Embora eu tenha mencionado na introdução deste conjunto de textos que o conceito de “desfecho” remete à substituição da ideia genérica de eficácia, a terminologia “desfecho substituto” (surrogate) tradicionalmente utilizada em medicina é mais específica: diz respeito a medidas fisiológicas (pressão arterial), laboratoriais (colesterol) ou de exames de imagem (densitometria óssea) que não são eventos factuais na vida de um paciente. O paciente não sente, nem sofre um desfecho substituto.
Neste caso, o desfecho substituto não necessariamente marca o curso da doença, portanto princípio da interconexão não se aplica na relação entre desfechos substitutos e clínicos. São inúmeros os exemplos históricos, muitos comentados nesse Blog, de melhora de marcadores não clínicos que não corresponde a qualquer impacto clínico positivo ou até mesmo possuem impacto clínico negativo.
Portanto, estudos que avaliam desfechos substitutos servem como prova conceitual de um efeito intermediário, que pode ser necessário para a eficácia clínica, porém não suficiente. A importância do teste conceitual em desfechos intermediários está em fazer um pesquisador desistir de avançar para testes clínicos quando o estudo é negativo (redução da probabilidade pré-teste) ou em estimular o pesquisador a avançar para testes clínicos quanto o estudo é positivo (aumento da probabilidade pré-teste).
Portanto, não devemos criticar cientificamente estudos de desfechos substitutos, o que precisamos criticar é o uso destes estudos para recomendação clínica.
Definição Substituta de Doença
Às vezes, a própria definição da doença é substituta e não clínica. Nestes casos, alguns tendem a interpretar desfechos substitutos como clínicos, o que é um erro. Por exemplo, osteoporose ou diabetes.
A definição de osteoporose é baseada em densitometria óssea (exame) e a de diabetes é baseada na glicemia > 125 mg/dl. Isto promove argumentos de que a melhora da densidade óssea para níveis que definem acima da definição da doença representa um beneficio clínico. Assim como reduzir a glicemia para valores normais seria a prevenção de diabetes. Há muitos anos comentamos nesse Blog sobre um estudo com hipoglicemiante que sugeria "redução da incidência de diabetes". São pensamentos inadequadamente utilizados a fim de superestimar o impacto de ensaios clínicos.
Por fim, devo salientar exceções nas quais resultados de desfechos substitutos devem nos influenciar clinicamente. Trata-se de quando (1) o desfecho substituto é validado por estudos prévios e (2) a proposta seja em usar o tratamento avaliado como adjuvante, ao invés de primeira escolha.
Por exemplo, o valor da pressão arterial é um desfecho substituto validado em relação a prevenção de acidente vascular cerebral. É reprodutível o resultado de ensaios clínicos cuja intervenção reduziu a pressão e preveniu AVC. Sendo assim, se o paciente já estiver usando 2-3 drogas de eficácia clinicamente comprovada, é aceitável que a terceira ou quarta droga possa ser uma que tenha apenas efeito comprovado na redução do valor da pressão arterial. É o que acontece com anti-hipertensivos como clonidina ou minoxidil.
Nem todo Desfecho Laboratorial é Substituto
Há situações específicas em que o desfecho laboratorial não é substituto do clínico, podendo ser considerado o desfecho de interesse final. Imaginem uma nova solução que repõe potássio de forma mais prática. Neste caso, ao comparar com a estratégia tradicional, não precisamos demonstrar o impacto clínico da nova reposição de potássio. O resultado do potássio é suficiente para preferirmos essa estratégia. Isso poderia ser também aplicado para duas estratégias de reposição de ferro no controle da anemia crônica. O resultado da hemoglobina pode ter o papel de desfecho final.
Observem que este conceito se aplica quando o dado laboratorial é o problema per si. Por outro lado, quando o dado laboratorial é um marcador do problema, este deve ser sempre considerado um desfecho substituto. Creatinina nunca será um desfecho final, pois o problema não é a creatinina, este é apenas um marcador de insuficiência renal. Nós não corrigimos a creatinina. Nós corrigimos a disfunção renal.
Importante salientar que não proponho que quando o desfecho laboratorial for o problema per si este deva ser sempre considerado desfecho final. Isto deve ser aplicado em casos de exceção, quando a correção do dado é necessariamente benéfica. Corrigir densidade óssea medida por exame de imagem não é necessariamente benéfica, se faz necessário o desfecho clínico.
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E sua luta.. Ciência é aliada sempre.. Bom texto
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