sábado, 12 de novembro de 2016

Precisamos do Janeiro Branco


Saímos de um outubro rosa, entramos em um novembro azul. Todos os outros meses já estão ocupados por doenças e não há mais cores para todas elas. Segundo artigo da Folha de São Paulo, fevereiro é da leucemia, março do câncer de colo de útero e câncer de colorretal, abril é do câncer de testículo, maio é da hepatite, lúpus e câncer cerebral, junho do melanoma e leucemia, julho das hepatites virais, setembro das doenças cardiovasculares, câncer de pâncreas e suicídio, dezembro da AIDS e câncer de pele. 

Fico a me perguntar se a cultura mensal de homenagem colorida à doenças promove redução de mortalidade ou melhora de qualidade de vida. Intuitivamente sim, mas às vezes a verdade é contra-intuitiva. 

Esta é uma questão de economia clínica: há sempre um preço (não monetário) a pagar por nossas condutas, portanto precisamos avaliar qual o benefício que recebemos em troca do que pagamos. Vejamos primeiro o benefício, depois o preço relacionados aos meses mais coloridos do ano, outubro e novembro.

O Benefício (ou a falta dele)


Considerando que a tônica mais forte das campanhas é a detecção precoce dos cânceres, estas incentivam os rastreamentos em indivíduos assintomáticos, o que de fato aumenta a incidência dos diagnósticos. Porém evidências científicas adequadas não demonstram redução de mortalidade total pelo rastreamento azul (próstata) ou rosa (mama). 

Ensaios clínicos de boa qualidade, envolvendo grande número de pacientes, mostram idêntica mortalidade por câncer de próstata quando comparados indivíduos randomizados para rastreamento ou não rastreamento desta patologia. 

Já no caso rosa, acho as evidências ainda mais interessantes. Por exemplo, revisão sistemática da Cochrane mostra ensaios clínicos em que o rastreamento reduz (bem pouquinho) mortalidade por câncer de mama. No entanto, quando os trabalhos foram divididos por qualidade metodológica em dois grupos, os estudos de boa qualidade eram negativos, enquanto os estudos positivos eram os de pior qualidade metodológica. Porém o dado mais relevante está na análise de mortalidade total  (independente da causa). Os ensaios clínicos são consistentes em demonstrar semelhante incidência de morte total em pacientes rastreadas ou não rastreadas. 

No fundo, o que importa é salvar uma vida, e não trocar o mecanismo de morte em umas poucas pacientes. Na verdade, esta diferença de resultado entre morte específica e morte total sugere que para cada vida salva por um diagnóstico de câncer de mama, há uma vida perdida pelas complicações que advém do tratamento.

Mas vamos deixar mortalidade de lado. Será que o diagnóstico precoce pelo menos não melhoraria qualidade de vida das pessoas?

Estimativas científicas indicam que de cada 1000 homens rastreados para câncer de próstata, 120 sofrem biópsias de resultado normal, 100 são submetidos a tratamentos desnecessários, 29 se tornam impotentes e 18 incontinentes. Já no caso das mulheres, para cada 1000 rastreadas, 500 tem um resultados falso-positivo da mamografia, 100 terminam em biópsias normais e 6 recebem tratamento desnecessário. Tudo isso sem que em troca haja um benefício de redução de mortalidade. Portanto, mesmos os diagnósticos corretos se constituem em overdiagnosis: diagnósticos que promovem sequelas mentais e físicas,  sem trazer benefício que compense tudo isso. 

Claro que haverá um ou outro caso anedótico em que um homem ou mulher se beneficia, porém para cada caso desse, há um prejuízo que o anula. Desta forma, do ponto de vista probabilístico, o efeito é nulo. 

Em recente postagem sobre segurança perceptível, comentei que nunca houve uma vida salva pelos famosos coletes salva-vidas dos aviões. Passado alguns dias, um colega postou um interessante comentário, em que nos apresentava um caso documentado de vida salva. Era uma selfie de um passageiro boiando com o colete salva-vidas (salvou o celular também) com um pequeno avião afundando no mar do Havaí. Mas tem outra história que nos remonta ao raciocínio probabilístico que menciono no parágrafo anterior. Em 1998 um avião da Ethiopian Airlines fez um pouso forçado no mar. O avião se despedaçou e alguns passageiros presumidamente tiveram suas vidas salvas pelos coletes, pois caíram no mar, não afundaram e sobreviveram. No entanto, um número maior de pessoas morreu pois ficaram presas nas ferragens, presumidamente devido ao uso dos coletes. Houve mais prejuízo do que benefício. O raciocínio probabilístico não é individual, é coletivo.

