* Texto de Luis Correia, publicado originalmente no site do Slow Medicine sob o título "Médico sem Jaleco e Decisão Compartilhada"
Planejava há algum tempo escrever sobre o paradigma da “decisão compartilhada”, gravemente confundida com “decisão consentida”. E foi uma história de bastidor que inspirou a concretização deste texto.
Recentemente, fui convidados pelo programa matinal Bem Estar, a fim de discutir o paradigma do choosing wisely (menos é mais). Embutida no choosing wisely está a decisão compartilhada.
Ao chegar nos estúdios da Rede Globo em São Paulo, eu e Thiago Trindade (Sociedade dos Médicos de Família) fomos apresentados à ideia de que os médicos que participam do programa vestem um jaleco branco. E nos ofereceram um armário de jalecos, com todos os modelos e tamanhos para escolhermos. Confesso que fiquei desconfortável com a ideia do jaleco, por algum motivo aquilo não me pareceu “sábio”. E pensei, como vou sair dessa?
Neste momento, me veio uma metáfora em mente: “médico choosing wisely não usa jaleco”. Um dos componentes principais da sabedoria médica é a decisão compartilhada, quando o médico sai do seu pedestal e se coloca no nível do paciente. E vou mais longe, médico choosing wisely também não usa o símbolo fálico da gravata (mulheres são mais sábias), nem precisa usar roupa branca. Enfim, não há nada de sábio em tentar se diferenciar do paciente com base na autoridade da roupa. Precisamos nos aproximar.
Consegui o que queria, o programa nos dispensou de usar o jaleco, nos despimos da farda, o que nos possibilitou “conversar” com o público, ao invés de “ensinar” aos espectadores. E o médico sem jaleco foi a temática que iniciou o debate do programa.
Essa simbologia do médico sem gravata, sem jaleco, sem branco remonta à necessidade de discutirmos o que é uma verdadeira decisão compartilhada, conceito pouco compreendido até mesmo pelos que propõem a estratégia como componente importante do exercício da medicina baseada em evidências.
O que é decisão compartilhada?
Decisão compartilhada não é um médico de jaleco apresentar ao paciente uma opinião especializada e deixar que o paciente tome a decisão final. Isso é “decisão consentida”, quando damos ao paciente o direito de consentir ou não com nossa opinião de jaleco.
Decisão compartilhada não é um médico de gravata traduzir uma série de dados estatísticos ao paciente, para que este possa tomar sua decisão final. Isso é “decisão delegada” ao paciente.
Decisão compartilhada não é apenas respeitar a preferência do paciente. Decisão compartilhada é utilizar as preferências e valores do paciente na formação da opinião médica.
Na decisão compartilhada a opinião do médico é primariamente influenciada pelo paciente e não o contrário. Por este motivo, o médico precisa deixar o jaleco no armário (ou jogar fora de preferência, junto com suas roupas brancas). E pode guardar uma gravata para dias de casamento.
Há uma grande diferença entre respeitar (ética) e utilizar (raciocínio clínico). Devemos sempre respeitar, mas isso é básico, mas o respeito não implica necessariamente em compartilhamento. Utilizar a preferência do paciente aumenta a efetividade de nossas escolhas. Afinal, não queremos apenas ser eficazes (aplicar conceitos científicos), no final queremos ser efetivos (beneficiar no mundo real).
Como fazer decisão compartilhada?
Etapa 1. A Evidência
O processo de decisão começa pela evidência científica, pela prova do conceito. Imagine um tratamento comprovadamente benéfico de acordo com estudos de qualidade. Esse é o ponto de partida, o benefício e a magnitude desse benefício. Digamos um tratamento com redução relativa do risco de 30%. A redução relativa é a propriedade intrínseca do tratamento, constante em diferentes tipos de pacientes. Por isso, a redução relativa é o conceito científico trazido pela evidência.
Etapa 2. A Clínica
Em segundo lugar, analisaremos a individualidade clínica do paciente, calculando seu risco e consequentemente seu número necessário a tratar (NNT). Sabemos que escores de risco estão disponíveis para a maioria das situações. Ao utilizar um modelo probabilístico, faremos a estimativa do risco individual do paciente com base em suas características individuais. Quanto maior o risco, maior será o benefício individual do tratamento que possui uma dada redução relativa do risco (RRR) demonstrada cientificamente.
Enquanto a RRR é uma prova de conceito generalizável, o NNT é uma propriedade individual do paciente que recebe o tratamento.
Uma decisão individualizada não deve copiar o NNT do trabalho científico, pois este é apenas uma média dos NNTs da amostra. Para calcular o NNT individual do paciente, multiplicamos a RRR (evidência) pelo risco basal do paciente (individualidade clínica).
