domingo, 3 de novembro de 2013

O Mito do Tratamento da Hipertensão Leve



Fato # 1: Hipertensão arterial sistêmica é o mais importante fator de risco para acidente vascular cerebral e o segundo fator de risco para infarto do miocárdio. Isso sem falar em cardiopatia hipertensiva, nefropatia hipertensiva, retinopatia hipertensiva. 

Fato # 2: O tratamento farmacológico da hipertensão previne de forma substancial estas consequências negativas. 

Questão # 1: O que é hipertensão arterial? Esta definição deve ser estatística (distribuição dos valores de pressão na população) ou deve ser baseada na implicação terapêutica da definição?

Fato # 3: Os médicos definiram que hipertensão arterial como valores ≥ 140 / 90 mmHg.

Fato # 4: Ensaios clínicos demonstram que indivíduos com pressão arterial ≥ 160/100 mmHg e múltiplos fatores de risco apresentam redução de eventos cardiovasculares quando tratados farmacologicamente. 

Mito # 1: Indivíduos com hipertensão leve (valores de pressão sistólica entre 140 e 160 mmHg ou diastólica entre 90 e 100 mmHg) devem ser tratados com medicação se  mantiverem estes níveis pressóricos a despeito de medidas não farmacológicas. 

Quando pesamos que o tratamento da hipertensão é embasado por evidências (fato), pensamos em qualquer hipertensão (mito). O que não nos damos conta é que estas evidências se limitam a indivíduos com hipertensão pelo menos moderada. Afinal, são estas que de fato provocam as devastadoras consequências citadas nas primeiras linhas desta postagem. 

Mas porque nós sempre achamos que as evidências dizem respeito a qualquer hipertensão? Não é por acaso, fomos manipulados a pensar deste jeito.

Julian Hart, pioneiro na proposta de rastreamento de hipertensão na população geral, conta que a ideia sempre foi definir 160 x 100 mmHg como os níveis diagnósticos que implicariam em tratamento. Porém, quando surgiram as primeiras evidências a respeito do benefício do tratamento neste grupo de indivíduos, a Organização Mundial de Saúde (OMS) promoveu três simpósios sobre hipertensão leve, patrocinados por três grandes laboratórios farmacêuticos. Naquele simpósio, os médicos convidados foram solicitados a endossar por escrito a proposta de que o tratamento da hipertensão deveria ser instituído a partir de 140 x 90 mmHg. A partir deste apoio dos “especialistas”, se iniciou a progressiva redução dos limites de definição do normal, culminando com o Sétimo JNC (Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure), que já define 120 x 80 mmHg como pré-hipertensão. Se 120 x 80 mmHg já não é bom, quem dirá 140 x 90 mmHg, isso deve ser devastador … Ou seja, a redução progressiva dos níveis considerados ideais garante como inquestionável o limite de 140 x 90 mmHg, prevenindo a percepção real de que  este é um limite de tratamento contrário às evidências científicas. Se pré-hipertensão (120 x 80 mmHg) é algo preocupável, quando mais hipertensão (140 x 90 mmHg). 

Mas será que há estudos que testaram terapia em paciente com hipertensão leve? Sim, porém estes são em número bem menor. Mesmo assim, precisamos saber o que eles sugerem. 

Fato # 5: Recente revisão sistemática publicada pela Cochrane Collaboration não demonstrou redução de eventos cardiovasculares com o tratamento farmacológico da hipertensão leve. 

Esta revisão identificou quatro ensaios clínicos randomizados que avaliaram indivíduos com hipertensão leve. Na verdade, os ensaios tinham também indivíduos com hipertensão moderada. Para resolver esta questão, os autores da revisão conseguiram os dados individuais dos pacientes com hipertensão leve em 3 ensaios e só incluíram estes pacientes na revisão. Um quarto ensaio foi incluído por inteiro, pois menos que 20% dos pacientes tinham hipertensão moderada.


Interpretação Científica

Em primeiro lugar, devemos nos lembrar do princípio da hipótese nula: partimos da premissa científica de ausência do fenômeno e só mudamos de ideia se este for suficientemente demonstrado. 

Assim pensa o cientista. Diferente pensa o crente, o religioso, que se embasa na fé. Só precisamos decidir que tipo de medicina queremos fazer.

Cientificamente devemos iniciar o pensamento sem preconceito, usando a  premissa de que não há demonstração de benefício do tratamento de hipertensõeszinhasEm seguida, devemos nos perguntar: há algum motivo para mudarmos de ideia (rejeitar a hipótese nula) ? 

Até agora não, pois ninguém fez um estudo especificamente dedicado a isso e o que há de evidências fala contra essa ideia. Talvez nunca façam esse estudo, pois os laboratórios não vão querer investir neste subgrupo para o qual a vendarem de droga já está garantida. Seria um gasto alto, pois menor risco = necessidade de maior tamanho amostral. É mais barato fazer uns simpósios, pagar umas passagens internacionais, e convencer os que se acham formadores de opinião (mas são meras marionetes) de que devemos tratar hipertensão leve. São estas mesmas marionetes que mais tarde se reunirão para escrever os guidelines de hipertensão. No fundo, temos que tirar o chapéu para a inteligência da indústria farmacêutica. Eles nos tiram de letra.

A oportunidade que temos de resolver esta questão será pelo financiamento de pesquisa por órgãos governamentais, tal como NIH ou CNPQ. É exatamente o que nosso amigo Flávio Fuchs está fazendo com seu ensaio clínico randomizado que testa diurético em pré-hipertensão, na ausência de conflito de interesse (Estudo PREVER). Como pergunta científica, isso tem grande valor.


A Decisão Clínica

Qual o significado do que aqui discuto em relação ao nosso comportamento no consultório ou ambulatório? Devemos negligenciar a “hipertensão leve”?

Claro que não, pois 140/90 mmHg já representa valores que não são tão habituais, por isso merecem atenção.

