Nesta semana, o estudo PRAMI
foi publicado no New
England Journal of Medicine,
simultâneo à apresentação de seus resultados no Congresso Europeu de Cardiologia. O resultado deste estudo muito me
chamou atenção, pois vai de encontro a um quase onipresente princípio, o less is more.
O paradigma less is more prevalece na maioria das condutas
médicas em que se comparou tratamento intenso versus tratamento moderado. São consistentes e repetidas as
evidências de que fazer menos exames
(indicar para as pessoas certas) ou evitar tratamento exagerado (glicemia,
pressão arterial, transfusão) traz maior
probabilidade de benefício líquido aos indivíduos. Daí a surge a aplicação da expressão menos é mais em medicina.
Em postagem antiga, demos várias exemplos de comprovação deste princípio em diferentes
situações médicas.
Esta expressão foi difundida em meados no
século XX pelo alemão LudwigMies van der Rohe, um dos pais da
arquitetura moderna, que primava pelo estilo claro e simples, expressando o
espírito da era pós-guerra, em contraposição ao estilo gótico ou barroco.
Percebemos este estilo nas obras de Frank Lloyd Wright (Guggenheim) ou Oscar Niemeyer. Esta tendência surgiu na
renascença, quando Leonardo da
Vinci afirmou “simplicidade é a
sofisticação mais requintada”. Um exemplo moderno da aplicação deste
princípio estético foi o fascínio de Steve Jobs pelo less is more, criando
produtos cuja estética reside principalmente em sua linearidade e simplicidade
tecnológica. Há algo mais simples do que um telefone sem teclas?
Porém, é na medicina que este paradigma é verdadeiramente comprovado por evidências
científicas. A editora da revista JAMA Internal Medicine, Rita Redberg, criou a série de artigos Less is More, já com 83 publicações, que envolvem as mais diferentes situações clínicas em que este paradigma se faz presente.
Mas por que o estudo PRAMI contradiz o paradigma less is more?
O ensaio clínico PRAMI estudou pacientes submetidos a intervenção
coronária primária no infarto com supradesnível do ST e que tinham outras placas provocando estenose > 50%, além da lesão culpada. Estes pacientes foram
randomizados para realizar intervenção apenas da artéria culpada pelo infarto
(conduta corrente, less is more) versus
intervenção não só da lesão culpada, mas também das demais placas presentes (more
is more). Pois bem, o PRAMI demonstrou que o more is more foi superior
ao less
is more na prevenção do desfecho combinado de óbito, infarto e angina
refratária em seguimento de 2 anos.
Este é o tipo de evidência capaz de mudar nosso paradigma de
tratamento do infarto com supradesnível do ST. Em medicina baseada em evidências, devemos aceitar evidências de qualidade, independente de nossa crenças (less is more). Mas antes precisamos avaliar a qualidade das evidências.
Análise Crítica da Evidência do PRAMI
Em primeiro lugar, devemos perceber que este é um ensaio clínico
relativamente pequeno, apenas 465 pacientes randomizados, um número bem menor
do que o normalmente visto em ensaios clínicos de fase III. Por si só, isto não
invalida do trabalho, porém o deixa mais vulnerável aos efeitos de erros aleatórios
ou sistemáticos.
Seguindo o check-list de nossa última postagem, o estudo passa na maioria das checagens de erros
sistemáticos (vieses), porém um deles necessita melhor avaliação: vies de aferição do desfecho. O desfecho primário deste estudo é o combinado de morte cardiovascular, infarto e angina refratária. Este último é sozinho responsável por 57% dos desfechos do estudo e por ser mais subjetivo (soft), fica mais sujeito a enviesamento.
Em um momento pontual do texto, o trabalho é descrito como single blind, indicando que apenas uma das partes, o médico ou o paciente, está cega em relação à alocação. Embora não esteja especificado qual das partes, deduzo que seja o paciente cego, sendo que o pesquisador tem conhecimento da alocação. Cegar o paciente previne que o efeito placebo corrompa este desfecho. Por outro lado, o pesquisador pode interpretar um desfecho como angina refratária ao saber que o paciente não foi plenamente revascularizado.
O ideal em um estudo aberto seria
considerar apenas desfechos hards. Porém sendo este um estudo pequeno, desfechos hards não teriam a frequência necessária para gerar um poder estatístico satisfatório. Portanto a solução deveria ser cegar o estudo e isto não foi feito plenamente.