Assim, se eu aplicar 30% de redução em um paciente de 10% de risco, obterei 3% de redução absoluta e NNT = 33.
Se eu aplicar o mesmo 30% de redução de risco em um paciente de 1% de risco, obterei 0.33 de redução absoluta, e um NNT = 333.
Para um mesmo tratamento, obteremos diferentes efeitos individuais. Portanto, nesta segunda etapa, olhamos o paciente em sua individualidade clínica, não copiamos o resultado de um trabalho, mas nos baseamos no conceito científico e generalizável para chegar à individualidade do paciente.
Enquanto a RRR é uma prova de conceito generalizável, o NNT é uma propriedade individual do paciente que recebe o tratamento.
Uma decisão individualizada não deve copiar o NNT do trabalho científico, pois este é apenas uma média dos NNTs da amostra. Para calcular o NNT individual do paciente, multiplicamos a RRR (evidência) pelo risco basal do paciente (individualidade clínica).
Assim, se eu aplicar 30% de redução em um paciente de 10% de risco, obterei 3% de redução absoluta e NNT = 33.
Se eu aplicar o mesmo 30% de redução de risco em um paciente de 1% de risco, obterei 0.33 de redução absoluta, e um NNT = 333.
Para um mesmo tratamento, obteremos diferentes efeitos individuais. Portanto, nesta segunda etapa, olhamos o paciente em sua individualidade clínica, não copiamos o resultado de um trabalho, mas nos baseamos no conceito científico e generalizável para chegar à individualidade do paciente.
Nesta fase, devemos avaliar também o risco de efeito adverso do tratamento. Os ensaios clínicos trazem o risco relativo para efeito adverso. Por exemplo, clopidogrel tem um RR = 1.29 para sangramento em pacientes com síndromes coronarianas agudas sem supradesnível do ST. Significa 29% de aumento do risco. Multiplicamos o risco basal de um paciente que usam apenas aspirina por 29% e saberemos qual o NNT para causar um sangramento com a adição de clopidogrel.
Aqui vale um parêntese. Ouvimos frequentemente um lema contra a evidência e a favor da intuição médica de que “uma coisa é o que mostra um estudo, outra coisa é o paciente individual”. Isso é uma falácia, pois se não nos basearmos no estudo (RRR), não poderemos saber do impacto individual de nossa conduta.
Etapa 3. O Paciente, seus valores e preferências
Agora vamos à terceira etapa, que levará em consideração o paciente do ponto de vista pessoal, seus valores e preferências. O que calculamos até a segunda etapa foi a probabilidade do paciente se beneficiar de sua conduta. A partir de agora, devemos nos perguntar: o paciente deseja fazer essa aposta probabilística?
Digo aposta pois toda conduta implica em um custo para o paciente, não monetário. Custos não monetários podem ser de várias categorias: obrigação de lembrar de tomar um remédio diariamente ou gastar seu tempo fazendo um tratamento fora do domicílio; insatisfação de precisar tomar remédio quando o paciente é aquele que preza por coisas mais naturais; efeitos adversos que podem ser mais frequentes do que mostram ensaios clínicos; complicações sérias, sequelas, estresse psicológico de um tratamento.
Digo aposta pois toda conduta implica em um custo para o paciente, não monetário. Custos não monetários podem ser de várias categorias: obrigação de lembrar de tomar um remédio diariamente ou gastar seu tempo fazendo um tratamento fora do domicílio; insatisfação de precisar tomar remédio quando o paciente é aquele que preza por coisas mais naturais; efeitos adversos que podem ser mais frequentes do que mostram ensaios clínicos; complicações sérias, sequelas, estresse psicológico de um tratamento.
Na prática, quando é uma conduta é voltada para melhorar prognóstico (futuro), o paciente paga um preço hoje para talvez (probabilidade) desfrutar de um benefício futuro (prevenção de doença ou melhor evolução de doença). A depender do paciente, este pode querer apostar ou não. E isso depende do valor do benefício no ponto de vista do paciente. Uma cirurgia de joelho para um jogador de futebol tem muito mais valor do que para um burocrata. O primeiro estaria disposto a pagar um preço mais alto para obter o mesmo benefício do segundo paciente.
Portanto, o benefício varia com o valor do desfecho para o paciente, que deve ser computado no processo de construção de nossa opinião médica. E o caminho não é exatamente perguntar ao paciente “qual o valor desta conduta para você?”. Cabe a nós, profissionais treinados, fazermos a leitura das preferências de nosso paciente, com base no que conhecemos dela (e) e no que conversamos com ela (e). Neste momento, nossa opinião está sendo moldada pela preferência do paciente.