Mas será que devemos fazer do tratamento uma regra? Tratar com remédio todos que permanecerem hipertensos leves a despeito de medidas não farmacológicas? Hoje em dia, isso é uma regra. Inclusive uma regra contrária à medicina centrada no paciente, pois (em minha experiência) boa parte dos indivíduos "não se conformam” em ser rotulados de pessoas que precisam de medicação. Na prática, nós impomos o uso de medicação a estes pacientes, sem evidência científica que respalde esse conduta.

Devemos evitar o overdiagnosis da hipertensão leve, pela neurótica pesquisa de qualquer nível elevado de pressão arterial, com repetição de MAPAs, medidas em consultório ou valorização de picos hipertensos eventuais. Muitas vezes, na ânsia de não perder um diagnóstico, fazemos tantas medidas e exames, que acabamos concluindo de que o paciente é hipertenso quando ele tem apenas pressão próxima à imaginária linha de normalidade. 

Saber que não há comprovação de que 140/90 mmHg necessita de medicação não deve nos tornar negligentes quanto à hipertensão arterial. Porém pode e deve nos tornar menos ávidos por um diagnóstico definitivo de hipertensão leve, o que  muitas vezes implica em overtreatment de pessoas que não são exatamente hipertensas. A perseguição da alta sensibilidade em diagnosticar hipertensão reduz nossa especificidade, fazendo com que tratemos pacientes normais, piorando a qualidade de vidas destes que passam a ser hipotensos com o inapropriado tratamento. Isso não é incomum de percebermos no consultório. Vejo isso todo dia.

Esta discussão nos deixa mais a vontade para utilizarmos nosso julgamento clínico  e individualizar a decisão a respeito de tratamento na hipertensão leve. Evita a tirania do tratamento de todos. Ficamos mais livres para exercer a medicina centrada no paciente, considerando os valores e preferências destes quando estamos falando de hipertensão leve. 

Por fim, assunto aqui abordado é exemplo de verdades absolutas na mente médica, porém não embasadas em evidências. É exemplo de como a indústria cria mitos com tamanha competência. É exemplo de como podemos rever nossos paradigmas simplesmente revisando a literatura. É exemplo de que muitas vezes o paciente pode estar correto quando pergunta: Doutor, eu preciso mesmo desse medicamento?

OBS: Esta postagem não tem intenção de relaxar medidas cardiovasculares preventivas. A verdadeira intenção é calibrar a mente médica, diferenciando mito e realidade.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Medicina e Fé: há compatibilidade?

A convite do Padre Bento, debateremos a dicotomia entre Fé e Medicina com o Bispo Auxiliar de Salvador, D. Giovanni Crippa.


terça-feira, 8 de outubro de 2013

A Banalização das Doenças



* Artigo publicado hoje no Jornal A Tarde por Luis Correia


Em meados do século XX, a evolução tecnológica e científica nos trouxe tratamentos de grande relevância. Antes disso, a maioria das condutas eram empíricas e inefetivas. Fazíamos uma medicina que tentava apenas reduzir o sofrimento ou proporcionar a falsa idéia de que algo benéfico estava sendo utilizado. No início do século passado, não havia antibióticos, anti-hipertensivos, medicamentos para baixar colesterol ou marca-passos.

Esta fase foi seguida de uma grande evolução nos últimos 50 anos, tirando a medicina de um estágio medieval para uma prática efetiva e embasada em evidências. Neste contexto, o primeiro ensaio clínico publicado (British Medical Journal) data de 1948, quando se comprovou pela primeira vez que um antibiótico (estreptomicina) reduzia significativamente a mortalidade de pacientes com tuberculose, quando comparado ao tratamento limitado ao repouso. Começava a era da medicina baseada em evidências.

Por outro lado, no início do século XXI, passamos a experimentar outro fenômeno: a medicalização da população. O principal mecanismo criador da medicalização são as novas definições de doença, caracterizadas pela redução dos limites de referência do que antes considerávamos normal. É comum que a redução destes limites ocorra sem o devido embasamento científico, sendo mais motivados pelo afã de prevenir doenças, ou por conflitos de interesses. Isto faz com que, do dia para a noite, surjam populações inteiras de novos doentes, antes considerados normais.

Há alguns anos, diabetes era definido como glicemia de 140 mg/dl, depois esta definição foi reduzida para 125 mg/dl e agora já se considera que glicemia de 100 mg/dl não é normal, criando-se o conceito de pré-diabetes. Embora o conceito de pré-diabetes tenha certo valor, este tem sido inadequadamente utilizado para justificar uso de medicações, sem base científica suficiente. Temos também o advento da pré-hipertensão, rótulo que já cabe a pessoas com pressão arterial de 120 x 80 mmHg. Está cada vez mais difícil ser normal.

A primeira vista, isto pode ser interpretado como uma conduta cuidadosa, típica do paradigma preventivo de que é melhor se preocupar antes que o problema se torne uma questão mais grave. No entanto, esta conduta representa mais uma forma de overdiagnosis. Em paralelo ao afrouxamento da definição das doenças, a indústria farmacêutica realiza estudos de má qualidade, que tentam demonstrar benefício do uso de medicamentos nestas condições. Estes que mostram resultados insuficientes, que são “vendidos” de forma sedutora, levando à adoção de terapias desnecessárias. Assim surge o overtreatment.

Recentemente, o Jornal Nacional noticiou que os médicos agora consideram que o valor ideal de colesterol LDL (colesterol ruim) é 70 mg/dl. Porém, a média de LDL-colesterol na população é 120 mg/dl, sendo muito difícil que uma pessoa saudável tenha colesterol LDL de 70 mg/dl.  Desta forma, um grande número de pessoas, antes definidas como portadores de colesterol adequado, agora estão insatisfeitas com seu colesterol. Como dieta reduz apenas 5-10% e exercício não tem impacto algum, restará apenas medicação para que as pessoas tenham um ótimo colesterol. De posse dessas novas definições, se inicia o marketing simulteamente voltado para médicos e pacientes. Um marketing efetivo, pois quem não quer ter colesterol ótimo?

