A leitura de um trabalho científico deve envolver um domínio além do artigo científico, abrangendo o ecossistema que envolve a criação da ideia, definição do protocolo e aceitação dos resultados pela comunidade. A leitura do trabalho não começa, nem termina no artigo final.
Em uma recente postagem de grande impacto, provocamos a reflexão a respeito da “fake news científica” contida do ensaio clínico SCOT-HEART, a partir da leitura do artigo científico. Nesta portagem abordaremos o antes e o depois.
Nas discussões de artigo de nosso Hospital utilizamos uma metodologia peculiar em vários aspectos. Um destes aspectos é a orientação para que nosso residente sistematicamente acesse o clinicaltrial.gov e procure inconsistências entre o protocolo definido a priori e o que está no artigo publicado. Neste momento, estamos avaliando o ecossistema prévio ao artigo.
Foi quando João Menezes, nosso residente que apresentaria o SCOT-HEART, nos veio com mais uma surpresa a respeito deste trabalho: o desfecho primário relatado na publicação do NEJM na verdade era um dos muitos desfechos secundários, exemplificando “a mágica transformação de um desfecho secundário em primário”.
A Transformação
A integridade científica de um estudo depende da definição a priori do plano de análise de dados. Este método serve para evitar a multiplicidade de testes que aumenta a probabilidade do erro tipo I (afirmar algo falso = fake news). Neste contexto, é essencial a definição do desfecho primário do trabalho, que deverá nortear a conclusão, independente do resultado de desfechos secundários que podem sofrer do problema das múltiplas comparações (abordado tecnicamente em postagem deste Blog - 2016).
Pois bem, a publicação do SCOT-HEART no NEJM claramente define que o desfecho primário do estudo seria o combinado de morte cardiovascular e infarto não fatal em seguimento de 5 anos.
“The primary end point was death from coronary heart disease or nonfatal myocardial infarction at 5 years.”
E na parte de cálculo amostral, os autores reforçam:
“our pre-especified primary long-term end point was the proportion of patients who died from coronary heart disease or had a nonfatal myocardial infarction at 5 years.”
Vamos agora ao ecossistema prévio ao artigo. Como sabemos, autores devem registrar o protocolo de qualquer ensaio clínico antes de sua realização e isso normalmente se faz no clinicaltrials.gov.
Ao checar o protocolo do estudo no clinicaltrials.gov, João percebeu que o desfecho primário descrito no NEJM não era o verdadeiro desfecho primário! Como em um passe de mágica, um desfecho antes secundário foi transformado em primário na descrição do artigo final.
Na verdade, este estudo foi originalmente desenhado para avaliar a proporção de pacientes que receberam diagnóstico de doença coronariana, comparando tomografia versus estratégia controle. Esta proporção foi o desfecho primário pré-definido pelo estudo.
Já os desfechos secundários foram divididos em 5 domínios (sintomas, diagnóstico, investigações adicionais, tratamento implementado, desfechos clínicos no longo prazo). No domínio de desfechos clínicos, foram descritos 9 desfechos secundários, dentre os quais está o desfecho “morte cardiovascular e infarto não fatal”, descrito agora como primário no artigo do NEJM.
Vejam a descrição dos desfechos clínicos secundários, tal como colocado no clinicaltrials.gov e no artigo do Trials que descreve o desenho do estudo em 2012:
- Cardiovascular death or non-fatal Myocardial Infarction (MI) (ii) Cardiovascular death (iii) Non-fatal MI (iv) Cardiovascular death, non-fatal MI or non-fatal stroke (v) Non-fatal stroke (vi) All-cause death (vii) Coronary revascularisation; percutaneous coronary intervention or coronary artery bypass graft surgery (viii) Hospitalisation for chest pain including acute coronary syndromes and non-coronary chest pain (ix) Hospitalisation for cardiovascular disease including coronary artery disease, cerebrovascular disease and peripheral arterial disease.
Para complicar ainda mais, os desfechos clínicos foram pré-definidos para ser avaliados em seguimento de 10 anos e o artigo descreve o seguimento de 5 anos. Assim, a definição de 5 anos não foi a priori. A rigor, estamos diante de um desfecho secundário definido a posteriori (análise post-hoc). E isso não é apenas semântica, pois na ausência de definição de quando o desfecho deve ser avaliado, podemos testá-lo ano a ano, esperando que o acaso nos presenteie com um resultado positivo em algum momento. No momento em que o autor é presenteado pelo acaso, este pode preparar um abstract e submeter a um importante congresso internacional. Não estou dizendo que assim foi feito, estou apenas mostrando como pode ser feito com desfechos post-hoc.