Este processo de utilização das preferências do paciente na construção de nossa recomendação é o inverso do habitual. Normalmente o médico emite sua preferência de conduta para que o paciente assimile essa recomendação de acordo com seu ponto de vista. Porém o paciente não é treinado para isso, ou seja, incorporar a evidência de acordo com sua preferência. Portanto, porque não considerar a perspectiva do paciente antes de emitir nossa opinião? Esta é a verdadeira decisão compartilhada, que não precisa estar explícita, mas sim implícita no pensamento médico.
Há dois motivos para a proposta deste tipo de decisão compartilhada. O primeiro é a efetividade da recomendação e o segundo é a satisfação do paciente.
Efetividade Clínica
Há uma lacuna entre eficácia (prova do conceito no trabalho científico) e efetividade (mundo real). Um dos fatores que promovem essa lacuna é que há certas condutas cuja efetividade depende da preferência do paciente. Uma recomendação dietética terá mais efetividade em um paciente que deseja muito perder peso, do que para um paciente que não tem esse interesse. Imaginem dois tipos de dieta (A e B), sendo que a dieta A é mais eficaz para perda de peso, de acordo com ensaios clínicos randomizados. No entanto, a dieta A é menos saborosa, mais difícil de obedecer, implica em uma série de privações, enquanto a dieta B é mais agradável. Assim, no mundo real, a dieta A pode ser menos efetiva do que a dieta B. Como médicos, nosso objetivo é efetividade. Teremos maior efetividade quando conseguirmos acoplar a evidência com a preferência. Pode ser que para alguns pacientes a dieta B seja uma melhor escolha, mais efetiva embora menos eficaz.
Existem evidências de que a decisão compartilhada promove efetividade clínica? Até certo ponto, sim. Revisão sistemática de ensaios clínicos randomizados que compararam intervenção pró decisão compartilhada versus controle (Clin Psychol Rev 2014) sugere benefício em desfechos clínicos, de magnitude modesta. No entanto, a maioria dos modelos de decisão compartilhada corresponde ao que chamei de “decisão delegada” no início do texto. Ou seja, utilizam ferramentas que traduzem riscos e benefícios para que o paciente tome sua decisão.
Neste texto, propomos uma abordagem evolutiva em relação à tradicional: a opinião do médico ser influenciada pelo paciente. É possível que esta abordagem tenha maior tamanho de efeito. Nesta questão, precisamos de mais evidência.
Satisfação, o desfecho primordial
Em medicina falamos muito em desfechos clínicos duros, representando eventos relevantes que desejamos prevenir utilizando nossas condutas médicas. Neste sentido, o desfecho mais duro que existe é morte. Mas será que o desfecho primordial não deveria ser satisfação?
Satisfação tem um componente garantido e imediato, que é o conforto com a conduta preferida; e um componente probabilístico e futuro, que é o resultado da conduta no desfecho clínico. Quando um paciente “aceita” um tratamento a contra-gosto, sua insatisfação é garantida e imediata. Enquanto o componente clínico da satisfação é probabilístico e futuro.
Desta forma, pode não ser uma decisão muito econômica escolher uma conduta baseada apenas no benefício clínico probabilístico, em detrimento da preferência do paciente. Precisamos equacionar os dois.
E quanto a evidências? Uma revisão sistemática de 115 ensaios clínicos randomizados publicada pela Cochrane em 2014 indica que decisão compartilhada promove mais satisfação sob a forma de conforto quanto à decisão, sensação de conhecimento do assunto e participação na decisão, redução de conflitos.
The Doctor
“The Doctor” é o nome dessa famosa pintura, que retrata a cena de uma criança gravemente enferma. É uma obra de Sir Luke Fildes (1890) e está exposta no Museu Tate Britain de Londres. A menina era a filha do pintor, que morreu dias depois.
Enquanto esta figura tem inspirado uma legião de médicos, uma peculiaridade precisa ser ressaltada: esta cena é a antítese da decisão compartilhada. Observem que o médico pensa com maestria no caso clínico, enquanto a presença dos pais passa quase desapercebida. Ao fundo, discretos, há uma pai que olha o médico e uma mãe desesperada. Os pais não têm participação ativa na cena, muito menos participação na decisão, imagino. A cena é uma apologia ao médico, que está no centro da figura, é uma antítese ao paradigma do médico sem jaleco.
The Doctor representa um aspecto da medicina tradicional, bem caracterizada na frase de Hipócrates: “Qualquer leigo que diga como o médico deve fazer seu trabalho está cometendo uma impertinência ultrajante.”
