De acordo com o dicionário Wikipédia, um dos significados da palavra futilidade é inutilidade, aquilo que não dá resultado. É o que está demonstrado na figura acima: tentar acertar a bolinha de golfe é quase o mesmo que não tentar, pois a probabilidade de acerto é mínima. Então essa tentativa pode ser considerada fútil. Em medicina baseada em evidências, o termo futilidade se aplica quando uma intervenção não produz resultados, ou no máximo produz um resultado desprezível.
É o que foi demonstrado pelo ensaio clínico AMI-HIGH, o qual testou a hipótese de que o uso de niacina (ácido nicotínico, vitamina B3) traz benefício em indivíduos que já fazem uso de estatina, mas têm HDL-colesterol baixo. Esse estudo pretendia randomizar 3.400 pacientes, mas foi interrompido com 1.700, pois não havia nenhum indício de benefício em análise interina. Em outras palavras, foi interrompido porque a Niacina preencheu critério de futilidade: mesmo se o estudo continuasse, iria mostrar ausência de benefício ou na melhor das hipóteses um benefício desprezível.
Já critiquei nesse Blog estudos truncados (interrompidos precocemente) que mostram benefício de uma terapia. Porém no caso presente a crítica não se aplica, pois a interrupção foi por critério de futilidade. Sabemos que o pensamento científico deve partir da premissa de que a hipótese nula é verdadeira. Interromper um estudo e continuar com a hipótese nula está dentro da ordem cientifica. Principalmente se a análise mostra que se houver benefício, este será irrelevante.
Por outro lado, é criticável rejeitar a hipótese nula (premissa básica) com base em estudo truncado. É exatamente devido à violação desse princípio científico da hipótese nula que muitos mitos são criados em medicina e depois precisam ser derrubados.
As pessoas acreditam nas coisas antes da hora. Por exemplo, acreditamos antes da hora que Robinho seria um novo Pelé. Até Pelé falou isso. Rejeitamos a hipótese nula de que Robinho era normal. O tempo mostrou que Robinho é apenas um bom jogador. Foi um entusiasmo precoce. Em futebol, tudo bem. Mas em medicina não podemos fazer isso (a exceção do paradigma do para-queda).
Vamos voltar à Niacina.
Ao longo da última década a indústria farmacêutica fez uma propaganda entusiástica do uso de niacina para paciente com HDL-baixo. Com isso ressuscitou a utilização de uma droga que após o advento das estatinas havia perdido espaço. O faturamento anual com a venda de Niacina nos Estados Unidos chega a $1 bilhão. O problema é que todo esse faturamento não é baseado em evidências. Os estudos que mostraram algum benefício clínico com Niacina datam mais de 30 anos, época em que estatinas não existiam. Agora com o uso de estatina, precisamos demonstrar benefício clínico nesse cenário.
Todos nos lembramos das visitas dos representantes, que argumentavam plausibilidade biológica, citavam estudos de Niacina em pacientes sem estatina ou citavam estudos de desfechos substitutos. Mas essas propagandas não eram cientificamente convincentes.
HDL-colesterol baixo tem associação independente com eventos cardiovasculares em estudos de coorte prospectiva, inclusive com uma relação dose-resposta. Estes dados epidemiológicos aliados à plausibilidade permitem a conclusão de que HDL-colesterol baixo representa um fator de risco para doença aterosclerótica. Isso é conclusão científica. A partir daí, pode-se criar a hipótese de que se aumentarmos farmacologicamente o HDL-colesterol, reduziremos eventos cardiovasculares. Isso é uma hipótese plausível. Por outro lado, considerar isso uma verdade suficiente para adotar a conduta é pura extrapolação.
Ao tempo em que critico a propaganda não embasada, devo reconhecer o mérito da indústria em ter co-financiado este estudo. Este não foi um estudo conduzido pela indústria, foi conduzido e parcialmente financiado pelo National Institute of Health (NIH), órgão governamental, isento. Mesmo assim, a Abbot aceitou financiar metade das despesas do estudo, sem influência nos resultados. É um mérito e um modelo que deveria ser mais freqüente: estudos financiados pela indústria, porém conduzidos por orgãos independentes.
O AMI-HIGH não está publicado, foi apenas anunciado em forma de conferência no NIH. Estes eram pacientes de alto risco cardiovascular, em uso de estatina, com LDL baixo, porém HDL baixo e triglicérides elevados. Apesar de a Niacina ter aumentado o HDL-colesterol, não houve benefício clínico: a incidência anual do desfecho primário composto foi 5.6% no grupo controle versus 5.8% no grupo niacina. Esse desfecho primário foi o composto de infarto fatal e não fatal, AVC, angina instável ou revascularização.