Tudo isso ocorre em detrimento de uma escolha conscienciosa e científica, tal como proposto pela medicina baseada em evidências. Está mais para medicina baseada em fantasia, uma lucrativa fantasia.

Por outro lado, precisamos lembrar que verdadeiros fatores de risco, como colesterol elevado, diabetes e hipertensão, não devem ser negligenciados, necessitando de tratamento na maioria das vezes com medicação. Nestes casos, existe comprovação científica de benefício.

Diagnóstico e tratamento são as ações primordiais da prática médica e devem ser feitos para quem precisa, na hora que se precisa e com criterioso embasamento científico. 

domingo, 22 de setembro de 2013

Less is More versus More is More: Estudo PRAMI



Nesta semana, o estudo PRAMI foi publicado no New England Journal of Medicine, simultâneo à apresentação de seus resultados no Congresso Europeu de Cardiologia. O resultado deste estudo muito me chamou atenção, pois vai de encontro a um quase onipresente princípio, o less is more.

O paradigma less is more prevalece na maioria das condutas médicas em que se comparou tratamento intenso versus tratamento moderado. São consistentes e repetidas as evidências de que fazer menos exames (indicar para as pessoas certas) ou evitar tratamento exagerado (glicemia, pressão arterial, transfusão) traz maior probabilidade de benefício líquido aos indivíduos. Daí a surge a aplicação da expressão menos é mais em medicina.

Em postagem antiga, demos várias exemplos de comprovação deste princípio em diferentes situações médicas.

Esta expressão foi difundida em meados no século XX pelo alemão LudwigMies van der Rohe, um dos pais da arquitetura moderna, que primava pelo estilo claro e simples, expressando o espírito da era pós-guerra, em contraposição ao estilo gótico ou barroco. Percebemos este estilo nas obras de Frank Lloyd Wright (Guggenheim) ou Oscar Niemeyer. Esta tendência surgiu na renascença, quando Leonardo da Vinci afirmou “simplicidade é a sofisticação mais requintada”. Um exemplo moderno da aplicação deste princípio estético foi o fascínio de Steve Jobs pelo less is more, criando produtos cuja estética reside principalmente em sua linearidade e simplicidade tecnológica. Há algo mais simples do que um telefone sem teclas?

Porém, é na medicina que este paradigma é verdadeiramente comprovado por evidências científicas. A editora da revista JAMA Internal Medicine, Rita Redberg, criou a série de artigos Less is More, já com 83 publicações, que envolvem as mais diferentes situações clínicas em que este paradigma se faz presente. 

Mas por que o estudo PRAMI contradiz o paradigma less is more?

O ensaio clínico PRAMI estudou pacientes submetidos a intervenção coronária primária no infarto com supradesnível do ST e que tinham outras placas provocando estenose > 50%, além da lesão culpada. Estes pacientes foram randomizados para realizar intervenção apenas da artéria culpada pelo infarto (conduta corrente, less is more) versus intervenção não só da lesão culpada, mas também das demais placas presentes (more is more). Pois bem, o PRAMI demonstrou que o more is more foi superior ao less is more na prevenção do desfecho combinado de óbito, infarto e angina refratária em seguimento de 2 anos. 

Este é o tipo de evidência capaz de mudar nosso paradigma de tratamento do infarto com supradesnível do ST. Em medicina baseada em evidências, devemos aceitar evidências de qualidade, independente de nossa crenças (less is more). Mas antes precisamos avaliar a qualidade das evidências. 

Análise Crítica da Evidência do PRAMI

Em primeiro lugar, devemos perceber que este é um ensaio clínico relativamente pequeno, apenas 465 pacientes randomizados, um número bem menor do que o normalmente visto em ensaios clínicos de fase III. Por si só, isto não invalida do trabalho, porém o deixa mais vulnerável aos efeitos de erros aleatórios ou sistemáticos.

Seguindo o check-list de nossa última postagem, o estudo passa na maioria das checagens de erros sistemáticos (vieses), porém um deles necessita melhor avaliação: vies de aferição do desfecho. O desfecho primário deste estudo é o combinado de morte cardiovascular, infarto e angina refratária. Este último é sozinho responsável por 57% dos desfechos do estudo e por ser mais subjetivo (soft), fica mais sujeito a enviesamento. 

Em um momento pontual do texto, o trabalho é descrito como single blind, indicando que apenas uma das partes, o médico ou o paciente, está cega em relação à alocação. Embora não esteja especificado qual das partes, deduzo que seja o paciente cego, sendo que o pesquisador tem conhecimento da alocação. Cegar o paciente previne que o efeito placebo corrompa este desfecho. Por outro lado, o pesquisador pode interpretar um desfecho como angina refratária ao saber que o paciente não foi plenamente revascularizado. 

O ideal em um estudo aberto seria considerar apenas desfechos hards. Porém sendo este um estudo pequeno, desfechos hards não teriam a frequência necessária para gerar um poder estatístico satisfatório. Portanto a solução deveria ser cegar o estudo e isto não foi feito plenamente.

Nota-se que os autores tiverem o “cuidado” de considerar apenas anginas que fossem refratárias. A primeira vista isso parece tornar o desfecho mais duro, porém percebam a realidade: ter angina ou não ter é algo mais objetivo do que definir se a angina é refratária ou não. Uma vez tendo angina, isto pode gerar um ajuste de droga, porém o pesquisador que sabe que ficou com lesão não abordada tende a julgar que o ajuste farmacológico não foi suficiente para o controle de seu sintoma. Isto mostra que no caso de um estudo aberto, qualificar um sintoma pode ser mais subjetivo do que simplesmente avaliar se o sintoma ocorreu ou não. Desta forma, em um estudo aberto a definição de refratária não torna o desfecho angina menos vulnerável ao viés de aferição, pode tornar até mais vulnerável. 

