terça-feira, 13 de abril de 2021

COVID-19: ECMO Baseado em Evidências

 


Ao conversar com um paciente sobre sua doença, precisamos de sensibilidade. Ao conversar com a sociedade sobre questões de saúde, faz-se necessário extrema responsabilidade para reconhecer o impacto exponencial de ideias mal calibradas.

Nos últimos dias, no contexto do tratamento de COVID-19, surgiu no Brasil uma epidemia de artigos jornalísticos a respeito da tecnologia apelidada de ECMO (extracorporeal membrane oxygenation), que substitui temporariamente pulmões comprometidos agudamente. 

 

Fenômeno surgido na era COVID-19, a discussão de tratamentos específicos com a população geral varia de condutas fantasiosas a tecnologias benéficas. ECMO se aproxima mais desta última categoria, embora com nuances. Precisamos considerar que discussões técnicas, de difícil racionalização até  por médicos, correm o risco de serem mal compreendidas pela sociedade. 

 

A ciência da economia comportamental indica que a espécie humana tende a superestimar o benefício de soluções, o que se reproduz em médicos, que inconscientemente superestimam a “eficácia” de tratamentos. Este fenômeno se torna escalável quando traduzido para a população geral. Desta forma, faz-se necessário recalibrar realisticamente o benefício do ECMO no contexto da pandemia de COVID-19. 


Eficácia do ECMO


ECMO é um tratamento compatível com o conceito de plausibilidade extrema, respeitando o “paradigma do paraquedas”? Se fosse, não haveria ensaios clínicos randomizados avaliando a eficácia do ECMO em pacientes com insuficiência respiratória severa aguda. 

 

Nesta avaliação, não podemos confundir desfechos intermediários e desfecho final. ECMO é uma terapia de probabilidade extrema para o desfecho intermediário de melhora da oxigenação do sangue. No entanto, para o desfecho sobrevida, duas razões dão suporte à equipoise (incerteza) que torna ética a randomização para grupo controle. Primeiro, o sucesso final depende da melhora global do paciente que permita o desmame da tecnologia em algum momento. Segundo, o desfecho óbito é de caráter composto, resultante do combinado de óbito direto da doença e óbito indireto, aquele decorrente da cascata de consequências da intervenção. ECMO não é uma intervenção isenta de riscos. 

 

ECMO poderia se adequar à variação do paradigma da probabilidade extrema que denomino de “assimetria do curso clínico inexorável”: quando há certeza do desfecho fatal na ausência de intervenções, um incerto benefício de alguma conduta supera o malefício de quem “não tem mais nada a perder”. No entanto, o uso de ECMO para insuficiência respiratória grave não se adequa a esse paradigma, pois a indicação procura alinhar gravidade e potencial de reversão. Não se aguarda o curso clínico inexorável. Por este motivo, a sobrevida do grupo controle em ensaios clínicos gira em torno de 50%, reforçando que não estamos diante de uma condição inexorável.

 

Entendo que experiências clínicas "sintam" exemplos de vidas salvas em uma visão retrospectiva. Mas não podemos perder de vista a necessidade do contrafactual e o caráter probabilístico (futuro após intervenção) do conceito de letalidade de uma doença.

 

Foram dois ensaios clínicos randomizados que avaliaram ECMO no tratamento de acometimento pulmonar agudo. 

 

O primeiro estudo (CESAR trial, Lancet 2009) randomizou 180 pacientes com “insuficiência respiratória severa potencialmente reversível” para ECMO ou controle. Neste estudo aberto, o desfecho primário foi o composto de morte (objetivo) ou incapacidade severa (subjetividade sujeita a viés de aferição em estudo aberto) no seguimento de 6 meses. Pacientes randomizados para ECMO foram transferidos para um mesmo hospital de excelência, enquanto os demais continuavam em suas unidades de origem, caracterizando um forte exemplo de viés de desempenho. Apesar de originalmente dimensionado para 240 pacientes, no decorrer do estudo o tamanho amostral foi recalculado para 180 pacientes, baseado em aumento da redução de risco pretendida. O CESAR trial foi um estudo positivo a favor do ECMO (37% vs. 53% de incidência do desfecho combinado, P = 0.03). Um estudo positivo, com alto risco de viés e moderado risco de erro aleatório.