Desta forma, estamos diante de um grave problema das múltiplas comparações, que pode se computado da seguinte forma:
Considerando o alfa de 5%, se a hipótese nula for verdadeira (grupo tomografia = grupo controle), a probabilidade de aparecer um resultado falso-positivo em um desfecho primário único é 5%. No entanto, estamos fazendo 9 tentativas secundárias de obter um resultado positivo. Se cada uma destas tentativas possui 5% de probabilidade de um resultado falso-positivo, a probabilidade de um resultado falso positivo aparecer em alguma das tentativas é 1 – 0.95k, sendo K o número de tentativas. Desta forma, a probabilidade de algum destes desfechos secundários se mostrar falso-positivo é 36%. Muito maior do que os 5% se estivéssemos analisando um único desfecho primário.
Para agravar, o poder estatístico do SCOT-HEART, após correção para a incidência do desfecho é de apenas 27%, como comentamos em postagem anterior. Temos então dois mecanismos de fabricação aleatória de um falso-positivo: os múltiplos desfechos testados e um estudo que carece de poder estatístico. Desta forma, a probabilidade de falso-positivo se torna maior do que 36%. Em terceiro lugar, se consideramos o risco de viés de mensuração do desfecho (averiguados por registros clínicos de prontuário eletrônico, não adjudicados), o SCOT-HEART é uma máquina aleatória e sistemática de gerar resultados falsos.
Esta é mais uma explicação para a inverossímil redução relativa do hazard de 41% na incidência do desfecho combinado de infarto e morte cardiovascular em 5 anos de seguimento após a realização da angiotomografia de coronárias. Como comentamos no artigo anterior, a prevenção de um desfecho clínico pela realização de um exame depende de três probabilidades condicionais (P de achado anormal x P de mudança de conduta x P de benefício da conduta), diferente da probabilidade de benefício de um tratamento que tem apenas um componente.
Desta forma, é bom demais para ser verdade que a realização de um exame promova um benefício com a magnitude usual de bons tratamentos, que varia de 20% a 40%. Aqui nos referimos a redução relativa, pois esta descreve o “tamanho de efeito” intrínseco de uma conduta, que não varia com risco absoluto.
Dois Escândalos
É escandaloso os autores descreverem como desfecho primário uma desfecho que foi pré-definido como secundário. Isso mostra a falta de integridade científica nos bastidores deste trabalho.
Talvez mais escandaloso seja a aceitação deste artigo por parte da comunidade médica, que parecia comemorar o resultado do trabalho, apresentado com destaque no Congresso Europeu de Cardiologia em Munique.
Problemas de integridade científica não pertencem a um indivíduo moralmente defeituoso. Falta de integridade científica decorre de um ecossistema defeituoso, passando pelos produtores da pesquisa, pelos editores e revisores e pelos que lêem o artigo sem a visão crítica necessária.
Mas como explicar que uma série de pessoas possam cometer erros em sequência sem que haja uma conspiração?
O Viés de Legião
Originalmente, poderíamos julgar muito estranho que milhares de cardiologistas assistindo simultaneamente à apresentação do estudo concordem com um resultado falso. Será que a “legião” de médicos favoráveis ao resultado do artigo não seria uma evidência a favor da veracidade?
Vale a pena remontar às observação do médico e estatístico sueco Hans Rosling, que ficou famoso por suas palestras no TED, em que usava gráficos estatísticos dinâmicos para demonstrar como a maioria das pessoas se equivoca quanto a fatos importantes da vida.
Rosling costumava fazer perguntas deste tipo a uma legião de intelectuais: "quantas crianças de países de baixo nível sócio-econômico possuem ensino básico? 20%, 40% ou 60%?". A resposta certa é 60%, mas apenas 7% dos intelectuais respondiam correto. A maioria marcava 20%. Observem que se perguntássemos a um macaco qual a alternativa correta, este acertaria 33% das vezes. Por que os homens acertam apenas 7%? A resposta está em nosso viés de positividade. Nós tentemos a acreditar no resultado mais significativo (mais positivo), seja quando estamos falando de um fator de risco, seja no benefício de uma conduta. Nossa mente tem um tropismo por maior contraste, assim tentemos a acreditar em resultados extremos demais para serem verdade.