Da mesma forma aparentemente “cuidadosa”, os autores consideraram apenas as anginas que tinham isquemia miocárdica demonstrada por exames funcionais. Este é outro detalhe que a primeira vista sugere um desfecho mais criterioso (hard), porém faz exatamente o contrario. Claro que um paciente que tem lesão residual tem maior probabilidade de ter isquemia quando comparado ao paciente que fez abordagem de todas as suas lesões. Este critério, na verdade, gera um preconceito de que os pacientes do grupo mais conservador terão mais angina refratária. Foi incorreto utilizar um critério de imagem para definir um desfecho clínico, principalmente porque, independente do desfecho, um grupo com certeza terá mais isquemia no exame de imagem. Esta foi uma forma pré-concebida de garantir que o desfecho angina fosse mais frequente no grupo que não realizou revascularização completa. 

Por fim, precisamos falar de morte cardiovascular. Tenho dito que morte é o desfecho mais hard que existe, ninguém vai errar sua aferição. Por outro lado, morte de causa específica (cardiovascular) é um desfecho sujeito a interpretações das mais diversas: imaginem um paciente interna por infarto, realiza coronariografia, desenvolve insuficiência renal por contraste e morre - esta morte é cardiovascular ou renal? Ou um paciente interna por pneumonia, durante o curso da infecção apresenta um infarto e morre - morte cardiovascular ou infecciosa? Independente das respostas corretas, observem que há justificativa para qualquer das definições do desfecho.

Desta forma, percebam que uma “cuidadosa” definição de desfechos, aliada ao caráter aberto da observação, pode definir a priori o resultado do estudo de acordo com o interesse do investigador. Este estudo é bom exemplo disso.

Passando para a segunda parte de nosso check-list, entramos na questão do erro aleatório, proveniente do acaso. Vejam os quatro pontos a checar e adivinhem onde está a falha. 

Este é um estudo truncado!! De novo? Por que isso, interromper um estudo tão pequeno justamente no momento em que o resultado está favorável à hipótese testada? Justamente porque ao continuar o estudo, corre-se o risco do resultado (que pode ser por acaso) desaparecer. Já exemplificamos neste Blog inúmeros casos de estudos truncados (Xigris é o mais famoso, inclusive com postagem específica sobre esse tema). Como mencionamos previamente, um interessante trabalho publicado no JAMA mostrou que quando o número de desfechos é menor que 200, o risco de um resultado superestimado fica bem mais alto. Este é o caso do PRAMI.

Observem então que o PRAMI combina algumas características perigosas. Fazendo uma teoria de conspiração, é como se os autores pensassem: vamos fazer um estudo bem pequeno, ajustar os desfechos de forma a favorecer nosso interesse e quando o estudo mostrar positividade, a gente interrompe na hora, para garantir o resultado.

Implicações Práticas

O resultado do PRAMI, caso verdadeiro, mudaria um importante paradigma no tratamento do infarto. Nesta circunstância clínica, trocaria o paradigma do less is more para o more is more

Pode até ser que o resultado do PRAMI seja verdadeiro, mas não é uma garantia. O princípio científico da hipótese nula afirma que na ausência de evidência forte o suficiente, devemos permanecer com a ideia da ausência do fenômeno. Nesta discussão, não estamos afirmando que o tratamento das múltiplas angioplastias não seja benéfico. Estamos apenas chamando a atenção de que não podemos afirmar que seja benéfico. Percebam o detalhe filosófico. 

Esta mudança de paradigma promoveria aumento significativo da (já enorme) quantidade de intervenções coronárias, gerando um curso logístico e econômico ainda mais elevado do que o já existente.

Sou totalmente a favor de mudanças de paradigma, em postagem recente fiz uma apologia à transgressão, quando citei Nilton Bonder. No entanto, mudanças de paradigmas devem ser mediadas por argumentos mais fortes do que aqueles que sustentam a ideia corrente. O estudo PRAMI não tem nível suficiente para promover esta mudança.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Check-list para Análise Crítica de Artigo sobre Conduta Terapêutica



Em duas de nossas principais postagens, há aproximadamente dois anos,  descrevemos textualmente como analisar a veracidade e relevância de evidências sobre condutas terapêuticas. Nesta postagem, organizamos os detalhes metodológicos sob a forma de check-list, sistematizando a análise crítica deste tipo de evidência. Estes check-list servirá de guia para nossas análises e postagens futuras.


Análise de Veracidade

I. Erros Sistemáticos (vieses)

Quanto à Intervenção

1. Efeito de confusão: há diferenças entre os grupos que possam simular ou anular o benefício da intervenção? Ensaio clínico randomizado?
2. Aplicação da intervenção: o tratamento foi corretamente aplicado aos indivíduos do grupo intervenção?
3. Aplicação do controle: o grupo controle recebeu tratamento que possa atenuar o contraste com o grupo intervenção?
4. Intenção de tratar: os pacientes forma analisados de acordo com sua randomização inicial?
5. Viés de desempenho: caso o estudo seja aberto, pode ter havido melhor qualidade de assistência aos pacientes do grupo intervenção que gere um falso benefício do tratamento? Ou melhor de qualidade compensatória aos pacientes do grupo controle que atenue o efeito da intervenção?

Quanto ao Desfecho (viés de aferição do desfecho)

6. Subjetividade: o desfecho é subjetivo o suficiente para provocar erros de aferição?
7. Efeito placebo: em um estudo aberto, o desfecho em questão é vulnerável ao efeito placebo?
8. Desfecho criado pelo médico: em um estudo aberto, o desfecho se constitui em uma conduta médica, que possa ser influenciada pela caráter aberto do estudo (por exemplo, indicação de cirurgia por suposta falência do tratamento clínico).
9. Seguimento: houve perda significativa de seguimento dos pacientes (> 10%).