Precisamos entender que os sistemas biológicos são complexos, o que faz com que eventos sejam decorrentes de uma multiplicidade de fatores, que possuem uma multiplicidade de interações. Impossível prever o resultado de uma intervenção. Embora HDL-colesterol seja uma molécula anti-aterogênica, aumentar sua concentração pode não ter efeito anti-aterogênico, pois qualitativamente essas novas moléculas podem ser diferentes. Lembram do estudo Illuminate, que testou torcetrapib, uma droga muito mais potente do que Niacina para aumentar HDL-colesterol? Aumentou mortalidade! Justificaram pelo aumento dos níveis pressóricos com a droga, mas será que foi por isso mesmo? Recentemente, o estudo ACCORD não mostrou benefício de fibratos em diabéticos sob uso de estatina, que tinham HDL-colesterol médio de 38 mg/dl.
Ou seja, Niacina, torcetrapib, fibratos, todas estas são estratégias que aumentam HDL-colesterol, porém sem resultar em benefício clínico. Será que estamos com a hipótese certa? Será que HDL-colesterol é mesmo fator de risco? Sabemos que a validação final de um fator de risco é quando o controle do fator reduz a incidência de doença. Tratar LDL-colesterol reduz desfecho, tratar hipertensão reduz desfecho, parar de fumar reduz desfecho. Mas ainda não conseguimos provar o mesmo com HDL-colesterol. Os estudos de 30 anos atrás com Niacina aumentavam HDL-colesterol, mas também reduziam LDL-colesterol. De onde veio o benefício?
Essa é mais uma história que nos lembra do paradigma da medicina baseada em evidências. Mais um exemplo de que plausibilidade biológica não é suficiente para garantir benefício clínico. Mais um exemplo de que estudos de desfechos substitutos não garantem benefício clínico. E assim vamos evoluindo cientificamente.
Muito bom o seu post.
ResponderExcluirÀs vezes algumas "soluções" surgem, ficamos empolgados, mas não conseguimos reproduzir na pratica. Às vezes praticamos algo, que parece bom, mas quando vamos publicar não tem uma validade externa boa.
Lidamos diariamente com o Paradigma.
Um abraço do Seguidor do Blog
Marcelo Lope
Gostei da sua análise sobre o assunto.
ResponderExcluirConcordo com a ídeia que a Niacina perdeu espaço com o início das estatinas. Isso é contemplado nas diretrizes, colocando-a como indicação IIa naqueles pacientes com intolerância às estatinas. Vamos aguardar novas evidências para verificar se a elevação do HDL-colesterol vai implicar em desfechos relevantes. É esperar pra ver.
Um abraço!
Rafael Modesto Fernandes
Muito lúcida sua interpretação. Não apenas pela análise do trabalho, mas avaliar o conceito de plausibilidade, e até questionar a mesma.
ResponderExcluirSendo um pouco ousado na minha interpretação, lanço uma questão. Será que a ausência de benefício decorre do fato que ao reduzirmos o LDL a níveis ótimos, estamos atingindo o máximo de efeito protetor?
Em tudo na vida, muitas vezes o inimigo do ótimo é o excelente. Será que existe diferença entre normal e "mais" normal?
Sinceramente, diante das evidências atuais e perante o conceito de ótimo x excelente, não creio que a elevação do HDL será suficientemente forte para produzir resultados significativos.
Um grande abraço de seu aluno.
Augusto Césare
Olá professor,
ResponderExcluirRealmente é muito bom se questionar o tempo todo. Achei muito interessante seu questionamento sobre se realmente é o HDL responsável pela melhora, pois eu nunca trabalho pontualmente, sempre vejo o organismo como um todo.
Eu sou nutricionista, e como tal, para mim o alimento é meu instrumento, em alguns casos uso manipulações de nutrientes, e sempre foi consenso o uso da niacina para estes pacientes. Como você mesmo disse, os sistemas são complexos, eu nunca uso uma vitamina B isolada, sempre com outras do complexo, porque uma depende da outra em alguns casos, além de modificação da fonte de lipídeos, etc etc.
Na prática clínica, se observa bons resultados com pacientes que aderem ao tratamento. Observo também que há sempre fadiga relatada de pacientes que usam sinvastatina, a única explicação que consegui achar foi o fato da inibição da CoQ10 pelo mecanismo de atuação do medicamento.
A prática tem que sempre ser baseada em evidências, mas como fazer quando a evidência na prática clínica é forte, como acontece muitas vezes no consultório de nutrição em várias situações?
obrigada
Lídia Loyola (lidialoyola@hotmail.com)
Vejam as conclusões do estudo AIM High no AHA 2011 que acaba de ser publicado. Realmente não se confirmou nenhum beneficio clinico (desfechos) com o uso combinado de estatina com niacina. O que ficou definido é que devemos baixar os niveis de LDL até as metas.
ResponderExcluirAbraço a todos.
E a defesa do corpo, macrófagos no quesito de produção de ateromas? Será que é só o LDL?; E a resistência das paredes arteriais? Se mais espessa menos se machucam?.
ResponderExcluirNinguém sabe nada mesmo, ou sabemos muito pouco , sem contar que no nosso modelo de pesquisas não são considerados os polimorfismo do DNA, ou seja não são feitas intervenções individualizadas. Talvez por este motivo os dados sejam tão inconsistentes. e assim segue a humanidade.
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