terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Brumadinho e a Lógica Científica do Cisne Negro


* Artigo publicado no Jornal A Tarde em 01 de fevereiro de 2019

A lógica do cisne negro é um conceito proposto pelo cientista da incerteza Nassim Taleb, que define eventos (1) raros, (2) imprevisíveis e (3) de grande impacto. São os “cisnes negros” que mudam o curso da humanidade: queda da bolsa de 1929, surgimento de Hitler, descobrimento casual dos antibióticos, surgimento do iPhone, internet, 11 de setembro. Nenhum desses raros eventos poderia ser previsto, portanto não poderiam ser prevenidos, nem planejados. E o impacto deste eventos é proporcional a sua imprevisibilidade.

Em ciência, a lógica do cisne negro torna cientistas atentos ao papel da serendipidade (ideia que surge do nada) e do acaso nas grandes descobertas. Verdadeiros cientistas não se garantem apenas com  plausibilidade, focalizam o máximo na experimentação e reconhecem resultados inusitados como geradores de hipóteses. Respeitam o cisne negro.

Na interpretação da história social ou clínica, a falta de reconhecimento do conceito do cisne negro faz com que interpretemos eventos com base em falaciosas hipóteses causais criadas pelo fenômeno de “previsibilidade retrospectiva”: contamos a história de frente para trás, inventando sentido para um fato. 

Por outro lado, nossa elaboração mental deve perceber quando o evento não se trata de um cisne negro. Assim, a diferenciação entre cisnes brancos e negros deve estar no cerne da alfabetização científica da sociedade. 

Quando ocorreu o desastre de Mariana, pensei: será que este foi um cisne negro? Embora analistas responsabilizassem a Vale por não ter prevenido aquele evento, eu me questionava se a impressão de que aquela catástrofe seria evitável não seria uma falácia narrativa. Aquele foi um evento raro e impactante. E como ninguém previu, poderia ser um evento imprevisível. Os três critérios do cisne negro estariam presentes. 

Brumadinho desvendou o dilema: o desabamento das barragens da Vale não são cisnes negros. Ao ocorrer o mesmo evento em curto período, este deixou de ser raro e imprevisível. Um único evento inusitado pode decorrer do acaso, mas fica menos provável que dois eventos inusitados repetidos em pouco tempo decorram do acaso. Cientificamente, reprodutibilidade reduz a probabilidade do acaso. 

A percepção de que isso não foi por acaso implica na possibilidade de prevenção a partir da identificação de causas. Portanto, abre-se o caminho para que isto nunca mais ocorra. 

No entanto, surge uma preocupação ...

Se por um lado, o impacto local foi devastador, a perda do inusitado reduz o impacto histórico daquele evento. De acordo com a lógica do cisne negro, quanto mais inusitado, mais impactante é o evento. Brumadinho deixou de ser imprevisível, inusitado. Assim, passado o trauma da semana, o assunto naturalmente se diluirá entre tantos outros e a probabilidade de mudança de atitude pode ser menor do que após o inusitado desastre de Mariana. 

Portanto, fiquemos atentos, Brumadinho não é um cisne negro!

17 comentários:

  1. Pior é que a prevençao nao pode acontecer. Barragens nao poderao ser desconstruídas. Na melhor das hipóteses podem ser remendadas. Negro mesmo é p horizonte, Luis!

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    1. Correto qto à "parede" da barragem em si...mas o "elemento contido" pode ser modificado, iniciando pela interrupção/contenção por desvio de entrada de líquido (semelhante à calhamento de margem para contenção de topo de encosta), drenagem por bombeamento de sobrenadante e por sistema de galhamento (semelhante tecnica para secagem de solo pântanoso/mangue) e uso de polímero gelificador/cimetante (extremamente caro), com posterior introdução de vegetação rasteira> arbustiva > arborea
      É assim que é feito nos processos de migracao/interrupção de barragens semelhantes no Canadá e Nova Zelândia. Caro, lento mas possível

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  2. Nos não somos um cisnei negro! Não foi acidente, foi um assassinato, um crime!!
    É se não nos atentarmos nada será feito, assim como não foi feito em Mariana...
    É acontecera novamente!

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  3. Para mim foi um crime bárbaro. Os culpados têm que ser presos e pagar pelo seu crime.

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  4. Não é um cisne negro; é previsível e previnível; a questão é a insaciabilidade pelos lucros,a postergação de medidas mais rígidas e modernas em termos de controle e tecnologia.

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  5. Brumadinho é um cisne branco, como Mariana, coberto pela lama do descaso e da ambição desmedida...