II. Erros Aleatórios (acaso)

Em estudo positivo (P < 0.05), condições de baixa confiabilidade do valor de P:

1. Conclusão baseada em desfecho secundário? (problema das múltiplas comparações)
2. Conclusão positiva baseada em análise de subgrupo de estudo negativo?
3. Estudo truncado?
4. Estudo com baixo poder estatístico?

Em estudo negativo (P > 0.05), avaliar:

5. O estudo tem poder estatístico satisfatório para testar benefício clinicamente relevante?



Análise de Relevância

I. Análise Qualitativa

1. O desfecho é substituto ou clínico? O primeiro apenas gera hipótese; o segundo modifica conduta.
2. Em sendo desfecho clínico, qual a importância do desfecho na vida do indivíduos (hard vs. soft).
3. Caso o desfecho clínico seja composto, o resultado resulta do efeito em cada componente do desfecho ou apenas nos menos importantes?

II. Análise Quantitativa

1. Cuidado com redução relativa de risco, pode causar ilusão de grande benefício.
2. Prefira redução absoluta do risco (risco grupo 1 – risco grupo 2).
3. Calcule o NNT para avaliar  a magnitude do benefício da terapia.
-       NNT = 100/redução absoluta de risco
-       NNT < 50 é considerado satisfatório.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Limites da Relação Médicos / Indústria Farmacêutica


Artigo escrito por Guilherme Brauner Barcelos, autor dos blogs Evidence Biased Medicine e Medicina Hospitalar.

Recentemente estive em evento onde a farmacêutica Sanofi foi patrocinadora e esteve fisicamente presente através de estande / propagandistas. Ao perceber que buscavam gestores e médicos para divulgar uma iniciativa, resolvi me aproximar e conversei com um dos promotores.

Trata-se do Programa "TEV Safety Zone", uma iniciativa global de educação continuada e outras ações para prevenir o tromboembolismo venoso no ambiente hospitalar. O objetivo é auxiliar os hospitais, por meio de palestras para profissionais da saúde, auxílio para implantação de comissões hospitalares de prevenção de TEV e protocolos, e apoio para o treinamento da enfermagem. O programa contribui também para que os hospitais que estejam em processo de acreditação recebam sua certificação, segundo fonte oficial

Quando questionei se o projeto tinha algum site de apresentação em língua portuguesa, o funcionário da indústria orientou-me a procurar informações via portal do HC/FMUSP, valorizando ainda a existência de um banco de dados eletrônico conjunto, com informações sobre o tema envolvendo diversas instituições hospitalares. Acabei encontrando o material abaixo dentro do portal da Disciplina de Clínica Médica e Propedêutica da USP, sem nenhuma referência visual ou textual à parceria com o laboratório:

"Banco de dados desenvolvido para que hospitais e clínicas cadastrados tenham acesso a uma ferramenta para registro de profilaxia de tromboembolismo venoso (TEV) em pacientes clínicos e cirúrgicos internados. Uma senha e usuário serão criados para o diretor do hospital ou clínica e para mais duas pessoas por ele designadas – tipicamente o profissional médico envolvido no programa e o responsável por alimentar o banco de dados. Os dados são registrados de maneira padronizada e é obrigatória a obtenção de consentimento pós-informação, ou de autorização do CEP local que libere a necessidade do consentimento, para que os dados aqui compilados possam ser utilizados em publicações científicas ou apresentações em congressos" - saiba mais aqui.

Sequer tenho convicção de que bati corretamente as informações ou de que não existem outros espaços virtuais do próprio HC/FMUSP onde apresentem a parceria abertamente, mas, de qualquer forma, alguns pontos merecem ser discutidos em uma perspectiva sistêmica:

1. Devem grupos que lidam diretamente com ensino médico em graduação e estudantes de Medicina participar deste tipo de aliança?

2. É relevante alguma referência ao vínculo com indústria farmacêutica por parte de autarquias estaduais ou outras organizações tuteladas pelo Estado brasileiro em projetos desta natureza? Por quê?

3. É indiscutível a complexidade dos processos necessários para adequada e bem sucedida implantação de protocolos nas organizações de saúde. Mas realmente é preciso parceria com a indústria na elaboração de recomendações e treinamentos locais? Quais são os reais desafios para homogeneização de práticas e condutas a partir de protocolos institucionais e para a capacitação de corpo funcional dos hospitais? Se entendo mais fácil o papel da indústria no grandes congressos médicos, alguns quase espetáculos circenses, nessas situações faz a diferença? E se faz, como? Vantagens e desvantagens?

No hospital em que trabalho em Porto Alegre dispomos de inúmeras comissões ativas e produtivas no campo da qualidade e segurança, não sendo necessário em nenhuma delas este tipo de suporte. Uma parceria com a indústria para implantação de comissões hospitalares de prevenção de TEV, onde vislumbram "um grupo multidisciplinar envolvido, constituído de profissionais dos principais serviços, como clínica médica, terapia intensiva, cardiologia, pneumologia, cirurgia geral, enfermagem e farmácia", não se presta muito mais a estimular o contato de lideranças e formadores de opinião com a empresa?

Considerando que a empresa produz especificamente o CLEXANE®, o processo de decisão da instituição entre marcas e tipos de anticoagulantes semelhantes poderia ser influenciado de alguma forma?

Já o "trabalho de apoio para o treinamento da enfermagem" fez-me lembrar de iniciativa semelhante que vivenciei em instituição onde no passado trabalhei. Uma indústria de tecnologias promoveu capacitação de enfermeiros e técnicos e, amparados pela premissa [verdadeira] de que "em sepse, tempo é vida", estimulava os profissionais a trazerem dispositivos já prontos para o uso (com a embalagem aberta).