Se pensarmos direitinho, a irracionalidade chega a ser caricatural. Mas não é por mal. Como mostra o psicólogo Dan Ariely (Universidade de Duke), o raciocínio econômico humano tende a ser irracional. Neste caso, prejudicamos nossa segurança real, em prol da segurança perceptível.

Mas alguns argumentam que os meses coloridos têm outros objetivos além de propor rastreamento, como conscientizar as pessoas em relação à importância dessas doenças ou promover estilo de vida saudável com fins de prevenir estes cânceres. Mas isso também não cola, pois não precisamos falar em câncer para promover estilo de vida saudável ou controle de fatores como obesidade. Bastaria falar em qualidade de vida. 

Além do mais, não há estudos (ensaios clínicos) que comprovem que mudança de estilo de vida reduz a probabilidade de câncer. Até mesmo para doenças cardiovasculares (onde a penetração causal dos fatores de risco é muito mais forte do que câncer), mudança de estilo de vida não se provou eficaz em reduzir risco. E de efetividade, nem se fala. 

Desta forma, fica bastante questionável qual o benefício real do ponto de vista individual e social proveniente das campanhas coloridas. Mas há um preço e este é o maior sentido desta nossa postagem. 

O Preço


O preço está na antecipação inútil de algo que pode nem mesmo acontecer.

Estudos de psicologia positiva demonstram que um dos determinantes da felicidade é o enfoque no momento presente. No entanto, a cultura ocidental tem uma tendência de se projetar excessivamente para o passado (ruminar fatos negativos) ou futuro (pré-ocupação com coisas que provavelmente nunca acontecerão). A probabilidade de uma pessoa morrer de uma dada doença é sempre pequena, pois há várias mecanismos de morte candidatos para uma dada pessoa. Propomos que as mulheres passem o mês de outubro pensando em câncer de mama, enquanto apenas 4% delas morrerão deste problema. Mas para resolver esta questão, criamos outros meses, um para cada doença, de forma que a população, pensando em todas, estará antecipando em algum mês do ano seu mecanismo de morte. Genial. Só que nada disso reduz o risco de morte. 

Assim, ocupamos nossa mente com o inexorável, passamos a vida na expectativa do que nos matará, e nos esquecemos de viver. Tudo isso, sem benefício em prolongamento de vida.

O Janeiro Branco


Por estes motivos tenho pensado: precisamos de um Janeiro Branco! 

Claro, pelo menos um mês que tenhamos o direito de não falar em doença.  Um mês para se falar em qualidade de vida. Um mês em que a justificativa para que façamos exercício não seja prevenção de doença, mas sim o prazer de andar de bicicleta com os filhos em uma manhã de domingo. Um mês em que se diga que o sentido de evitar excesso de peso seria a vaidade de ficar mais bonito para conseguir um namorado legal ou de conseguir vestir aquela roupa de que tanto gosta. Ou um mês para dizer que gordinhos também são lindos e podem ter muitos namorados.

E nada melhor do que janeiro para fazer isso. Precisamos deste primeiro mês do ano para não ocupar nossas mentes com estas antecipações inúteis, de forma que sobre espaço para nossa criatividade no planejar de um novo ano. Sim, pois para ser criativo precisamos de um certo ócio mental. E nada melhor do que a cor branca para estimular o ócio.

Sim, precisamos de um Janeiro Branco, o Mês Sem Doença. 





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23 comentários:

  1. dr luis claudio, precisamos da sua análise dos estudos EXCEL e NOBLE, lançados no último TCT com resultados díspares... Tem gente extrapolando o uso de stents eluidores de drogas em TCE diferentes da utilizada nos estudos...

