domingo, 3 de julho de 2011

Utilidade de Métodos Diagnósticos




Na série Análise Crítica de Métodos Diagnósticos, após discutir acurácia, chega o momento de abordar o conceito de utilidade. Como mencionado anteriormente, não basta que um método seja acurado para que este deva ser indicado para um paciente. O método precisa ser útil. E acurácia não garante utilidade.

Para avaliar utilidade de um método, devemos fazer duas análises seqüenciais: primeiro, o raciocínio diagnóstico probabilístico; segundo, a capacidade do método de beneficiar o paciente. Nesta postagem abordaremos a primeira questão.

Boa parte dos diagnósticos em medicina é probabilística, ou seja, no final da investigação a probabilidade é suficientemente alta para se considerar que o paciente é portador de certa doença. Esta probabilidade é o resultado da interação do quadro clínico (probabilidade pré-teste) e do resultado do teste (exame complementar). O impacto de um teste positivo na probabilidade de um indivíduo ser doente (assim como o impacto de um teste negativo na probabilidade de ser saudável) depende da sua acurácia, que é medida pelas razões de probabilidade (RP) – tema de postagem anterior. Quanto maior a RP positiva, mais o resultado positivo do teste aumenta a probabilidade do indivíduo ser doente. Quanto menor a RP negativa, mais o teste negativo reduz a probabilidade do indivíduo ser doente (ou aumenta a probabilidade de ser saudável).

Desta forma, há situações em que o teste não é capaz de modificar substancialmente a probabilidade pré-teste do paciente. Ou seja, o teste não muda muito nosso pensamento a respeito do paciente ter ou não ter a doença. Isto depende do tipo de paciente e da RP do teste. Um exemplo clássico é a realização de teste ergométrico em pacientes assintomáticos (check-up). De acordo com modelos probabilísticos validados, a maioria das pessoas assintomáticas tem baixa probabilidade de doença coronariana obstrutiva. No entanto, na rotina do consultório cardiológico, é quase garantia de que o paciente em avaliação anual saia com pedido de teste ergométrico. O teste ergométrico tem razão de probabilidade positiva de 3.0. Então se um paciente tiver 5% de probabilidade pré-teste, um teste ergométrico positivo vai resultar em probabilidade pós-teste de 14%. Ou seja, apesar do teste positivo, o paciente continua muito mais para não ter a doença do que para ter a doença. Continuamos pensando o mesmo que achávamos antes, ou seja, o paciente é saudável. O teste não mudou nosso pensamento. Não foi útil.

O mesmo acontece com métodos não invasivos de melhor acurácia, porém aplicados a indivíduos inadequados. Porém exemplo, a cintilografia miocárdica tem RP positiva de 3.6. Caso fosse positiva, a probabilidade deste paciente iria subir para 29%. Ainda muito duvidosa. E se fosse paciente assintomático, porém mais idoso, com maior probabilidade pré-teste, tipo 25%? Uma cintilografia positiva promoveria uma probabilidade pós-teste de 54%. Agora maior, porém ainda há muita dúvida se o paciente é saudável ou doente.

Assim fica claro que pesquisa de isquemia miocárdica em pacientes assintomáticos (screening de doença coronária) não tem utilidade. Esta indicação não deve existir na rotina, salvo algumas exceções. Ainda há outros motivos pelo qual o screening não deve existir que abordaremos na próxima postagem.

E quanto ao teste negativo? Se tivermos um paciente de 70 anos, com dor torácica típica para angina, sua probabilidade pré-teste de acordo com o modelo Diamond-Forrester é 90%. Se este paciente fizer uma cintilografia miocárdica, cujo resultado for negativo, considerando a RP negativa de 0.18, a probabilidade pós-teste cairá para 62%. Ou seja, apesar do teste negativo, ainda é mais provável que o indivíduo seja doente do que saudável. Portanto, a cintilografia não é útil neste caso, pois não vamos acreditar no resultado negativo e se fosse positiva não seria novidade. Por este motivo, diz-se que paciente com alta probabilidade pré-teste deve ir diretamente para a coronariografia.

E mesmo a coronariografia não afasta uma doença obstrutiva em paciente com altíssima probabilidade pré-teste. Recentemente, vivenciei um caso muito típico de angina, porém a coronariografia mostrava apenas uma estenose de 25-50% em descendente anterior. O quadro era tão típico que este resultado não foi suficiente para reduzir a probabilidade de doença para níveis aceitáveis. Sendo assim, solicitou-se um ultrassom intracoronário que mostrou obstrução de 70%.

A esta altura, alguns devem questionar como calculei a probabilidade pós-teste em todos estes exemplos. Hoje usei o aplicativo do Iphone (há muitos), onde coloco apenas a probabilidade pré-teste do paciente e a RP do método. Mas tradicionalmente isto é feito pelo Nomograma de Fagan (foto acima), onde traçamos uma linha que se inicia na probabilidade pré-teste, passa pela RP e termina na probabilidade pós-teste. Façam uma simulação e vejam como é fácil. Se o teste for positivo, utilizamos a RP positiva; se for negativo, utilizamos a RP negativa.