E por fim, chamo atenção de que anunciam construir todas as recomendações técnicas a partir da Diretriz Brasileira de Profilaxia de TEV em Pacientes Clínicos Internados (AMB/CFM). Neste documento, onde declaram os conflitos de interesse envolvidos, informam que o grupo elaborador contou com o apoio logístico da Sanofi-Aventis do Brasil, havendo consultores da empresa entre os autores, bem como membros do Advisory Board da Sanofi-Aventis do Brasil.

Em momento tão complicado para os médicos brasileiros, em que estamos sendo jogados contra a população pelo Governo, na tentativa de melhorar nossa imagem, não seria oportuno abandonarmos a soberba de acreditar que políticos se perdem quando envolvidos em relacionamentos complicados, mas médicos jamais? Mesmo reconhecendo que a maioria dos médicos e sociedades médicas age corretamente perante conflitos de interesse, mas na falta de barreiras efetivas e transparentes para o contrário, não seria um bom momento para mostrar que também queremos parecer publicamente que agimos bem? E então evoluir em políticas de relacionamento com elementos além da simples declarações de conflitos de interesse?

Que esta e outras questões sirvam para debate construtivo...

sábado, 24 de agosto de 2013

O Estranho Mundo do Overdiagnosis



Neste mês, o ex-presidente americano George W. Bush fez um teste de esforço, recebeu o diagnóstico de doença coronariana, e foi submetido a implante de stent em uma das artérias de seu coração. Na alta hospitalar, saiu acreditando que se beneficiou, porém mal sabe ele que sofreu do que a literatura médica internacional denomina overdiagnosis.

Overdiagnosis é um diagnóstico verdadeiro, porém desnecessário, com maior potencial de causar danos do que benefícios. Este fenômeno decorre da cultura do check-up, propagada pelo lobby em prol do excesso de exames em pessoas saudáveis. Em contraposição, o pensamento médico-científico propõe que a realização de exames se justifique pela existência de um benefício clínico advindo do diagnóstico. E não pela falsa perspectiva de proteção gerada pelo exame. Em pessoas saudáveis, assintomáticas, há exames que devem e outros que não devem ser realizados.

O senso comum sugere que o “desentupimento” da artéria de Bush foi benéfico. No entanto, isto vai de encontro à totalidade das evidências científicas de qualidade (COURAGE, BARI 2D, FAME-II): no paciente estável, “desentupimentos” não previnem morte cardiovascular, nem infarto. Isto ocorre porque a intervenção é feita na placa de gordura que mais impressiona visualmente, sendo que o infarto por decorrer de qualquer das inúmeras placas invisíveis que residem em todo leito coronário. O que previne infarto é o controle dos fatores de risco. Principalmente controle do colesterol elevado, da hipertensão arterial e tabagismo. Este deve ser o verdadeiro enfoque preventivo.

O benefício do procedimento que Bush recebeu é útil para controlas dos sintomas de angina. Porém Bush não pode desfrutar deste benefício, pois não sente nada, tendo recentemente pedalado 30 milhas em um evento que homenageou veteranos da guerra do Iraque. Desfrutou, isto sim, do estresse psicológico do internamento, do desconforto de uma intervenção invasiva, da necessidade de uso prolongado de drogas antiplaquetárias, além do alto custo de seu procedimento.

Outra exemplo de overdiagnosis é o rastreamento indiscriminado de alguns cânceres em pessoas assintomáticas. Por exemplo, a realização anual do exame de PSA para pesquisa de câncer de próstata em homens assintomáticos. Embora câncer de próstata em alguns casos possa ser fatal, está provado cientificamente que fazer PSA de rotina não reduz probabilidade de morte por esta doença. Isto porque na prática, a detecção de cânceres precoces e localizados não necessariamente previne cânceres avançados, como sugere o senso comum. Em contrapartida, a cada 1000 homens que realizam PSA, 200 sofrem biópsias desnecessárias, 29 terminam impotentes e 18 com incontinência urinária devido a previsíveis efeitos advindos do tratamento resultante do overdiagnosis. Por este motivo, no ano passado US Prevention Task Force (órgão americano que recomenda exames preventivos) contraindicou o uso de PSA em homens assintomáticos. Paradoxalmente, PSA continua sendo um dos mais populares exames em nossa prática médica. Isto não quer dizer que a pesquisa do câncer de próstata e seu tratamento cirúrgico não esteja indicada em certos casos, principalmente em pacientes com sintomas. O overdiagnosis se refere ao uso do exame em qualquer pessoa, independente de seus fatores de risco ou quadro clínico.

Esta discussão não propõe que passemos a negligenciar a medicina preventiva. Propõe que os exames certos sejam realizados nas pessoas certas. Ao solicitar um exame, tenhamos em mente que em última instância o objetivo é beneficiar o sujeito clinicamente. Há casos em que o rastreamento para câncer e a pesquisa da doença coronária devem ser realizados. Segundo, devemos lembrar que prevenir não é necessariamente fazer exames, há situações em que a prevenção vem de outras condutas. 

Quando presidente, George W. Bush diagnosticou que o Iraque representava uma ameaça ao mundo ocidental e promoveu uma guerra de benefícios questionáveis e eventos adversos evidentes. Dez anos se passaram e agora seus médicos fizeram o mesmo: diagnóstico desnecessário e tratamento fútil. Tudo não passa do estranho mundo do overdiagnosis.

* Artigo publicado ontem no Jornal A Tarde por Luis Correia.

domingo, 4 de agosto de 2013

O sucesso do Bahia é estatisticamente significante?



Sou Bahia e vibro com a terceira posição do tricolor no Brasileirão. Poderia deixar meu cérebro direito (emoção, paixão) prevalecer, argumentar que nosso time atualmente é um dos melhores e que corremos o risco de sermos campeões mais uma vez. Esse argumento não estaria errado, pois futebol é paixão. Por outro lado, este Blog é científico e serve para exercitarmos o cérebro esquerdo, racional, matemático, realista. Portanto, farei uma abordagem de torcedor estatístico.

