De forma impactante, foi apresentado no recente congresso do American Heart Association e simultaneamente publicado no New England Journal of Medicine o ensaio clínico FREEDOM, que demonstrou cirurgia de revascularização ser um tratamento mais eficaz do que tratamento com stent farmacológico, em diabéticos com doença coronária severa (80% triarteriais, a maioria com boa função sistólica).
Do ponto de vista metodológico, este é um
estudo de resultado confiável, poder estatístico adequado, diferenças estatisticamente significantes e ausência de vieses comprometedores.
Sendo assim, não desenvolverei nesta postagem uma discussão quanto à veracidade da informação, pois a considero verdadeira.
O mais interessante neste caso é perceber
quais as implicações dos resultados deste estudo, que me parecem ir além da
mera escolha da estratégia de revascularização.
O desfecho primário do estudo foi o
combinado de morte, infarto e AVC, apenas desfechos duros (hards). Como já estamos cansados de saber que cirurgia é melhor do que
angioplastia no controle dos sintomas e prevenção de novos procedimentos de
revascularização, estes não foram escolhidos como partes integrantes dos
desfechos combinados, seria redundante.
A redução na incidência do desfecho
combinado com a cirurgia se deu a custa de redução de morte e infarto. Este resultado é muito importante, pois
este é o primeiro ensaio clínico que demonstra que revascularização miocárdica
reduz mortalidade, quando comparado ao tratamento clínico contemporâneo.
Muitos imaginam que este é um efeito
comprovado há muito tempo, porém isto não é exatamente verdade. Voltando ao passado, é
importante lembrar que os clássicos ensaios clínicos da década de 70 (CASS, VA)
não demonstraram redução de mortalidade com a cirurgia, em relação ao
tratamento clínico. Na verdade estes foram estudos negativos em suas análises primárias, sendo sugerido benefício em análise de subgrupo dos pacientes no extremo superior de
gravidade. Como sabemos, análise de subgrupo apenas gera hipótese. Por outro lado, o estudo Europeu mostrou redução de mortalidade e, anos mais
tarde, uma meta-análise de Salim Yusuf combinou estes estudos, sugerindo
melhora da sobrevida no tratamento cirúrgico. Mesmo assim, uma meta-análise que sugere benefício tem ainda 30% de probabilidade de estar incorreta, segundo publicação antiga do New England Journal of Medicine. Desta forma, podemos dizer que até então não havia evidência definitiva de que cirurgia traz benefício de mortalidade. Além disso, o tratamento clínico aplicado àquela época não possuia estatinas e era limitado em relação a terapia antitrombótica.
Desta forma, o FREEDOM é a primeira evidência contemporânea e de alto nível demostrando que a
cirurgia de revascularização tem benefício que vai além do controle de
sintomas. É o primeiro dado científico que nos induz a indicar cirurgia para um
indivíduo assintomático, caso este seja triarterial. Isso não parece novidade,
pois já é uma conduta adotada pela maioria, devido ao nosso ímpeto de heroísmo
médico não embasado em evidências. Mas esta poderia ser uma conduta mal
indicada, como muitos exemplos de tratamentos adotados na ausência de
evidências que depois se comprovam deletérios ou sem efeito nenhum.
Portanto, a partir de agora, a indicação de cirurgia em um paciente assintomático, porém triarterial tem melhor validação. Vale salientar que o benefício
apresentado foi de grande magnitude, NNT = 13 para eventos combinados, NNT = 20
para morte, NNT = 13 para infarto.
Importante lembrar que o benefício da
cirurgia foi em comparação à angioplastia. Então quando digo que a cirurgia
fica indicada para pacientes assintomáticos com DAC grave, parto da demonstração
(estudos COURAGE e BARI-2D) de que angioplastia não é inferior ao tratamento
clínico contemporâneo, mesmo em pacientes triarteriais. Sendo estes dois semelhantes,
se cirurgia é melhor que angioplastia, podemos considerar que cirurgia é melhor
que tratamento clínico também. Observem que isso é uma inferência lógica. Resta
a possibilidade (não duvido nada) de que em certos pacientes angioplastia seja
inferior a tratamento clínico.
Sempre que o tratamento clínico se mostra
semelhante à angioplastia ou o tratamento cirúrgico se mostra superior à
angioplastia, médicos intervencionistas entram com o argumento de que a
angioplastia não foi realizada com o melhor tratamento atual (tipos de stents
principalmente). Esse é o tipo de argumento que gera o fenômeno em inglês
denominado catch-22. Essa expressão significa um dilema impossível de
resolver: precisamos fazer um estudo com o mais novo tipo de tratamento, mas
estes estudos duram 5 -10 anos do início do planejamento até a publicação,
então quando o estudo terminar, o tratamento não é mais novo. Assim, nunca teremos um
estudo que prove algo ser superior à angioplastia. Boa tática para não aceitar
resultados que não queremos aceitar. Ótimo exemplo de catch-22.
Um segundo aspecto importante do FREEDOM
é que a superioridade da cirurgia é consistente em pacientes com escore Syntax
baixo, médio ou alto. Isto fica claro na análise de subgrupo, que mostra
ausência de interação (P = 0.58) entre o escore Syntax e a superioridade da
cirurgia. Ausência de interação significa ausência de modificação de efeito. Ou
seja, o escore Syntax não modifica do efeito da cirurgia, não modifica o fato
desta ser superior à angioplastia.