 

O segundo estudo (EOLIA Trial, NEJM 2018) randomizou 250 pacientes, definiu morte como desfecho primário e não transferiu pacientes, caracterizando baixo risco de viés. No entanto, este estudo planejara a inclusão de 330 pacientes, sendo interrompido precocemente com 250 pacientes e uma incidência de morte menor do que a premissa do cálculo amostral, aumentando o risco de erro aleatório. O EOLIA trial não mostrou diferença estatisticamente válida (P = 0.09; 35% vs. 46%), sendo um estudo de conclusão “negativa”. Vale salientar que, na análise primária por intenção de tratar, houve 28% de crossover do grupo controle para ECMO. 

 

Desta forma, temos dois estudos de tamanho amostral moderado, ambos do tipo exploratório: um positivo, porém com alto risco de viés e outro de baixo risco de viés, porém negativo. 

 

É válido suspeitar que o segundo estudo sofreu do erro tipo II. De fato, essa probabilidade é maior do que o limite aceitável de 20% (erro Beta). Por outro lado, a razoável probabilidade do erro tipo II não se reverte em pequena probabilidade do erro tipo I, caso fôssemos afirmar eficácia baseada em dados não estatisticamente significantes, em estudo de pequeno tamanho amostral. 


Efetividade do ECMO


Terapias de alta tecnologia e complexo expertise tendem a apresentar efetividade (mundo real) menor do que a eficácia conceitual demonstrada cientificamente. Desta forma, a incerteza da eficácia se multiplica na incerteza de efetividade, especialmente no contexto de uma pandemia, onde pacientes como estes estão espalhados por todos os cantos do país. 

 

Podemos evitar a dicotomia da discussão terapia ineficaz versus eficaz. Porém precisamos reconhecer a incerteza dos conceitos de eficácia e efetividade neste caso. Esta percepção de incerteza não tem sido veiculada à sociedade brasileira quando ECMO é colocado como objeto de desejo para o tratamento do COVID. 

 

O Caráter Probabilístico dos Tratamento Individuais


A partir deste ponto, continuarei a análise na condição hipotética de que ECMO tem eficácia comprovada, e que todas as condições práticas existirão em prol da sua efetividade. 


Há grande diferença entre em tecnologias de efeito sistêmico (tratam a pandemia, impacto escalável) versus tecnologias de efeito individual. Em condutas de efeito sistêmico, o paradigma é multiplicativo: uma intervenção aplicada a uma pessoa (um indivíduo vacinado) beneficia uma coletividade de pessoas. Por outro lado, em tratamentos individuais (ECMO), o efeito é limitado ao paciente que o recebe. E este efeito se reduz a uma probabilidade: precisamos utilizar o tratamento em muitos pacientes para salvar um deles. 

 

Dois fenômenos justificam o caráter probabilístico dos tratamentos salvadores. Primeiro, nenhum é 100% eficaz. Segundo, nem todas as pessoas elegíveis para o tratamento iriam morrer sem o tratamento. 

 

Recente revisão sistemática publicada no Intensive Care Medicine (2020) confirma que são apenas dois ensaios clínicos, e compila os resultados em meta-análise: a utilização de ECMO em doença respiratória severa promove 25% de redução relativa do risco de óbito. 

 

Observem a importância de elucidar para a sociedade que aqui não se trata de uma conduta determinística: (1) em pacientes elegíveis que não utilizaram ECMO, a letalidade foi 48% (nem todos morrem), reduzida a 36% nos que receberam ECMO (nem todos são salvos). Na realidade, tratamentos são “pílulas de probabilidade”, não garantias de salvamento em pacientes de curso clínico inexorável. Essa é a evolução no inocente paradigma determinístico para o realista paradigma probabilístico. 