Neste contexto, surge a seguinte questão. O Bahia está bem mesmo? Observem que o que temos neste momento não é o campeonato brasileiro inteiro, é apenas uma amostra (uma parte) do campeonato, representado pelas primeiras 10 de um total de 38 rodadas. Isso se assemelha às evidências científicas, que em geral são observação obtidas em amostras populacionais e depois extrapoladas para a população. Quando utilizamos amostras para obter informações a cerca da população, devemos fazer uso da estatística, que serve para quantificar a incerteza a respeito de nossas conclusões amostrais. 

Formulando esse problema sob a forma científica, precisamos testar a hipótese de que o Bahia de 2013 é melhor do que o Bahia de 2012. Ao comparar a posição do Bahia após a décima rodada do campeonato, percebemos que hoje estamos na 3o posição, muito melhor do que no ano passado, que nesta altura estávamos na (pasmem) 19o posição. Que diferença gritante!


No entanto, o que percebemos nessa amostra pode ou não ser representativa da realidade do campeonato por inteiro. Quando estamos com uma amostra, existe a possibilidade da diferença entre os campeonatos ter sido obra do acaso e não uma concreta melhora de qualidade do time. Foi apenas sorte do Bahia?


Teste de Hipótese

Vou aproveitar este exemplo futebolístico para explicar como funciona teste de hipótese em estatística. Primeiro, começamos a premissa da hipótese nula, que prima pela inexistência do fenômeno (Bahia está melhor). Daí nos perguntamos: se a hipótese nula for verdadeira (Bahia não está melhor), qual a probabilidade desta diferença entre os dois campeonatos se fazer presente?

Se na presença da hipótese nula, for alta a probabilidade da diferença observada, pode ser que tudo não passe do acaso. Daí não vamos acreditar no fenômeno, vamos ficar com a hipótese nula. Estatisticamente falando, não podemos rejeitar a hipótese nula.

O que a estatística faz é calcular a probabilidade do resultado observado aparecer na vigência da hipótese nula. Essa probabilidade é o valor de P.

Sendo assim, calculei o valor de P da diferença da proporção de vitórias do Bahia nas primeiras 10 rodadas de 2013 versus 2012. Sendo uma diferença de proporção, usei o teste de Fisher, que se adéqua melhor a pequenas amostras (N = 10 jogos). Encontramos o seguinte: o Bahia ganhou 40% dos primeiros 10 jogos em 2013, comparado a 10% de vitórias em 2012, sendo o valor de P = 0.30. Isso significa que há 30% de probabilidade dessa diferença aparecer, mesmo na vigência da hipótese nula. Se o time for tão ruim quanto 2012, há ainda 30% de probabilidade da campanha destas primeiras rodadas se fazer presente. Ou seja, essa campanha não é suficientemente diferente de 2012 para rejeitar mos a hipótese nula.

Como todos sabem, para rejeitar a hipótese nula, é necessário valor de P < 0.05. O que significa isso? Se aparecer um resultado que seja muito improvável na vigência da hipótese nula, a gente começa a duvidar da hipótese nula, que era nossa premissa inicial. Se essa probabilidade ficar abaixo do limite de 5%, a gente para de insistir na hipótese nula, rejeita esta hipótese e fica com a hipótese alternativa de que o fenômeno é verdadeiro. Neste caso, seria a hipótese alternativa de que o Bahia está de fato melhor.

Assim funciona teste de hipótese. Partindo do ceticismo científico, nossa tendência é proteger a hipótese nula. Porém só até um certo ponto. Na presença de um resultado muito improvável (uma diferença muito grande, com P < 0.05), faz mais sentido achar que a hipótese nula é falsa, achar que de fato o Bahia está melhor.

O porquê de 5% ser o limite para rejeição da hipótese nula será tema de futura postagem. Mas adianto que este valor específico é uma convenção do que se considera matematicamente muito improvável.

Podemos também fazer uma comparação dos pontos obtidos pelo Bahia a cada rodada. Em 2012, o Bahia obtinha uma média de 0.90 pontos por jogo, com desvio-padrão de 0.88. Em 2013, a média de pontos por jogo subiu para 1.6, com desvio-padrão de 1.27. A diferença de 0.90 ± 0.88 versus 1.6 ± 1.27 resulta em valor de P = 0.28. Ou seja, 28% de probabilidade dessa diferença aparecer mesmo a hipótese nula sendo verdadeira.

O Fenômeno de Regressão à Média

Sendo assim, o que vimos até então pode ser mera obra do acaso e não garante que o Bahia esteja melhor. Se isso for por acaso, a tendência será o desempenho do Bahia regredir à média. Ou seja, com o passar das rodadas o Bahia vai caindo de posição, terminando em uma posição abaixo do que a atual. Este é o fenômeno estatístico de regressão à média, já comentado em detalhes nesse Blog (vale a pena rever esta e esta postagens). Em resumo, este fenômeno indica que na presença de resultados extremos (Bahia muito bom ou muito ruim), na medida em que se aumenta o tamanho amostral, a observação vai tomando uma forma mais próxima do usual. Vai regredindo à média.

Observem o progredir do campeonato. Pode ser um grande exemplo de regressão à média.


Poder Estatístico

Quando diante de um estudo negativo (ausência de diferença estatística entre os grupos), devemos considerar duas possíveis explicações: (1) de fato não há diferença ou (2) o estudo sofreu o erro tipo II, aquele no qual uma diferença verdadeira não foi encontrada por falta de poder estatístico (estudo pequeno).

De fato, este é um estudo pequeno e para a diferença observada no percentual de vitórias, o poder estatístico é de apenas 15%. Como comentado na última postagem, um estudo deve ter pelo menos 80% de poder estatístico.