E isso é um fenômeno coletivo, criando uma legião de crentes no resultado mais significativo. O imenso número de pessoas pensando da mesma forma, reforça a crença dos participantes da legião. É o viés de legião.
O problema se agrava quando somos médicos especialistas, entusiasmados com nossas ferramentas tecnológicas. Isso justifica termos acreditado tanto nos estudos pequenos e enviesados da hipotermia pós-parada e beta-bloqueador da cirurgia não cardíaca, que viraram recomendações de guidelines, ou na terapia de reposição hormonal dos estudos observacionais (assuntos antigos do Blog). O mesmo ocorre agora com o SCOT-HEART, que ao ser apresentado com glamour no congresso europeu criou sua própria legião de crentes.
Os Vieses da Novidade, Positivismo e Confirmação
O SCOT-HEART é o estudo mais recente, portanto surge como uma novidade que traz evolução do conhecimento. No entanto, já havia um outro estudo publicado anos antes. Trata-se do estudo PROMISE: estudo maior (10.000 pacientes), desfecho verdadeiramente primário, definido a priori, com follow-up para avaliação de desfechos, adjudicados. Ou seja, o PROMISE é um estudo de qualidade imensamente superior ao SCOT-HEART. E seu resultado foi negativo.
Por que então preferimos acreditar na evidência positiva de má qualidade do que na evidência negativa de boa qualidade? Pois nossa mente tem tropismo pelo positivo (viés do positivismo) e pelo novo (viés da novidade). Assim, utilizamos o viés de confirmação (selecionamos evidências positivas e desconsideramos as negativas) para reforçar nossa crença.
Esta análise demostra que ao considerar os vieses cognitivos da mente biológica, não precisamos da indelicadeza de mencionar conflitos de interesses que também podem mover as legiões de crentes.
O Rei que Estava Nu
Conta a estória de Hans Christian Andersen (1937) que um rei muito vaidoso encomendou de dois alfaiates uma roupa sem precedentes, tão original que nunca alguém tivesse vestido igual. Na impossibilidade de concretizar o desejo do rei, os alfaiates idealizaram uma roupa imaginária, que diziam ser invisível aos olhos de pessoas estúpidas. O próprio rei, ao experimentar a roupa, não conseguiu visualizá-la no espelho, porém fingiu que estava vendo para não parecer estúpido. Da mesma forma, todas as pessoas percebiam que o rei estava nu, porém ninguém lhe chamava a atenção pelo receio de serem consideradas estúpidas. E assim o rei passou boa parte de seu reinado nu, exposto ao ridículo. O medo de parecer estúpido fazia com que as pessoas aceitassem o inverossímil. De fato, muitos acreditavam que estavam vendo a roupa, pois queriam acreditar não ser estúpidos.
Essa estória retrata o mecanismo pelo qual alguns mitos perduram na medicina.
Um belo dia, durante um importante desfile em praça pública, ao ver o rei passar com a suposta roupa, uma criança gritou: o rei está nu! Essa criança desmascarou a farsa criada pelos alfaiates, constrangeu o rei, e principalmente os súditos que acreditaram na mentira ou ficaram com vergonha de discordar.
Alguns interpretam que foi a inocência da criança que permitiu sua observação. Na verdade, reza a lenda que essa era uma daquelas crianças meio maliciosas. Neste caso, a diferença entre criança e adulto foi a coragem de reconhecer a verdade e discordar da legião de fanáticos.
Que o SCOT-HEART nos sirva de alerta para os múltiplos vieses que nos afastam da integridade científica. Alerta para o prevalente fenômeno de “fake-news científica”.