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  6. Tenho dúvidas se barragens não podem ser desconstduídas.Não há ainda um meio de retirar primeiro seu conteúdo líquido diminuindo em muito a energia cinética que força a barragem? E mais: se não pode ser desconstruída pode deixar de ser sobrecarregada deixando de nela jogar mais entulhos. AS BARRAGENS COMO QUASE TUDO TÊM LIMITES.A prova disso é que são construídas segundo cálculos que levam em conta a quantidade de matéria(energia) que podem suportar,próximos da certeza.

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  7. As linhas de produção, na ciência médica ou na engenharia, abarcam processos graduais, assimétricos entre si, cujos resultados-desfechos refletem em consequências sociais. Isso é claro pra qualquer um que se proponha a refletir a filosofia de um ensaio, experimento ou produto de obra engenheira. Assim, nós, consumidores (agentes protagonistas e ao mesmo tempo observadores) de ciência, pagamos por todos esses finais. Brumadinho relembra Mariana que relembra um processo muito maior que barragens e cálculos. Assim também como na medicina, mostrando que somos frutos - ou vítimas - de condutas. Definitivamente, o cisne negro nem chega a dar as caras nas Minas Gerais de 2019. Temos como cenário apenas a barbárie e o caos. Me lembrou, indiretamente, "A festa do Bode", do peruano Vargas Llosa. Lá, o “bode" era um totalitário governante dos anos 30. Mas, hoje, as imagens se replicam e temos muitos bodes, espalhados por aí, com as naturezas insaciáveis. Na ciência e na política que respingam e trazem a conta pro social: vítimas de eventos como Brumadinho ou pacientes que pagam o preço das incoerências médicas. Lá em Brumadinho, segundo contam, a sirene não tocou. Aqui, metaforicamente, deve ser tocada todos os dias: atentemos pra que não se repliquem.

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  8. Amei o texto, como sempre!

    O trem do cisne não é negro, todavia é caríssimo. Sem a mineração, Minas Gerais quebra.
    As mineradoras sabem desse "calcanhar" e se aproveitam para fazer a lambança.

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  9. Sou obrigado a discordar totalmente quanto à imprevisibilidade do desastre de Mariana, quanto mais o de Brumadinho! O nosso pais é o paraíso da impunidade e da corrupção, além do descaso total com a vida humana. É só assistir a entrevista com o presidente da Vale, que ele mesmo lista tudo de errado que tem com a exploração mineral no Brasil e o que a Vale (agora depois que já soterrou todo mundo na lama) vai fazer (se é que vai mesmo), no futuro para que estes desastres não ocorram mais. Quer dizer que ele já sabia de tudo e não fez nada, e ainda colocou o refeitório e administração no caminho da lama. A fiscalização era feita por empresa contratada da Vale. É demais para qualquer um achar que Mariana foi alguma surpresa! Se multas astronômicas fossem aplicadas, se os responsáveis fossem presos de verdade e não apenas aquele folclore para aparecer nas televisões, as empresas seriam outras e não este antro de corrupção e desrespeito com a vida das populações.

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  10. Obrigado Luis Cláudio nos brindou com mais um excelente artigo. Tomo a liberdade de fazer 3 observações relativas as seguintes parágrafos:

    No primeiro parágrafo: Você cita como um dos eventos raros que não poderia ser previsto (prevenido) (Cisne Negro) o 11 de setembro (nos EUA). O fato de um acontecimento não ter sido prevenido,não significa necessariamente que o mesmo é imprevisível (impossível de se prever). Posso não ter previsto por FALHA técnica ou humana.

    No terceiro parágrafo: no que concerne a "previsibilidade retrospectiva". Essa muitas vezes nos ajudam na identificação da(s) causa(s) de um evento que poderia ter sido prevenido sem que esta análise investigativa retrospectiva seja SEMPRE inventada ou decorrente de um viés.

    No nono parágrafo (penúltimo parágrafo deste maravilhoso artigo): Você ao ficar preocupado diz: " De acordo com a lógica do cisne negro, quanto mais inusitado, mais impactante é o evento". Mas, no caso em questão (de Brumadinho), embora não seja inusitado como você bem descreveu (ocorrência em Mariana) é bem impactante e independente da lógica do cine negro. A relação positiva (direta) inusitado/impactante que bem se aplica na lógica do cisne negro não necessariamente se aplica no cisne branco, porque neste caso de Brumadinho, embora não inusitado é sim bem impactante (relação inversa ou indireta entre inusitado e impactante).

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  11. Guilherme Carregosa da Costa31 de janeiro de 2019 às 17:14

    Mises na Áustria e Benjamin Anderson, nos EUA previram o crash que aconteceu em 1929, pra ficar em 2 exemplos apenas. Economistas Austríacos estão quase sempre certos.

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  12. No inicio nao estava entendendo aonde voce queria chegar, mas tudo se esclareceu ao final.
    A repetição do mesmo fato em curto espaço de tempo servindo como prova de que os eventos de Mariana e Brumadinho foram crimes e nao tragedias. Genial

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