 

Além disso, o intervalo de confiança da medida sumária da meta-análise, embora válido estatisticamente, indica muita imprecisão, podendo a redução relativa do risco variar de 40% a 6%. Há incerteza quanto ao tamanho do efeito. 

 



Análise Econômica

 

Ao pensar na vítima identificável, desejaremos com razão usar de todos os esforços. Por outro lado, em saúde coletiva visamos o benefício sistêmico e neste precisamos considerar um dos pilares do pensamento econômico, o “princípio de custo-oportunidade”: uma escolha implica em perda de oportunidade de outras escolhas. 

 

A publicação do estudo CESAR (realizado no Reino Unido) foi acompanhada da análise de custo-efetividade, que indicou uma razão incremental de custo-utilidade de 19.000 libras por ano de vida com qualidade. Considerando a incerteza desta estimativa, e o limite de custo-efetividade utilizado no Reino Unido (20.000 libras) estimou-se que a terapia teria 50% de probabilidade de ser custo-efetiva naquele sistema de saúde (incerteza). O Brasil não possui limite pré-definido de custo-efetividade, mas utilizando a sugestão da Organização Mundial de Saúde de ajustar para o PIC per capita, o custo-efetividade em nosso país se torna ainda mais incerta.

 

Além da custo-efetividade, há o impacto orçamentário (custo individual x número de pacientes). Vamos imaginar a situação hipotética de que ECMO estivesse implementando no SUS e que fosse factível em qualquer hospital. Segundo, vamos imaginar que dentre os 350.000 mortos até então, 20% tivessem indicação de ECMO. Terceiro, vamos estimar o custo do ECMO em 30.000 reais. Assim, o impacto orçamentário seria de 2,1 bilhões, o que sozinho representa 1/3 do orçamento da união para tratamentos de alto custo (Componente Especializado da Assistência Farmacêutica - CEAF).

 

 Conclusão

A discussão quanto à oferta de ECMO pelo maior sistema público de saúde do mundo (SUS) é complexa e qualquer decisão tem consequências não intencionais de diferentes naturezas. Essa não é uma conversa a ser reduzida a minutos de cobertura jornalística. 


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6 comentários:

  1. Mais uma vez, um texto brilhante!

    Parabéns luis!

    Tenho uma sugestão pra ti:
    Na simulação dos gastos, comparar com o que o Governo efetivamente gastou, por exemplo com vacinas!

    Até Fevereiro, o Gov tinha gasto apenas 2.21 Bi com Vacinas, enquanto vc simula aí para ECMO um gasto de 2.1 bi para 70 mil pessoas (20% de 350 mil).

    Pra pensarmos!

    Abraço!

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  2. Excelente, professor.

    Só diria que podemos, sim, usar o Elmo em estágio anterior às ECMO. Esse Elmo aqui:

    https://sus.ce.gov.br/elmo/

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  3. Tu é fera demais! Parabéns pelo texto!

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  4. Eu entendo o raciocínio mas de onde surgiu esse numero de 20% que precisaria de ecmo?

    Outro ponto: cesar trial não foi positivo para ecmo, visto que nem todos pacientes transferidos para o centro foram canulados. E o eolia apesar de ser interpretado como negativo teve quase 30% de crossover e isso quando analisado mostra benefício em relação ao grupo ecmo.

    É obvio que não é pra todo mundo, e a indicação na pandemia é mto mais restrita, visto a demanda de equipe multi para cuidar, mas quando bem indicada acho que vale a pena.

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  5. Muito bom, Luís!
    Esclarecedor, quanto a a utilidade, efetividade e viabilidade da inclusão no SUS, no nosso caso(economicamente impossível, acho!)

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