quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Analfabetismo Científico e o Escândalo do Médium-Cirurgião




* Texto de Luis Correia recentemente publicado no Jornal A Tarde

Ceticismo é desejo de explorar antes de aceitar uma verdade. Ceticismo promove dúvida, que por sua vez promove a curiosidade necessária para o início da investigação. 

Crença é o alicerce do pensamento religioso, cuja proposta se distancia da curiosidade. 

Os paradigmas do ceticismo e da crença representam dois modelos mentais essenciais na vida humana, porém com funções diversas. Não faz sentido aplicar ceticismo a questões religiosas, assim como é inadequado aplicar crença a questões científicas. 

Inteligência científica não é o mesmo que conhecimento científico. É prevalente a coexistência de conhecimento científico e analfabetismo científico. Saber transitar entre os paradigmas dogmático e cético é o que caracteriza uma pessoa alfabetizada cientificamente.

Quando uma abordagem espiritual se intitula “cirurgia” com objetivo de beneficiar o prognóstico clínico de um paciente, devemos abandonar o paradigma religioso e adotar o paradigma científico. Produtos ou condutas médicas requerem demonstração experimental de eficácia e segurança.

É válido acreditar em benefícios espirituais de uma intervenção espiritual. Porém falta inteligência científica para conseguir dar crédito ao um indivíduo que promove “cirurgias espirituais” com instrumentos perfuro-cortantes sob a premissa de benefício clínico, a despeito da ausência de comprovação experimental da eficácia de suas abordagens; falta inteligência científica para não perceber que uma afirmação extraordinária requer evidência extraordinária. 

Violar o paradigma científico pode ter consequências não intencionais imprevisíveis. A confiança nas propostas curativas do médium-cirurgião promoveu uma santificação de sua pessoa, deixando a sociedade cega a respeito do óbvio. Não se pode confiar em indivíduos que se propõem a tais condutas sem antes realizar os devidos testes científicos. O mundo tem alguns exemplos clássicos de tragédias promovidas por líderes carismáticos. Estamos diante de mais uma dessas tragédias, sofrida por centenas de mulheres que procuravam alívio de algum sofrimento. 

Inteligência científica é uma questão de responsabilidade social. Como sociedade, precisamos assumir parte da responsabilidade, pois não bastou um indivíduo com baixa integridade moral, foi necessária uma sociedade de baixa “integridade científica” para aceitar uma fantasia curativa inaceitável.

Uma sociedade evoluída cognitivamente nãutiliza o paradigma da fé para questões científicas, nem o ceticismo em questões de crença. Uma sociedade evoluída tem religião ou espiritualidade como valores essenciais, mas sabe dar o protagonismo necessário à visão cético-científica.




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3 comentários:

  1. Texto excelente para nos mantermos sempre alertas e atentos ao princípio da hipótese nula! Parabéns.

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  2. Caro Luis,


    Mais uma vez uma questão que aponta no alvo de um problema nevrálgico de metodologia!

    Depois de concluir meu mestrado em Evidence-Based Healthcare resolvi iniciar um outro, para ver se finalmente me sinto apto para educar tanto meus colegas de trabalho como os pacientes a respeito das "Coisas da Medicina e da Patologia Clínica". Afinal, agora tem as "Coisas da Internet e a Internet das Coisas" que hoje quase todo mudo pode ver.

    Um exagero? Acho que não!

    Trabalhando com MBE nos tornamos, talvez, "Experts em evidência": buscar, escolher, e avaliar a Ciência produzida. E que vale isso, ao atender o cidadão comum?

    Nesse novo desafio, em uma área "distante da formação médica(?)", o primeiro módulo foi: "What is Education?"

    O primeiro trabalho: Tento entender os destinos recentes (10-15 anos) da educação Elementar até a Pós-graduação no Brasil. Minha supervisora ainda não respondeu, quiçá esteja tentando entender os links que tive de enviar em português (pedi desculpas e me prontifiquei a traduzir) a nossas evoluções (e desveturas) no ensino. Tive por objetivo analisar até que ponto as decisões dos "experts" influenciaram fatos atuais em Educação, Pesquisa e pós-Graduação.

    Não quero dizer que o cidadão brasileiro é muito ou pouco educado. Mas concluo que Conhecimento (e Educação) é Poder!

    Muitos cidadãos (brasileiros e do mundo, letrados e iletrados) são treinados por setores da sociedade a confundir Religião, Filosofia e Ciência!

    Dizia-se que os antigos filósofos eram "Polímatas", que "sabiam de tudo"; Acho que o "montante" de conhecimentos era na época menor, menos diverso e mais fácil de abranger. Até hoje, os cidadãos meio que confundem um pouco essas três coisas.

    Na Filosofia e na Religião, não há que "Basear-se em Evidências"!

    Nosso estado se diz "Laico". Duvido, pois Igrejas possuem isenção de tributos, bem como de vários atos praticados, em nome de Religiões - E são muitas...

    Temos uma em Salvador liberada para praticar, em suas dependências, o uso do "AYAHUASCA" - sabidamente tóxica e alucinógena, produzida e ritualisticamente distribuída através de fórmulas Xamãnicas. Afirmam ser capazes de tratar etilistas crônicos, e até outros tipos de farmacodependentes. E temos, obviamente, os cirurgiões Espirituais. Cadê a Evidência?? Nunca vi. É Religião!

    Temos, na Medicina - ou "Paramedicina" - outros tipos de práticas sem suficiente Evidência. Já apontamos algumas: "Terapias Florais", "Suplementos contra todos os cânceres", "Cura vegetal para doenças como diabetes", "Medicina Antroposófica" (que pelo jeito é a Medicina Polimática: mescla filosofia, religião e ciêtcia). Hoje me perguntaram sobre um "Maca Peruana" - ao consultar pela Internet, descobri ser uma "bomba nutricional" para a potência, desempenho e prazer sexual, entre outras dezenas de efeitos. "Compre a um preço módico no nosso site, pois o preço irá logo aumentar!".

    NãO posso falar nem contra nem a favor de nenhum desses corpos de conhecimentos - Se não por outra razão, porque não pertenço a tais grupos filosóficos ou religiosos.

    Mas a Evidência me permite falar que: Não Há Evidência Clínica de que Espíritos cortem e curem, Filosofias curem doenças, ou preparações sem princípio ativo (testado) curem ou mitiguem doenças, produzam superhomens ou supermulheres.

    Minha conclusão: Com o perdão do trocadilho, é necessário que aprendamos a "disseminar o Evangelho da Evidência!"

    Repito: Conhecimento é poder: Não poder para ficar encastelado na cabeça de Mestres e Doutores Filósofos, mas para ser democratizado, compartilhado ntre todos os cidadãos. Afinal, até mesmo um iletrado pode compreender em parte o que é "metodologia". É nossa missão educar.

    Senão, vamos abrir a Caixa de Pandora!

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  3. Prezado Luiz, admiro muito sua visão crítica e assertiva das evidências científicas, e reconheço seu importante papel no nosso país. Grato pelo que tem escrito ao longo dos anos. Nesse caso, entretanto, embora eu esteja do seu lado quanto aos absurdos da "cirurgia espiritual", sugiro que leia a obra de Francis Schaeffer, para se esclarecer melhor sobre os perigos da dicotomia sagrado/secular que é fruto de uma visão de mundo carente de princípios bíblicos. Entre em contato e terei o prazer de trocar uma ideia sobre o assunto: gptargueta@gmail.com

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