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  2. Professor Luis, qual estudo sobre o câncer de próstata o senhor se refere? Sabemos que a literatura é recheada de trabalhos que podem defender diferentes pontos de vista. Existe alguma meta-análise confiável sobre o tema rastreamento de câncer de próstata?
    Normalmente as pessoas que são contra o rastreamento do câncer de próstata citam as recomendações do US Task Force, que se basearam no estudo PLCO, publicado em 2009 no NEJM. Esse trabalho foi revisado e republicado em maio desse ano e verificaram que a contaminação do grupo controle foi de 90%, ou seja, compararam grupos iguais.
    Por outro lado, outro importante estudo europeu demosntrou que, em um seguimento de 13 anos, precisamos tratar 27 homens para salvar 1 vida, um NNT razoável. (Schröder F. et al,Lancet 2014, 284: 2027-35). Sei que essa discussão não tem fim, sou pessoalmente contra o novembro azul, mas sou favorável ao rastreamento de câncer de próstata realizado de maneira racional, individualizando-se os pacientes e indicando rastreamento, biópsia e tratamento a quem tem maior probabilidade de benefício.

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  3. Ótima reflexão, concordo muito, mas o Janeiro Branco (ou algum outro mês "colorido") poderia ser pela segurança do paciente, reforçando, assim e também, a lógica da prevenção. Neste caso, de incidentes!!��
    Imaginem todos as pessoas saindo vestidas com a cor que lhes remete à necessidade de fazer as coisas certas, considerando riscos, e fortalecer barreiras!!
    Olho para o meu colega e me alerto! Reconheço a oportunidade de higienizar minhas mãos, de checar melhor os sinais vitais do paciente, de avalia-lo melhor para as condições de risco, de prevenir falhas no uso dos medicamentos, de promover a cirurgia segura...O Janeiro Branco (ou algum outro mês "colorido") poderia ser pela segurança do paciente, reforçando, assim e também, a lógica da prevenção. Neste caso, de incidentes!!😉
    Imaginem todos as pessoas saindo vestidas com a cor que lhes remete à necessidade de fazer as coisas certas, considerando riscos, e fortalecer barreiras!!
    Olho para o meu colega e me alerto! Reconheço a oportunidade de higienizar minhas mãos, de checar melhor os sinais vitais do paciente, de avalia-lo melhor para as condições de risco, de prevenir falhas no uso dos medicamentos, de promover a cirurgia segura...
    Opa! Seria uma iniciativa massa!!! 😉
    Opa! Seria uma iniciativa massa!!! ��

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  4. Muito legal!
    O ideal é que essas campanhas facilitassem o acesso da população de maior risco ao exame numa periodicidade plausível, mas o que acontece é o incentivo ao rastreamento populacional indiscriminado.
    Viva ao janeiro branco!
    Vamos tomar sorvete!

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  5. Excelente Luis,
    Minha admiração, por vc através de MBE, não cessar esforços para esclarecer, que não existe benefício para população com esses rastreamentos!
    Vamos abraçar essa campanha!
    Quem sabe se o recado não chega aos principais interessados:população!
    Janeiro Branco!

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  6. Muito legal seu texto Luis !!! Parabéns !!! Temos mesmo que valorizar o presente e nos emocionar com coisas do dia a dia que nos faz feliz !!!

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  7. Gostei da iniciativa...
    Tô dentro !
    Vamos compartilhar !

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  8. Ótima reflexão Luis !! Com relação aos comentários do colega André Costa Matos , fiquei curioso e interessado nos dados que apresentou e quando fui analisar a referência citada encontrei alguns aspectos que reforçam a postagem do Luis sobre evitar o overteatment, onde a melhor maneira seria evitando o overdiagnosis.
    O trabalho citado pelo colega foi um estudo prospectivo e randomizado de 13 anos feito na Europa com a medida de Rate Ratio, que é a razão da taxa de incidência de mortalidade por câncer no grupo que fez o PSA e no grupo que não fez, dividido por pessoas-ano livre da doença, ou seja Hazard Ratio, recomendo uma postagem do blog sobre Hazard Ratio ( HR ) no estudo JUPTER.
    Interpretei a estimativa de um NNT equivalente a redução absoluta do risco citada pelos autores como 781 (one prostate cancer death averted per 781 men que fizeram o screening) com um limite superior do intervalo de confiança de quase 2000, demonstrando o tamanho da imprecisão desse NNT irrelevante . Ou seja , não tem benefício o screening com PSA na redução de mortalidade .
    O NNT de 27 foi um ajuste para detecção de câncer de próstata adicional , mas isso é o próprio overdiagnosis ( não sabemos qual é o tipo histológico ) , pois o PSA é um exame pouco acurado com RP+ 1.05 e RP- 0,64 , e “ diagnosticar alterações “ com exame desse tipo em homens de baixo risco , é fazer overdiagnosis que inevitavelmente levará ao overtreatment, gerando biópsias e complicações desnecessárias .
    Posso estar errado nessa análise , mas qual o motivo de se fazer exame de rastreamento em pessoas de baixo risco ? Com exame muito acurado já não tem benefício imagina com exame sem a devida acurácia como PSA ....enfim , posso estar errado nessa análise , mas realmente precisamos do janeiro branco .