Luis, parabéns, muito criativo como sempre. Esses tempos tivemos extenso debate com revisor sobre detalhes frescuras de diferença entre o protocolo e o trabalho. O NEJM é realmente um misto de berço de inovações e sócio do status quo. Não por grana ou corrupção explícita, mas pelo que bem disseste, "the environment". Editores, revisores e o escambau estão sempre carentes de trabalhos para justificar sua prática, que logo ficam abrigados pela aura de inovação que marca os trabalhos do NEJM em geral. Escreva uma carta, please, mesmo que aceita não vai mudar nada (tenho orgulho de um artigo do Horton, editor do Lancet, publicado no JAMA, sobre a desimportância dadas as cartas que identificam os defeitos dos artigos publicados, inclusive no Lancet, onde usa uma carta minha sobre um dos estudos tortos de anti-hipertensivos). Mas tenho o consolo que um futuro arqueólogo de falácias médicas (tenho dificuldade de usar o termo científico, pois como purista, acho que não pode haver falácia científica, somente mentira travestida de ciência) encontre uma indicação de que havia independência e alguma luz na era das trevas científicas. Grande abraço,
ResponderExcluirVcs podem me indicar um bom artigo de leitura crítica de artigos científicos? Obrigada
ResponderExcluirMeu amigo Luís,
ResponderExcluira (in)verossimilhança do tamanho de efeito de um teste diagnóstico sobre mortalidade cardiovascular é realmente desconcertante. O SCOT-HEART perdeu uma grande de reduzir o número de "benefícios de dúvida" da comunidade científica (e de tomadores de decisão) ao se abster de controlar o estudo por um comparador ativo - se assim o fizesse, a rede de incertezas emaranhadas por axiomas Bayesianos, embora desconhecida por nós até o momento em relação ao impacto sobre o tamanho de efeito (que é provavelmente substancial, mas isto é somente uma opinião anedótica sem nenhum dado de suporte), estaria ao menos pareada erro a erro.
Já em relação ao registro e ao protocolo, os dados disponíveis neles me causam sentimentos paradoxais em relação ao benefício da dúvida aos autores Me conheces o suficiente para saber o quão militante e rígido eu sou com ciência aberta, registros, protocolos e os potenciais desvios de. Qualquer desvio pra mim não é considerado detalhe. Deve ser olhado com atenção, apreciado em relação ao potencial impacto causado e, principalmente, deve ser acompanhado de transparência - desvios podem ocorrer não por conta de má conduta e, por isso, devem sempre ser relatados no manuscrito principal (ou em emendas). Realmente, como tu pontuastes, a aderência ao protocolo (ou o desvio justificado) é um demasiado reflexo de integridade científica, transparência e benevolência com leitores. O desfecho secundário foi travestido de primário sim, mas eu vejo isso por outras razões. Tenho alguns pontos, que serão lançados sequencialmente nos comentários. Ficou extenso.
- O protocolo (https://trialsjournal.biomedcentral.com/articles/10.1186/1745-6215-13-184), além do registro (clinicaltrials.gov, NCT01149590) não é totalmente transparente. Muitas definições são faltantes, mas as que mais me chamaram atenção é a completa ausência da forma de medida - um experimento conduzido ano passado pelo Mayo-Wilson mostrou o quanto a multiplicidade de modos de medir um mesmo desfecho pode impactar o tamanho de efeito ou mesmo a síntese (MUDS Study). Outro ponto que me chamou atenção, e já levantado por ti, é que os desfechos não são claramente descritos no momento do tempo em que serão coletados e apresentados. Há uma passagem frágil sobre um tempo de follow-up de 10 anos (no registro, e não no protocolo) que não é rígida o suficiente para deixar claro o momento do tempo exato. Dessa forma, aqui há um grande problema de mau relato e, principalmente, de um desvio que deveria vir acompanhado de uma justificativa no manuscrito. PS: já que o NEJM não trabalha com revisão por pares abertas, guess what! Gostaria de saber o que revisores e editores acharam disso (ou se ao menos perceberam este simples ponto);
ResponderExcluir- O desfecho primário foi relatado no Lancet em 2015 (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25788230),
e seguiu o proposto no registro e o protocolo originais (pelo menos no que chega até os nossos olhos). Isso atenua um potencial selective outcome reporting para esse fato em especial. É como uma gangorra;
- De novo sobre relato, o desfecho secundário combinado não está claro em relação à composição e existem divergências entre o registro e o protocolo. É mencionada uma pletora de desfechos no protocolo para esse composto, já no registro é o combinado que está relatado no NEJM 2018. Aqui, o selective outcome reporting volta pra mim e minha dúvida cresce, especialmente acompanhada do tamanho de efeito observado. Como não existem dados abertos e não há plano de análises interinas, a perda do benefício da dúvida se engrandece. PS: O protocolo está no BMC Trials e tem as revisões disponíveis. É inacreditável o não-crivo que o protocolo sofreu. Preciso respirar fundo para não ser desrespeitoso com este caso; PS2: o plano de análise estatística foi liberado em março de 2018 em um repositório do departamento da PI (Michelle Williams), inacessível: https://www.research.ed.ac.uk/portal/en/publications/longterm-follow-up-of-the-scotheart-trial--statistical-analysis-plan(e401549b-5b4f-4fb4-a3db-9477e464aefc).html. Qual é o sentido de liberar esse documento em 2018 se os dados do SCOT-HEART começaram a sair em 2015?