Este dado desfaz um erro histórico de
interpretação do estudo Syntax. A primeira publicação do Syntax não conseguiu demonstrar não inferioridade da angioplastia em relação a cirurgia. Quando foram analisados os subgrupos de acordo com o escore Syntax,
houve semelhança nos pacientes de Syntax baixo e a diferença era menor nos pacientes de Syntax intermediário. Os intervencionistas gostaram destes resultado e disseram que a cirurgia só é melhor em pacientes de Syntax alto. Esse é um erro grave: fazer prevalecer o resultado de análise de subgrupo em relação à análise geral. Subgrupo apenas gera hipótese. Mas agora sabemos, não importa o Syntax: cirurgia é melhor.
Diabéticos
A esta altura da postagem, muitos devem estar pensando porque eu estou generalizando estes achados e não me referindo apenas a pacientes diabéticos. A justificativa é o princípio da complacência na análise de aplicabilidade de uma terapia. De fato, o estudo foi feito apenas em pacientes diabéticos, com doença coronariana severa. O que mais contou para o resultado encontrado? Foi o fato dos pacientes serem em sua maioria triarteriais ou o fato de serem diabéticos? De fato, diabetes é um fator de risco para desenvolvimento de aterosclerose (terceiro em ordem importância) ou seja contribui para a existência de uma doença mais extensa. Porém, uma vez a doença aterosclerótica triarterial instalada, importa se o paciente é diabético ou não? Triarterial é triarterial. Alguns intervencionistas podem argumentar que o diabético terá mais reestenose. Aí me reporto a uma postagem recente sobre o pensamento multivariado. No mundo multivariado, diabetes é um dos fatores de menor peso importantes para a desenvolvimento de reestenose (quem achou estranho o que acabo de falar, leia postagem prévia). Na análise de aplicabilidade, devemos nos perguntar: se funciona do diabético triarterial, há alguma grande razão para nos fazer duvidar que não funciona no triarterial não diabético. Esse é o princípio da complacência, que sugere sermos menos rigorosos e estender a aplicabilidade de dados verdadeiros e relevantes (NNT = 13) para uma população além da estudada (triarteriais).
Diabéticos
A esta altura da postagem, muitos devem estar pensando porque eu estou generalizando estes achados e não me referindo apenas a pacientes diabéticos. A justificativa é o princípio da complacência na análise de aplicabilidade de uma terapia. De fato, o estudo foi feito apenas em pacientes diabéticos, com doença coronariana severa. O que mais contou para o resultado encontrado? Foi o fato dos pacientes serem em sua maioria triarteriais ou o fato de serem diabéticos? De fato, diabetes é um fator de risco para desenvolvimento de aterosclerose (terceiro em ordem importância) ou seja contribui para a existência de uma doença mais extensa. Porém, uma vez a doença aterosclerótica triarterial instalada, importa se o paciente é diabético ou não? Triarterial é triarterial. Alguns intervencionistas podem argumentar que o diabético terá mais reestenose. Aí me reporto a uma postagem recente sobre o pensamento multivariado. No mundo multivariado, diabetes é um dos fatores de menor peso importantes para a desenvolvimento de reestenose (quem achou estranho o que acabo de falar, leia postagem prévia). Na análise de aplicabilidade, devemos nos perguntar: se funciona do diabético triarterial, há alguma grande razão para nos fazer duvidar que não funciona no triarterial não diabético. Esse é o princípio da complacência, que sugere sermos menos rigorosos e estender a aplicabilidade de dados verdadeiros e relevantes (NNT = 13) para uma população além da estudada (triarteriais).
Além disso, criou-se erradamente um mito
de que o diabético é muito diferente do não diabético. Na verdade tem muito
diabético que nem diabético era antes da redução do ponto de corte da glicemia
para 125 mg/dl.
Acredito que a importância do achado deste estudo vai além dos
diabéticos. Diabetes é apenas um dos mecanismos pelo qual um indivíduo
desenvolve uma doença coronariana severa, mas uma vez essa doença desenvolvida,
todo mundo é “igual”. Um indício é que não há nenhum tratamento
cardiovascular que funcione diferente em diabéticos e não diabéticos: a
eficácia de anti-hipertensivos, estatinas, aspirina, é tudo igual.
Mas para quem ainda está cético com o que
estou falando, é só olhar os resultados do seguimento de 5 anos do estudo Syntax, que envolve pacientes com doença grave em geral, não só diabéticos. O
estudo ainda não foi publicado, mas ficou claro que em seguimento de longo
prazo, cirurgia reduz mortalidade e infarto, quando comparado a angioplastia.
Aí está a demonstração de que a coisa vai além do diabético. E isso foi
independente do escore Syntax.
FREEDOM (liberdade)
Na verdade, o estudo FREEDOM nos faz
perder (não ganhar) algumas liberdades. De um lado, perde-se a liberdade de banalizar o tratamento da
doença coronária severa com a supervalorização da angioplastia coronária, em
detrimento da cirurgia. De outro lado, perde-se a liberdade de manter o
tratamento clínico apenas em pacientes assintomáticos com doença coronária
severa, que sejam de baixo risco cirúrgico. Agora (só agora) sabemos que
cirurgia reduz mortalidade em pacientes triarteriais.
Importante salientar que nada disso justifica a pesquisa de doença coronária em pacientes assintomáticos. Isso continua inapropriado, como já comentado algumas vezes neste Blog. Em breve, abordaremos melhor este problema de overdiagnosis.
Importante salientar que nada disso justifica a pesquisa de doença coronária em pacientes assintomáticos. Isso continua inapropriado, como já comentado algumas vezes neste Blog. Em breve, abordaremos melhor este problema de overdiagnosis.