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    1. O colega André Matos chamou à atenção, na verdade, o fato de que 90% dos pacientes no grupo controle do PLCO acabaram dosando PSA "por fora" do protocolo do estudo. Ou seja, compararam rastreamento com PSA contra rastreamento com PSA. Uma magnífica discussão sobre o assunto pode ser encontrada em http://www.medscape.com/viewarticle/870142 (Did PSA Testing Save Ben Stiller's Life?
      Saurabh Jha, MBBS, MRCS)

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    2. Ótima referência de leitura Iago ! Demonstrando as incertezas nesse screening. Gostei do texto .
      Mas volto a comentar que o PSA é muito pouco acurado, devemos indicar o rastreamento para homens com risco de câncer , não para toda uma população masculina a partir dos 45 anos, interpretei a mensagem do janeiro branco não apenas para não falarmos em doença e antecipações de diagnósticos fúteis, mas para usar essa "ociosidade" de não pensar nesse tipo de screening , mas para planejarmos mesmo que filosoficamente screening's mais inteligentes com a democratização necessária para quem realmente precisa desse benefício, exemplo seria a colonoscopia no cancer de cólon , um exame mais acurado.
      E na conclusão do texto que foi sugerido : " O rastreamento com PSA salvou a vida de Ben Stiller ? ........ Não sabemos , mas aumentou a incerteza da população sobre esse screening e isso é uma coisa ." Quando existe a incerteza, talvez seria mais racional indicarmos um screening com uma individualização mais rigorosa em quem realmente pode ter benefício, aumentando a probabilidade de benefício do mesmo, mas o que tem sido feito com essa incerteza .........vamos rastrear todos! Tornando inevitável o overdiagnosis. Obrigado pela indicação do texto Iago .

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  9. Artigo muito bom. O complexo industrial da saúde nos torna paranóicos em relação às doenças que poderão nos matar um dia e com isso cada vez mais recursos são desviados para exames, "checkups" e procedimentos inúteis para prevenir mortes, mas bastante eficientes para produzir lucros para os interessados.

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  10. Luis, meu nome é Fernando Cardoso, sou médico do esporte e 2• vice presidente da Sociedade Paulista de Medicina Desportiva, nós da SPAMDE lançaremos essa campanha em janeiro. Queria coonversar com vc mas não achei nenhum contato seu. Se puder me mande um email. fermedesportiva@yahoo.com.br
    Abrs

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    1. Avaliação médica para todo mundo. Exames gratuitos. Cada vez mais medo. Onde estamos de fato indo?

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  11. Muito inteligente sua reflexão Luis Claudio. Compartilho completamente de sua opinião. E acrescento que a medida que a tecnologia avança, aumenta a pressão por protocolos de prevenção que nem sempre são custo-efetivos.

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  12. Excelente reflexão, sábio Dr Luis. Esses pensamentos exageradamente antecipatórios que nos consomem, meros ocidentais, trazem muita ansiedade sobre fatos que, por vezes, jamais ocorrerão. Queremos fazer exames "preventivos" todo ano, mas não temos tempo de fazer atividade física regular, por exemplo.

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  13. Essa suposta ineficiência do rastreamento na redução da mortalidade geral se refere a um rastreamento que não leva a faixa etária em consideração né?

    Se fizéssemos uma análise de subgrupo com mulheres entre 50 e 69 anos, encontraríamos redução da mortalidade geral?

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    1. Acredito que se a redução na mortalidade em faixas etárias específicas fosse significativa isso apareceria na mortalidade geral. A análise de subgrupo não deve ser feita para procurar resultados positivos em um resultado essencialmente negativo...

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