. A vida é assim, um minuto a mais ou a menos pode determinar que der tempo de pegar aquele trem, no qual conheceremos o amor de nossa vida, por acaso. Um minuto é um pequeno detalhe que pode ter grandes consequências.  A isso se chama de “efeito borboleta”. 



O termo "efeito borboleta" decorre da metáfora de que o deslocamento de ar decorrente do simples bater das asas de uma borboleta pode provocar grandes fenômenos meteorológicos, se o ambiente estiver propício a isto. Neste sentido, o físico quântico Max Born, ganhador do Prêmio Nobel, afirmou que "o acaso é um conceito mais fundamental que a causalidade".

Daí vem nosso insight espiritual, a mensagem que conecta ciência, acaso e fé. Com sua forma onipresente de ser, o acaso assume um caráter divino quando nos damos conta de que esta é a ferramenta com a qual Deus rege o mundo. Isso mesmo, Deus comanda o mundo de forma aleatória. Deus não seria mesquinho para castigar alguém provocando uma doença, ao atribuir uma condição de saúde plena a outra pessoa. Deus não provocaria uma grande terremoto do Haiti de forma proposital. Deus não fará com que o Brasil ganhe a copa do mundo de 2014, em detrimento de outras seleções. Deus não é brasileiro. Como bem demonstrado pelo filme filosófico-cômico de Jim Carrey, Almight, Deus ficaria louco se tivesse que decidir por tudo isso. A verdade é que de forma serena, Deus utiliza o acaso como a maneira de "determinar" nosso destino. O acaso é a ferramenta divina.

Sendo assim, neste início de ano, deixamos aqui a Oração do Acaso. Oremos para que em 2014 o acaso esteja ao nosso lado sob a forma de sorte. Em segundo lugar, desejo que saibamos reagir  adequadamente quando o acaso se apresentar sob a forma de azar. Pois muito do nosso destino decorre das nossas reações ao acaso. Finalmente, devemos sempre nos lembrar que fenômenos causais existem e reconhece-los cientificamente, identificando as condutas (médicas ou cotidianas) que interferem em nosso destino. Nosso “destino” depende da interação entre nossas escolhas e o acaso.  

Feliz 2014.

* Devo o título deste texto ao amigo-cientista Bruno Solano, que durante uma discussão filosófica apresentou a ideia. 

* Este texto resume o conteúdo de nossa conferência durante o debate Medicina e Fé, promovido por Padre Bento no Hospital São Rafael. O vídeo desta conferência será publicado em breve neste Blog.