- Os desfechos secundários (mortalidade CV e IAM não fatal) NÃO ESTAVAM sujeitos à adjudicação no NEJM 2018. O problema não é somente do Lancet 2015 em que pacientes não foram cegados para um desfecho auto-relatado - angina de peito. Alguns dirão que não haveria como cegar pacientes para uma CCAT - eu já sou um pouco mais ortodoxo com esse tipo de situação nesse exato contexto de uma relevância clínica. Já a ausência de adjudicação é injustificável.
ResponderExcluirAqui o meu ponto mais importante: o artigo com os desfechos secundários foi elevado a um nível acima do que contém os desfechos primários. Propositalmente ou não. E aqui eu digo porque vejo o “travestimento” por outro lado e não por potenciais desvios de protocolo, já que o mais grave (que seria mudar a hierarquia de desfecho) parece não ter acontecido. Deixe me explicar:
- O racional do estudo traz incongruências. A justificativa da condução do ensaio clínico é que testes diagnósticos encerram sob a égide de estudos de acurácia diagnóstica mas pouco se sabe em relação ao impacto sobre desfechos clinicamente relevantes. Mortalidade CV e IAM não fatal não deveriam ser desfechos secundários e sim desfechos primários, dada a justificativa (sou avesso à hierarquia dura de desfechos - isso realmente depende do contexto). Porque será que isto foi assim? Me deixe ser um tanto pernicioso.
- O desfecho primário escolhido tem mais alta probabilidade de sucesso a tratamentos (ao acaso ou a placebo (ORBITA e outros), mas isso não importa em muitas vezes para a maioria dos leitores); tem com maior taxa anual de eventos (classicamente); tem maior risco de viés de aferição (embora o NEJM 2018 esteja radicalmente sob o mesmo risco). Então temos um planejamento de estudo para desfechos secundários relativamente mais robustos, e que deveria ser o estudo primário. Mas não foi isso que aconteceu e nem a robustez se manteve. Abaixo o que houve de mais grave na minha opinião: o momento em que o artigo que contem os desfechos com menor risco de viés e com maior impacto sobre tomada de decisão (mas que contém problemas metodológicos graves) foi publicado!
- Uma vez que o protocolo não foi desviado em relação à hierarquia dos desfechos, o sucesso do estudo de 2015 vence qualquer problema metodológico grave do estudo de 2018. Revisores e editores de periódicos, leitores, tomadores de decisão, editores do ACP Journals e UpToDate e stakeholders certamente estarão em risco de aceitar esse resultado inverossímil (aliás, editores e revisores já o fizeram). Parece que anos depois do Ian Chalmers deixar isso explícito no BMJ, comparações injustas de tratamento, plano de publicações injustos, relatos injustos, e spin de escrita continuam radicalmente prevalentes. By the way: este problema seria muito menor se houvesse consenso sobre as razões de se fazer ciência: tentar mudar a sociedade e o status do conhecimento, e não ter publicações e citações.
ResponderExcluir-
Enfim, está é uma reflexão à parte do que já foi brilhantemente levantado por ti. Pior, não permitem pesquisadores, de forma honesta e não com vistas à prejuízo, investigar ou tentar reproduzir os resultados, porque o protocolo é mal escrito, a análise estatística que foi conduzida a posteriori não pode ser validada porque não existe plano a priori, potenciais desvios de protocolo não foram relatados nos manuscritos e, por fim, porque os dados brutos do estudo não estão disponíveis publicamente - o que é indefensável sendo o mesmo financiado com verba pública britânica. O meu único senão às tuas colocações é que eu não consideraria o estudo inaderente ao desfecho primário, já que este está descrito no manuscrito de 2015. Ele está travestido sim de desfecho primário, mas não por desvio de protocolo, mas sim por todo o ecossistema que ele está embebido.
Um abraço forte,
LH
Espetacular!