Desta forma, é possível que o Bahia esteja melhor e o estudo não foi capaz de encontrar significância pois ainda tem muito pouco jogo. Mas percebam que esta análise não nos permite concluir que quando aumentar os jogos, vai se comprovar que o Bahia está melhor. O baixo poder estatístico nos permite apenas concluir que o resultado negativo não é definitivo e que estudos maiores podem (ou não) mostrar um resultado positivo. Mas por enquanto devemos ficar com a hipótese nula, a qual não foi rejeitada neste estudo.

O que ocorre muitas vezes em medicina é a utilização inadequada do argumento de que um estudo não tem poder estatístico para rejeitar a hipótese nula. Por exemplo, alguém é a favor de um tratamento. Este tratamento foi semelhante ao placebo em um estudo pequeno, que não tinha poder estatístico ideal. Daí a pessoa diz que foi erro tipo II e com isso considera que o tratamento deva ser utilizado. Isso é errado! A interpretação certa é que este estudo não demonstrou benefício, portanto o tratamento não deve ser utilizado. Em segundo lugar, por este estudo ser pequeno, a questão ainda não está fechada. Estudos maiores podem (ou não) mostram resultados favoráveis. Devemos esperar estes estudos.

Portanto, devemos analisar o progredir do campeonato para avaliar se a diferença regride à média ou se torna estatisticamente significante com o aumento do tamanho amostral.

Viés de Comparação

Falamos até então da possibilidade de que tudo seja decorrente do acaso, de erro aleatório. Porém, estudos podem também sofrer de outro tipo de erro, o sistemático, denominado vieses. Estes vieses representam erros no métodos dos trabalho. Na questão desta postagem, podemos estar sofrendo do viés do grupo de comparação. Ou seja, o melhor resultado do Bahia em 2013 pode decorrer dos times que lhe servem de comparação (adversários em campo) estarem piores do que em 2012, e não do Bahia estar melhor. Que diga o Fluminense, campeão no ano passado que acaba de demitir o técnico devido a  5 derrotas consecutivas; ou o São Paulo, atualmente na zona de rebaixamento. 


Plausibilidade versus Realidade

Como já vimos, plausibilidade é um dos critérios de causalidade propostos por Bradford Hill. Devo reconhecer que existe certa plausibilidade do Bahia estar melhor. Uma delas é o aspecto motivacional. Observem que esta melhora coincide com o afastamento de um presidente acusado de "irregularidades". Imagine a situação (hipotética) de uma empresa cujo suposto líder é corrupto. Isso torna o grupo de trabalho desmotivado, sendo motivação algo essencial para ganhar competições. Agora imaginem que esse líder é afastado. Isso pode ter um impacto enorme sobre a motivação dos funcionários. Uma esperança de melhora no ambiente de trabalho.

Sendo assim, me parece plausível que o Bahia esteja de fato melhor. Porém devemos lembrar que, cientificamente, plausibilidade não garante realidade. Não basta que um tratamento tenha plausibilidade de benefício, para que seja adotado. Sua eficácia deve ser demonstrada. Portanto, não é porque faz sentido que já podemos ir achando que o Bahia está ótimo. Vamos esperar...

Ainda dentro da plausibilidade, podemos ouvir muitos comentários de especialistas em futebol (os comentaristas), mostrando os porquês do Bahia estar tão bom. Caímos na mesma situação, onde plausibilidade não representa realidade. Até porque estas explicações vem depois dos resultados. Observem (que diga Milton Neves) como os comentaristas erram as previsões dos resultados dos jogos. Aliás se fossem bons preditores, estariam todos ricos com a loteria esportiva. Isso é muito bem retratado no filme Moneyball, em que o personagem de Brad Pitt, manager de um time de baseball, dispensa os velhos especialistas na contratação de jogadores e traz um jovem estatístico, capaz de indicar contratações muito mais efetivas do que as escolhidas pelos entendidos no assunto. A mente do especialista não funciona estatisticamente, funciona de acordo com suas crenças e emoções, ficando sujeitas a vieses de pensamento e fatores de confusão. Isso ocorre muito com especialistas médicos, tema de postagem futura.

Considerações Finais

A vida baseada em evidências (assim como a medicina baseada em evidências) evita de toda forma o dogmatismo. Dogma é quando a gente acredita em uma coisa porque quer acreditar e pronto. Se embasar em evidência é estar de mente aberta e olhar para os dados de maneira fria, estatística, a procura da melhor conclusão. Dizer que o Bahia tem chance de ser campeão é algo que se aproxima mais de fé ou fantasia. É o cérebro direito funcionando mais do que o esquerdo. No esporte, não tem nada de errado nisso, pois esporte é paixão, emoção, sangue, suor e lágrimas. Mas em medicina, tem que ser diferente. Não podemos ser dogmáticos e (por exemplo) propor congelar cérebros de pacientes pós-parada (hipotermia) antes de que surjam evidências melhores do que as primeiras 10 rodadas do brasileirão.

A foto abaixo retrata a última vez que meu cérebro direito me guiou no caso do Bahia. Estava eu ali, entusiasmado com meus sobrinhos, entrando na nova Arena. Para que? Para ver o Bahia perder de 7 x 3 do Vitória. Depois dessa, ficarei com a hipótese nula, até que se prove o contrário (P < 0.05).

Agora, fazendo uma previsão realista. Vai haver uma regressão à média, o Bahia vai cair da 3o posição. Talvez não termine na 15o como no ano passado, terminará algo como na 10o posição. Veremos ...

OBS: Percebam que não sou do tipo de torcedor do Bahia que fico pensando no Vitória. Desta forma, nem mencionei este time em minha postagem. Prefiro convidar o professor de estatística da pós-graduação de medicina da UFBA, meu amigo Paulo Rocha, a escrever sobre seu Vitória. Espero que ele utilize o cérebro esquerdo em sua análise.

* Agradeço ao acadêmico de medicina Marcos Correia, pela assessoria esportiva neste postagem.