A incorporação das fantasiosas "práticas integrativas" no Sistema Único de Saúde é mais um exemplo de medicina baseada em crença, situação em que condutas sem evidências de eficácia são suportadas pelo forte lobby da fé. Recursos gastos em fantasia deveriam ser melhor aplicados a terapias de eficácia comprovada.
Se seguisse o fetiche do pensamento médico baseado em evidências que tanto me caracteriza, esta postagem seria concluída pelo parágrafo acima. Mas hoje farei diferente, pois ao observar a fervorosa reação contrária de amigos que primam por um pensamento racional, pensei: quem são os dogmáticos? E foi no meio desse pensamento desordenado que percebi mais uma vez que todos nós temos crenças internas que enviesam nossa interpretação da realidade.
Em um primeiro impulso, é natural a tendência de mentes científicas rejeitarem a resolução do Ministério da Saúde. Em um segundo momento, temos duas opções: atacar a resolução de forma inquisitória ou analisar cientificamente o mérito da questão.
Nesta postagem opto pela segunda alternativa, onde desenvolverei um pensamento regido pelos conceitos científicos de "efeito futuro" versus "efeito simultâneo" de um tratamento.
Assim como devemos ser céticos no acreditar (fé) em condutas profissionais, devemos também evitar a confusão entre a valorização da dúvida e a certeza de inexistência.
O rol de “práticas integrativas” incluídas pelo SUS contém condutas diferentes, com propriedades diferentes no que tange o pensamento científico.
Por exemplo, homeopatia é uma coisa, música ou aromaterapia são outra coisa. Mas como?
A diferença está (1) na forma e (2) no efeito que cada um deles se propõe a oferecer.
A Forma
Homeopatia se fantasia de remédio, é oferecida sob a forma de comprimidos. São comprimidos de “nada”, pois não restou mais nenhuma molécula da substância original depois de tantas diluições. Argumentam que sobra a energia, pode ser. Mas porque fantasiar a energia de comprimido? Energia transcende o físico, pode ser muito bem administrada pelo pensamento ou pelo simples tocar no paciente.
Por outro lado, os outros dois exemplos não se fantasiam de remédio, assumem o que são. Música é audição, aroma é olfato. Aromaterapia não se propõe que as moléculas do aroma penetrem no organismo e promovam reações químicas com plausibilidade para cura. Estes são tratamentos sinceros, que não se disfarçam de comprimidos.
O Efeito
Neste caso, precisamos discutir a diferença entre “efeito futuro” e “efeito simultâneo” de uma terapia. Efeito futuro é o que denominamos de “desfecho”. Para afirmar que um tratamento melhora o desfecho do paciente, precisamos de evidências que nos tragam a probabilidade de melhora. Evidências que surgem de trabalhos longitudinais, que acompanham o paciente a partir da intervenção para o futuro. Para afirmar que um cansativo tratamento com pseudo-comprimidos vai melhorar a alergia de uma paciente, precisamos predizer, pois a melhora ocorrerá no futuro. Precisamos portanto de evidências científicas empíricas, pragmáticas.
Quando homeopatia é avaliada por trabalhos com baixo risco de viés, seu efeito é igual ao placebo. Claro, tem trabalhos positivos a respeito da eficácia da homeopatia, assim como tem estudo positivo para qualquer coisa que queremos afirmar. A análise crítica está no risco de viés e risco de erro aleatório, uma análise que deve ser independente de nossas crenças internas.
Por outro lado, há práticas cujo efeito é “simultâneo”. Estas não precisam de predição probabilística, pois o efeito ocorre durante a conduta. Quando recebo uma massagem, sei se estou experimentando bem estar durante a aplicação deste tratamento. Portanto, posso fazer uma primeira sessão e se gostar continuo o tratamento; se não gostar, interrompo o tratamento. O efeito proposto é o bem estar. Estas são situações em que podemos usar estudos de N = 1, pois a evidência não é preditiva, é definitiva. A evidência não é generalizável, é individual.
Portanto, a depender do desfecho proposto (bem estar), é anticientífico criticar aromaterapia. Pode ser muito benéfica para alguns, nada benéfico para outros. Fica a gosto do cliente. Tal como ir ao cinema neste feriado, tomar um vinho (moderadamente) com amigos, dar uma corrida na orla.
A este respeito, tenho escrito que corrida não promove diretamente redução de peso, nem redução de risco cardiovascular (efeitos futuros). Mas dá prazer a quem gosta de correr (efeito simultâneo). Isso basta.
Pensemos em pacientes com anemia falciforme, doença de difícil controle, que pode promover grave sofrimento crônico. Estes pacientes, usualmente tratados pelo SUS, são sofredores crônicos. Muitos deles poderiam ter seu sofrimento amenizado com uma postura acolhedora, com a oferta de um grupo de meditação, um grupo de exercício lúdico, ouvirem boas músicas (jazz de preferência) ou experimentarem aromas agradáveis. Para alguns, certas práticas integrativas teriam grande impacto! Grande tamanho de efeito.