Decisão compartilhada não é o tradicional, e para que faça parte de nosso cotidiano médico necessitamos evoluir culturalmente. Choosing wisely é um movimento de transformação cultural. No processo compartilhado, o “menos é mais” poderá prevalecer a depender da preferência do paciente. Choosing wisely representa um paradigma a ser modificado progressivamente, a partir do diálogo entre profissionais e de profissionais com a sociedade.
No estágio em que estamos, ainda confundimos decisão compartilhada com decisão consentida. E na prática científica, o que tem sido testado como decisão compartilhada é na verdade decisão delegada. Ensaios clínicos randomizados utilizam a metodologia de uma boa comunicação das evidências (panfletos com figuras que demonstram as probabilidades de benefício e risco) para que o paciente tome sua decisão. Porém esta metodologia faz o paciente se sentir sozinho, a ponto dele retornar a pergunta ao médico: “Dr., se fosse seu pai, o que você faria?”
Vale salientar que este é um texto conceitual. Este conceito de decisão compartilhada precisa ser testado cientificamente, a fim de demonstrar o efeito de uma verdadeira decisão compartilhada: reduz desfechos clínicos? Qual o tamanho do efeito na satisfação se comparado à decisão delegada ou consentida?
O que de fato funcionará melhor, um médico de jaleco ou sem jaleco?
Enquanto aguardamos evidências a respeito do jaleco, utilizo minha preferência pessoal, evito o jaleco no consultório, abandono a gravata e as roupas brancas já entraram em desuso há quase três décadas. Essas escolhas pessoais nos tornam mais humilde, abrindo espaço para o desejo de compartilhar incertezas com o paciente, conversar com transparência, e nos deixar influenciar pelos valores de quem está de fato com a “pele no jogo”.
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Amei, amei, amei! Participo da gestão de hospitais há quarenta anos, não sou médico - mas sou paciente - e essa tese foi feita pra se ler e reler diariamente. Aqui entre nós, só não gostei do “símbolo fálico da gravata” ...que, sim, uso diariamente. Josué Fermon
ResponderExcluirCaro luís,
ResponderExcluirDessa vez você nos premiou com dois conteúdos extremamente interessantes quase simultaneamente!
Me senti tentado a repetir minha intervenção prolixa no post sobre "Analfabetismo Científico e o Escândalo do Médium-Cirurgião". Mas tenho de me resumir:
Reafirmo aqui pra quem não leu aquele post. Estou saindo de um Mestrado em Evidencee-Based Healthcare para um MA Education na mesma Universidade. Conhecimento, e Educação, é Poder.
Meus amigos me perguntam:
- "Pra que? Não seria mais sábio fazer um Doutorado a seguir?"
Minha simples resposta: Ao invés de apenas ter mais um título, sinto a evidente necessidade de compreender os caminhos da Educação e do Conhecimento. Tenho ainda muito que aprender a educar.
Resumo este pensamento em termos de Decisão Compartilhada:
Quem não educa, decide [pelo paciente]. Quem educa, não decide - pois com quem educa, o paciente decide!
Que beleza de texto, Luís! Não sou médico, mas gosto muito de acompanhar os seus sempre bem escritos argumentos e considerações. Depois de muita reflexão e algumas leituras, tenho um posicionamento de não chamar nenhum médico, dentista, advogado etc. do cafona "DOUTOR fulano de tal". Sabe de uma coisa? Sinto, na minha experiência, que as relações ficam horizontalizadas, o profissional mais próximo de mim, o que é ótimo. Mas, em nossa cultura que gosta sempre de demarcar as hierarquias, engraçado que são as/os secretários desses profissionais que me "corrigem": "ah, você está querendo marcar uma consulta com o DOUTOR Fulano?". Só me resta rir e lamentar ao mesmo tempo tamanha bobagem. Sobre esse tema, não sei se já leu o texto da jornalista Eliane Brum, "Doutor Advogado e Doutor Médico: até quando?". Recomendo! Abraços.
ResponderExcluirTexto que ilumina questões essenciais para a pessoa em sofrimento e a de seus famiares. O acompanhamento de grávidas ilustra muito bem dilemas éticos sobre condutas medicas dissociadas de desejos intimos claramente expressos de mulheres. Quando médicos determinam procedimentos baseados em sua autoridade e conveniência e não no real estado clinico e possibilidades da gestante. Igualmente nos quadros complexos de sofrimento com pouquissimas possibilidades de reversão clinica e que pedem moderação nas intervenções, escuta dos desejos de pacientes e a não postergação de cuidados paliativos. Parabéns ao autor. Sua proposta é humanizadora e democrática. Assim se faz boa ciência.
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