quarta-feira, 5 de maio de 2010

O Benefício Cardiovascular do Álcool: Mito ou Realidade?

É comum médicos afirmarem na televisão ou imprensa escrita que o consumo moderado de vinho oferece benefício na prevenção de doenças cardiovasculares. Pouco comum é ouvir um comentário ponderado de que no fundo não sabemos a resposta para esta questão.

As evidências a respeito do teórico efeito benéfico do álcool são provenientes da análise de desfechos em estudos observacionais ou análise de efeitos fisiológicos. A mais citada referência é aquela que descreveu o paradoxo francês, termo que se refere à baixa prevalência de doença cardiovascular entre os franceses, apesar da alta ingestão de gordura saturada. De forma apenas hipotética, se atribui este paradoxo ao hábito quase diário dos franceses em consumir vinho de forma moderada. Este é um estudo do tipo ecológico, onde se compara a prevalência de doença entre populações, sem levar em conta os participantes de forma individual. Por este motivo, o nível de evidência de um estudo ecológico é bem menor do que um estudo de coorte prospectiva.

Há também estudos de coorte sugerindo associação entre uso moderado de álcool e menor risco cardiovascular. O grande problema é que estes estudos são vulneráveis ao efeito do usuário saudável, onde o uso de vinho seria apenas um marcador de bons hábitos de vida ou de melhor status social. Mesmo após ajuste por análise multivariada, sabe-se que pode haver efeito residual de variáveis de confusão, provocando associações não verdadeiras. O maior exemplo do efeito do usuário saudável é o da terapia de reposição hormonal. Esta terapia possui plausibilidade biológica de ser benéfica (tal como o álcool) e estudos observacionais sugerindo efeito protetor contra doença cardiovascular (tal como o álcool). Mesmo assim, quando os ensaios clínicos randomizados foram realizados, verificou-se que esta terapia não só carece de benefício, como também traz malefício cardiovascular.

Um estudo de coorte que ilumina nossas mentes a respeito deste assunto é a publicação do Prof. Flávio Fuchs no American Journal of Epidemiology 2004, com dados provenientes da coorte do ARIC (Atherosclerosis Risk in Communities Study). Flávio observou que em brancos americanos o consumo moderado de álcool é associado menor risco cardiovascular, porém em negros esta observação não está presente. Isto sugere que o álcool pode ser apenas um marcador da condição de saúde, hábitos de vida e melhor status social. A minoria negra americana tem pior status social e carece de bons hábitos de vida. Por isso o álcool não consegue ser marcador de boa condição de saúde em negros.

Este mesmo estudo demonstrou que não há associação entre o tipo de bebida e risco cardiovascular, sugerindo que a particularidade do vinho é o perfil das pessoas que fazem uso, não um efeito protetor específico.

No número corrente do Circulation, foi publicada uma revisão sobre o efeito do álcool em pacientes portadores de doença cardiovascular. Neste caso de prevenção secundária, há também evidências epidemiológicas de associação com melhor desfecho cardiovascular. No entanto, o artigo chama atenção de que esta é uma população mais vulnerável aos efeitos maléficos do álcool: piora controle pressórico, causa hipertrigliceridemia, predispõe a obesidade, fibrilação atrial, reduz limiar para fibrilação ventricular, pode ter efeito aditivo com aspirina para provocar sangramento digestivo, aumenta a atividade do citocromo P450. Por isso tudo, também há plausibilidade biológica para efeito cardiovascular maléfico do álcool.

O ideal seria a realização de um ensaio clínico randomizado. Só que seria muito difícil de realizar, pois pessoas que fazem uso corrente de álcool não vão aceitar se forem randomizadas para não tomar mais nenhum drink por vários anos. Da mesma forma, pessoas abstêmias, não vão querer ser randomizadas para tomar drinks com certa freqüência. A única possibilidade seria randomizar para diferentes doses de álcool e ver a relação dose-resposta. Mas convenhamos que seria difícil controlar isso na prática.

Sempre que se levanta esta discussão surge o legítimo argumento de que não podemos esperar ensaios clínicos para tomar conduta em todos os casos. Isso é verdade, o que precisamos fazer é avaliar quais os casos em que se justifica considerar uma verdade científica baseada em estudos observacionais e os casos em que não se justifica. Por exemplo, tabagismo. Aqui a pessoa já fuma e o ensaio clínico randomizaria pacientes para parar ou não parar de fumar. Porém a força de associação é muito grande entre tabagismo e doença cardiovascular/câncer nos estudos observacionais e há nítido gradiente dose-resposta, tornando bem provável que a associação seja verdadeira. Além disso, existe mais plausibilidade do efeito maléfico do tabagismo do que do efeito benéfico do álcool. E não há plausibilidade de efeito benéfico para tabagismo, enquanto há plausibilidade de efeito maléfico do álcool. Desta forma, julga-se que não é necessário um ensaio clínico para acreditar que tabagismo é um fator de risco. Percebam que a medicina baseada em evidências propõe uma análise discriminatória entre os casos em que se deve almejar um ensaio clínico e casos em que nos contentamos com o estudo observacional.

Desculpem-me os amantes do vinho. Reconheço que é mais divertido curtir um bom vinho pensando no benefício cardiovascular. Talvez depois de duas taças de vinho eu venha concordar com evidência a favor do álcool. Porém como dia de quarta-feira geralmente não bebo, hoje considero um mito o benefício cardiovascular do álcool.

10 comentários:

  1. Como nunca poderei participar de ensaios clínicos sobre a ingestao de vinho, vou continuar adepto aos ensinamentos de Baco!

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  2. nubiawv@terra.com.br6 de maio de 2010 às 00:57

    Oi Luis,
    já tinha entrado no seu blog antes quando você fez uma referência a mim e a Cris Afiune. Está excelente, também alguém com um ótima formação em bioestatística como você não faria diferente.
    Precisamos programar a continuação do seu curso em BSB.
    Grande abraço, Núbia

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  3. Vamos pensar de outra forma. Se o consumo moderado de vinho nao é maléfico do ponto de vista cardiovascular, já é uma boa indicacao para aproveitar o benefício de paladar e de saúde mental.

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  4. Falta analisar um possivel beneficio de fatores que caminham juntos: o prazer de beber o vinho, a amizade ao redor de uma mesas com amigos, a boa musica e menos solidão, talvez sejam tb fatores que influenciem nos desfechos e isso tb é dificil de ser medido. Sem falar na redução do estresse que é um terrivel fator de risco CV
    Enquanto a situação não se esclarece, sigo apreciando

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  5. Amigos,

    Concordo 100% com os evidentes benefícios não cardiovasculares. Para estes, evidências não são necessárias. E por falar nisso, precisamos marcar para tomar um vinho juntos.

    Luis.

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  6. Não esqueçamos que o consumo excessivo de água (frequentemente involuntário!) é uma conhecida causa de morte por afogamento!
    Trilhemos o caminho do meio.
    Já pregava Lao Tse.
    Saudações a todos.
    Tin-Tin!

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  7. Olá meu amigo Luis; acho que vou fugir um pouquinho da medicina baseada em evidências!!!!!Vou preferir ficar com o benefício gerado indiretamente, através dos amigos, da confraternização familiar, de uma boa conversa, da alegria e paz que os vinhos, consumidos moderadamente, podem nos trazer; um grande abraço e mais uma vez parabéns pelo sucesso de seu blog.

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  8. Inicio minha participação no molde AVA com este delicioso aperitivo Pos almoço.

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  9. Show de bola... excelente matéria! Gostei muito!

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