Em postagem anterior, comentamos sobre um registro americado publicado no New England Journal of MedicineDe 400.000 cateterismos eletivos realizados em 660 hospitais, apenas 38% evidenciaram lesões coronárias obstrutivas. E a maioria destes pacientes tinha exame não invasivo positivo para isquemia. O problema é que muitos pacientes com baixa probabilidade pré-teste tem exames solicitados. Quando chega o resultado positivo, o médico não faz o raciocínio probabilístico, considera que o paciente tem doença e solicita um cateterismo, cujo resultado vem normal. Como resolver isso? Solicitar o teste apenas nas situações de utilidade.

No caso da doença coronariana, a maior utilidade diagnóstica dos métodos não invasivos reside nos pacientes de probabilidade pré-teste intermediária. Uma mulher de 60 anos, com sintoma de tipicidade intermediária, tem probabilidade pré-teste de 54%. Se a cintilografia for positiva, sua probabilidade pós-teste vai para 80%. Aí sim, ela provavelmente tem doença. O teste foi útil, pois saímos da dúvida de 54% para um número mais sugestivo, 80%.

Isto não se resume à doença coronariana. Se começarmos a pesquisar embolia pulmonar para qualquer paciente internado com dispnéia, vamos ter resultados positivos alguns pacientes de baixa probabilidade pré-teste de acordo com o critério de Wells. E aí? O paciente tem mesmo embolia, precisa mesmo de anti-coagulação crônica? Ficará o dilema, pois a probabilidade pós-teste não vai ser alta. Por isso que só devemos investigar embolia quando a probabilidade pré-teste for pelo menos intermediária. Se não, vai confundir tudo.

Desta forma, a análise da utilidade de um teste diagnóstico passa pelo entendimento de que boa parte dos nossos diagnósticos é probabilística. Se pensarmos assim, é fácil detectar quando um teste será útil e quando será inútil. A utilidade aqui abordada se refere à capacidade do método de mudar substancialmente o que estamos pensando a respeito do paciente.

Como já dizia William Osler no início do século passado: “Medicina é a arte da incerteza e a ciência da probabilidade”. Diante da incerteza que nos ronda, precisamos pensar em probabilidade em nosso raciocínio diagnóstico.

Em recente editorial no JAMA 2010, Brook escreveu "in general, use of sensitivity, specificity, likelihood ratios, prior probabilities, and posterior probabilities in medical decision making has been largely ignored. An entire field of science is missing from the practice of medicine". Neste artigo o autor chama atençào para o fato dos médicos em geral não utilizarem o raciocínio probabilístico, simplesmente se tornam leitores de laudos de exames mal indicados.

Medicina baseada em evidências não se limita a discutir criticamente artigos científicos, mas também nos oferece ferramentas para a aplicação do conhecimento da prática clínica (from bench to bedside). Primeiro, há os artigos que mostram sensibilidade e especificidade dos métodos. Temos que analisá-los de forma crítica. Uma vez aceitando as informações, calculamos as RP. Quando aparece uma paciente, fazemos o raciocínio diagnóstico aqui proposto. Isto é medicina baseada em evidências.

Os critérios discutidos nesta postagem são necessários, mas não suficientes para um teste ser útil. O que discutimos representa a premissa básica: o teste deve ser capaz de influenciar nosso pensamento a respeito da probabilidade de doença. Porém, há um segundo critério que precisa ser avaliado: o resultado do teste deve provocar uma série de reações em cascata que resulte em benefício para o paciente. Este critério será discutido na próxima postagem desta série, cuja discussão é ainda mais palpitante.

* Está é a terceira postagem da série Análise Critica de Métodos Diagnósticos.

4 comentários:

  1. Nós clínicos somos verdadeiros detetives... durante os longos anos de aprendizado na faculdade ouvimos muito, praticamos bastante e estudamos arduamente. Quando terminamos nossa formaçao principal, entramos naquela 'rotina' ou prática do dia-a-dia e em geral fazemos do jeito que nossos preceptores e colegas mais velhos fazem... a banalização da prática médica clínica dada pelos convênios, gerando um baixo retorno financeiro, os múltiplos meios de acesso dados pela mídia, as exigencias do mercado, o curto espaço de tempo que temos para fazer uma entrevista adequada com o paciente, o medo de processos, o quase abandono do raciocínio clínico gera uma sobrecarga e exageros de solicitaçOes de exames (exigidos até pelos pacientes) que em geral confundem e geram dúvidas mais do que ajudam. O uso destes recursos dados pela ciência da probabilidade (que muitos de nós utilizam institivamente até e que chamamos as vezes de feeling ou intuição) poderá RACIONALAR e muito nossa prática diária. TEmos que tentar encontrar um meio termo entre as impressões subjetivas dadas pela relação médico-paciente e através de algoritmos ou escores ou diagramas ou pelo cálculo de algum método que nos faça AVANÇAR ou RETROCEDER.... após séculos de incertezas a medicina continua desafiando a ciencia moderna...

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  2. Gostaria de levar a reflexão esta frase do Sir William Osler:

    "Listen to your patient, he is telling you the diagnosis"

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  3. Sobre esta ultima frase recomendo a leitura de um texto do Rubem Alves chamado "escutatória".
    Nila

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  4. Aí vai o texto recomendado por Nila:

    Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil….
    Diz Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma”. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas… Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.
    Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma”. Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.
    Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.
    Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…
    Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios….
    Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, abrindo vazios de silêncio, expulsando todas as idéias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades.
    Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado”.
    Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou”.
    Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou”. E assim vai a reunião. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.
    Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.

    Rubem Alves

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