Este é o mesmo motivo pelo qual pacientes em estágio avançado de câncer procuram terapias complementares. Na verdade, muitos destes pacientes não estão à procura da cura por métodos fantasiosos, estão a procura do bem estar espiritual que estas condutas podem lhes trazer.
Caso isso fosse (fosse!) bem implementado, não só traria conforto para alguns, mas também melhoria a auto-estima dos pacientes do SUS, que normalmente vêem nosso universal sistema de saúde com desprezo. Sentem-se desamparados. Tais condutas, acolhedoras, poderiam funcionar como se os postos de saúde passassem a ser equipados com bonitos móveis, ar condicionados, limpeza impecável. Tudo isso tem impacto coletivo, na percepção do quanto o paciente está sendo cuidado pelo sistema.
O Custo
Até aqui, argumentei sobre a potencial efetividade individual de algumas práticas integrativas. Mas pequei por ainda não ter mencionado a questão do custo monetário. Quanto custarão essas terapias integrativas ao nosso sistema de saúde de recursos tão limitados?
Esta questão precisa ser analisada com critério, antes de nos posicionarmos contra ou a favor das práticas.
Primeiro, quanto vai custar? Muito ou pouco? Minha resposta é não sei. Mas "não sei" é diferente de se fechar para a questão. Eu ficaria inicialmente com o benefício da dúvida.
Aqui se aplica o princípio do "ceticismo reverso": o benefício da dúvida não serve apenas para a existência do fenômeno, podemos também valorizar a dúvida quanto à inexistência, desde que a hipótese tenha uma razoável probabilidade pré-teste.
Uma ideia: será que não poderíamos treinar os próprios enfermeiros ou técnicos que já trabalham nos postos? Segundo, antes de criticar o eventual custo de implementar aromaterapia no SUS, precisamos criticar os muitos tratamentos de altíssimo custo e baixo impacto, que servem mais para dar “segurança perceptível” ao paciente, do que oferecer benefício clínico. São muitos os exemplos de tratamentos de alto custo substituirem terapias usuais de menor curso, seja por estar no rol do SUS, seja porque um inocente juiz defere uma liminar baseada em relatório médico. Talvez essa segurança perceptível viesse a ser substituída pela sensação de acolhimento recebida por um paciente terminal que não precisa de mais uma quimioterapia para prolongar sua vida em poucos dias (se prolongar), mas sim de uma aromaterapia. Desde que não se proponha que o aroma vá curar o câncer. Seria apenas um aroma agradável, oferecido por um sistema de saúde que preza pelo conforto dos seus pacientes.
Portanto, custo monetário é relativo, talvez no mundo ideal a implementação de condutas integrativas e paliativas possam promover uma redução substancial do custo de tratamentos fúteis e muitas vezes prejudiciais aos pacientes.
Que tal trocar toque retal por musicoterapia? Seria um troca bastante econômica (pensamento não monetário) no homem assintomático. Quem achou que isso é ironia sem base científica, leia a postagem o Crepúsculo do Novembro azul, onde discutimos sobre rastreamento de câncer de próstata.
Sim, estou viajando em possibilidades. Nada disso pode ocorrer e as terapias integrativas virem a ser apenas um custo adicional mal aplicado, que mais serve para promover o pensamento mágico do que para acolher pacientes.
Portanto, não tenho posição a respeito da decisão do Ministério da Saúde. Se tivesse que decidir, provavelmente eliminaria algumas dessas práticas e outras buscaria mais detalhes para me posicionar. Neste momento, pouco conheço da maioria dessas práticas. Minha discussão aqui é mais conceitual, abstrata, científica, do que pragmática.
Mas não começaria por rejeitar ideias de forma dogmática. Pode ser que por trás das ideias não haja só um ministro mal informado. Pode ser que haja técnicos bem intencionados, com uma certa racionalidade.
Mas não começaria por rejeitar ideias de forma dogmática. Pode ser que por trás das ideias não haja só um ministro mal informado. Pode ser que haja técnicos bem intencionados, com uma certa racionalidade.
Científico versus Ideológico
Confesso meu temor de que meu discurso científico vire ideológico. Por isso tento explorar o contraditório. "Trair minha tradição", como diz o rabino Nilton Bonder em seu livro "A Alma Imoral".
Neste caso, podemos considerar o científico como imoral, contraditório. O científico é aquele menino malicioso que teve coragem de dizer "o rei está nu". O dogmático assume a posição da tradição moralista.
O ceticismo está na base do pensamento científico. Mas ser cético não é desacreditar. É explorar. A exploração desta questão tem como pensamento central os conceitos epidemiológicos de "efeito futuro" e "efeito simultâneo".
Agora vou ali, dar uma corridinha na orla de Salvador.
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