ResponderExcluirA leitura dessa última postagem (e dos outros últimos posts) me fez parar pra delinear um pouco uma linha temporal do que vivemos de uns tempos pra cá. Mais do que refletir sobre o estudo, cabe - e em mim reverberou muito isso - a reflexão sobre o entorno, o cenário em que ele existe. Embora o meu contato com a ciência seja ainda muito pueril, sinto a presença da hipermodernidade e dos contextos sociais (um tanto falidos em alguns aspectos) que nos cercam rondando a ciência. Nos últimos tempos, tudo tem sido sufocante, o raso anda tomando conta da grande maioria do que que nos é ofertado enquanto leitura e as “fake news” andam se tornando um cartão de visita do que recebemos da mídia geral e, o mais desconcertante, da especializada.
ResponderExcluirQuanto mais se pensa no cerne desse assunto, pior fica: maiores são as interrogações. Em mim, foram muitas. Seguem sendo. A beligerante indústria de produção de artigos, os valores “ecossistemáticos” morais e coletivos que se corrompem e essas corrupções, micro ou macros, que respingam no produto final que nos é ofertado; o culto ao pseudocientificismo feito por esse grande sistema industrial de maneira apoteótica; os holofotes que se viram pras grandes falácias… tudo isso aguça os sentidos de descrença e fazem pensar: até onde chegarão as indigestas produções? Os resultados dessa máquina alcançam qual distância? Até quando estudos assim serão pontas de uma enorme colcha de retalhos, nós de tensão na linha da ciência? O mais inquietante é imaginar o porquê, as razões. Como se já não fossem suficientes as trapaças da nossa própria mente, dos constantes fatores de confusão, no império do hoje, os reis nus travestidos de si mesmos são personagens grandes, que ganham forças e dimensões cada vez maiores, embaçando a realidade e pureza das evidências.
As inverossimilhanças crescem e fazer ciência em um cenário assim acaba se tornando um grande manifesto, sobretudo a ciência séria, de qualidade, num país e numa época onde nos cerceiam os recursos e somos inundados pelas fantasias. Na visão de discente, ainda com muito caminho a percorrer e muito o que amadurecer, a inquietação aumenta. Afinal, textos assim não são só centelhas pra debates científicos, mas pra além disso, espelhos pra pensarmos e refletirmos o agora, o hoje. Mas, se também pararmos pra olhar as origens dos conceitos, lembremos da ideia de que a ciência serve sobretudo de filtro para as nossas realidades. Filtremos.
Caro Luis
ResponderExcluirParabéns por mais essa contribuição .
Não poderia deixar de fazer uma analogia ao momento eleitoral que estamos vivendo , seja pelos fakes news e também pelo conto do rei nu
Temos um candidato que está nu, pelo vazio das suas propostas, e que tem sido seguido por uma legião de fanáticos
Que a criança possa despertar antes que seja tarde
Abraço
Excelente perspectiva levantada pelo Luis sobre o estudo, à luz dos viéses cognitivos. A analogia à história do Rei Nú é extremamente feliz quando se trata das fake-news e nos remete ao "comportamento de manada", muito estudado na psicologia social e que nos mostra como podemos adotar comportamentos errados diante de um contexto maior de comportamento coletivo. É muito claro que simplesmente seguir comportamentos externos, sem fazer juízo crítico, nos é mais econômico do ponto de vista de gasto de energia cerebral, e é um mecanismo de "sobrevivência" social. Por outro lado, diante de práticas profissionais que podem influenciar a vida de outra pessoa, pode ser algo extremamente danoso. Cito aqui o interessantíssimo estudo de Solomon Asch sobre a "unanimidade burra", em que voluntários reproduziam respostas erradas de outros falsos voluntários diante de simples testes visuais. Fica mais fácil entender a pesquisa assistindo do que falando: https://www.youtube.com/watch?v=SSLW2Ar_jJY
ResponderExcluirMaravilhoso!
ResponderExcluirE fazendo uso de um de meus contos de fadas favoritos!!!
E a Cochrane? Quanta decepção, hein?
Parabéns professor, como sempre alto nível! Mas me diga, É comum em muitos grupos serem criados projetos do tipo "guarda- chuva" com vários pedaços(desfechos), isso contribui para o fenômeno do P-hacking, correto? uma vez que, os desfechos secundários concorrem entre si, e também não há cálculo amostral individual. Abs
ResponderExcluirParabéns professor, como sempre alto nível! Mas me diga, É comum em muitos grupos serem criados projetos do tipo "guarda- chuva" com vários pedaços(desfechos), isso contribui para o fenômeno do P-hacking, correto? uma vez que, os desfechos secundários concorrem entre si, e também não há cálculo amostral individual. Abs
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