Nota-se que os autores tiverem o “cuidado” de considerar apenas
anginas que fossem refratárias. A primeira vista isso parece tornar o desfecho
mais duro, porém percebam a realidade: ter angina ou não ter é algo mais
objetivo do que definir se a angina é refratária ou não. Uma vez tendo angina,
isto pode gerar um ajuste de droga, porém o pesquisador que sabe que ficou com lesão não abordada tende a julgar que o ajuste farmacológico não foi
suficiente para o controle de seu sintoma. Isto mostra que no caso de um estudo
aberto, qualificar um sintoma pode ser mais subjetivo do que simplesmente
avaliar se o sintoma ocorreu ou não. Desta forma, em um estudo aberto a definição de refratária não torna o desfecho angina menos vulnerável ao viés de aferição, pode tornar até mais vulnerável.
Da mesma forma aparentemente “cuidadosa”, os autores
consideraram apenas as anginas que tinham isquemia miocárdica
demonstrada por exames funcionais. Este é outro detalhe que a primeira vista
sugere um desfecho mais criterioso (hard),
porém faz exatamente o contrario. Claro que um paciente que tem lesão residual
tem maior probabilidade de ter isquemia quando comparado ao paciente que fez abordagem de todas as
suas lesões. Este critério, na verdade, gera um preconceito de que os pacientes
do grupo mais conservador terão mais angina refratária. Foi incorreto utilizar
um critério de imagem para definir um desfecho clínico, principalmente porque,
independente do desfecho, um grupo com certeza terá mais isquemia no exame de
imagem. Esta foi uma forma pré-concebida de garantir que o desfecho angina
fosse mais frequente no grupo que não realizou revascularização completa.
Por fim, precisamos falar de morte cardiovascular. Tenho
dito que morte é o desfecho mais hard que existe, ninguém vai errar sua aferição. Por outro lado, morte de causa
específica (cardiovascular) é um desfecho sujeito a interpretações das mais diversas: imaginem um
paciente interna por infarto, realiza coronariografia, desenvolve insuficiência
renal por contraste e morre - esta morte é cardiovascular ou renal? Ou um paciente
interna por pneumonia, durante o curso da infecção apresenta um infarto e
morre - morte cardiovascular ou infecciosa? Independente das respostas
corretas, observem que há justificativa para qualquer das definições do
desfecho.
Desta forma, percebam que uma “cuidadosa” definição de
desfechos, aliada ao caráter aberto da observação, pode definir a priori o resultado do estudo de acordo
com o interesse do investigador. Este estudo é bom exemplo disso.
Passando para a segunda parte de nosso check-list, entramos na questão do erro
aleatório, proveniente do acaso. Vejam os quatro pontos a checar e adivinhem onde está a falha.
Este é um estudo truncado!! De novo? Por que isso, interromper um estudo tão
pequeno justamente no momento em que o resultado está favorável à hipótese
testada? Justamente porque ao continuar o estudo, corre-se o risco do resultado
(que pode ser por acaso) desaparecer. Já exemplificamos neste Blog inúmeros
casos de estudos truncados (Xigris é o mais famoso, inclusive com postagem específica
sobre esse tema). Como mencionamos previamente, um interessante trabalho publicado no JAMA mostrou que
quando o número de desfechos é menor que 200, o risco de um resultado superestimado fica bem mais alto. Este é o caso do PRAMI.
Observem então que o PRAMI combina algumas
características perigosas. Fazendo uma teoria
de conspiração, é como se os autores pensassem: vamos fazer um estudo bem
pequeno, ajustar os desfechos de forma a favorecer nosso interesse e quando o
estudo mostrar positividade, a gente interrompe na hora, para garantir o resultado.
Implicações Práticas
O resultado do PRAMI, caso verdadeiro, mudaria um importante paradigma no tratamento do infarto. Nesta circunstância clínica, trocaria o paradigma do less
is more para o more is more.
Pode até ser que o resultado do PRAMI seja verdadeiro, mas não é uma garantia. O princípio científico da hipótese nula afirma que na ausência de evidência forte o suficiente, devemos permanecer com a ideia da ausência do fenômeno. Nesta discussão, não estamos afirmando que o tratamento das múltiplas angioplastias não seja benéfico. Estamos apenas chamando a atenção de que não podemos afirmar que seja benéfico. Percebam o detalhe filosófico.
Esta mudança de paradigma promoveria aumento
significativo da (já enorme) quantidade de intervenções coronárias, gerando um
curso logístico e econômico ainda mais elevado do que o já existente.
Sou totalmente a favor de mudanças de paradigma, em
postagem recente fiz uma apologia à transgressão, quando citei Nilton Bonder. No
entanto, mudanças de paradigmas devem ser mediadas por argumentos mais fortes do que aqueles que sustentam a ideia corrente. O estudo PRAMI
não tem nível suficiente para promover esta mudança.