Ozonioterapia foi assunto de destaque na semana passada, provocado por reportagem do Fantástico. Fantástico está no seu papel de transformar fatos cotidianos em coisas sensacionais. Porém o sensacionalismo específico pode deixar nublada a visão geral. Focamos tanto em uma árvore, que perdemos a noção da floresta.
Ozonioterapia não é uma distorção em meio a uma medicina rigorosamente científica. A oxigenação de condutas fúteis é um fenômeno comum, de alta prevalência, tanto em terapias alternativas, como na medicina tradicional do ocidente.
Focar a discussão em casos caricaturais, sob a forma de "escândalo", pode gerar a impressão de algo inusitado. Mas esta história não tem nada de inusitada em se tratando de medicina. Precisamos evitar uma discussão maniqueísta, entender posturas fantasiosas como fenômenos sociais, dialogar com a sociedade a fim de promover alfabetização científica. Nosso problema não é apenas ozonioterapia.
Dito isso, vamos ao assunto específico, pois o caricatural também é interessante.
Nesta postagem, revisarei as evidências sobre ozonioterapia, colocando este tratamento no patamar de suas evidências. Em seguida, ampliaremos a discussão de como lidar com essas questões. Por fim, discutiremos: dentre o manancial de condutas médicas fantasiosas, desde homeopatia a angioplastia coronária em pessoas assintomáticas, qual a relevância da ozonioterapia.
No último domingo, a reportagem do Fantástico. Na terça, o Conselho Federal de Medicina publicou no Diário Oficial que considera a ozonioterapia um procedimento experimental. Por outro lado, o senado aprovou o projeto de lei autorizando a prescrição de ozonioterapia em todo território nacional e o SUS incluiu este tratamento no rol de práticas integrativas.
Quem está certo?
Em postagem recente coloquei que talvez pudéssemos considerar práticas integrativas que oferecem efeito benéfico simultâneo (bem estar), pois esta característica dispensa evidências probabilísticas do impacto da conduta. Desde que não substituíssem coisas importantes e o custo fosse aceitável. Este não é o caso da ozonioterapia, que se propõe a oferecer impacto em desfechos futuros (melhora de dor, cicatrização de feridas). Sendo assim, ozonioterapia requer evidências empíricas de seu benefício.
A princípio me parece coerente o posicionamento do Fantástico e do CFM contra a ozonioterapia. Por outro lado, devo reconhecer que essa minha percepção decorre do meu viés do ceticismo, que me faz encarar ozonioterapia como fantasia, antes mesmo de analisar as evidências. Por enquanto, eu tenho apenas uma crença de que ozonioterapia é uma conduta inadequada. Devo, portanto, controlar meu preconceito, dar alguns passos atrás e tentar analisar evidências externas sem influência das minhas evidências internas (crenças).
O nível de evidência da ozonioterapia
Foi ao PUBMED ... acrônimo PICO …
Ao saber que ozonioterapia "serve para tudo" não usei a palavra-chave de P (população), pois todas as populações de doenças poderiam receber essa terapia, como acontece com muitas condutas pseudocientíficas. Também dispensei a palavra-chave de O (outcome), pois se não estou restringindo a doença, fica difícil restringir o desfecho da doença. Assim, minha pesquisa no PUBMED foi baseada apenas na palavra-chave que definia I de intervenção: “ozone therapy" ou simplesmente “ozone”. Ao restringir esta pesquisa ao título, o PUBMED retornou 8.825 artigos.
Em seguida, restringi a pesquisa a Clinical Trials, pois são os ensaios clínicos que testam a eficácia questionada pelo Fantástico. Aparecem 254 ensaios clínicos publicados em revistas indexadas no PUBMED.
Achei estranho que o Conselho Federal de Medicina afirma no seu portal que a "Comissão para Avaliação de Novos Procedimentos em Medicina avaliou mais de 26.000 trabalhos sobre o tema". Mesmo que eu não tenha pesquisado em todas as bases de dados que contém revistas de menor impacto, 26.000 é muito diferente que 254. Ao pesquisar “aspirina” no título de qualquer tipo de artigo, PUBMED me retornou 16.000. Será que tem mais trabalho com ozonioterapia do que com aspirina?
Mas vamos voltar ao que importa. Uma leitura rápida do título dos 254 artigos me trouxe insights interessantes: um bom número de estudos contém no título a expressão “ensaio clínico randomizado, duplo cego” e há revistas de alto impacto publicando sobre o assunto, tais como PLOSONE, J Applied Phyisiology, Chest. Não parece ser aquele tipo de assunto publicado apenas em revistas pseudocientíficas. Os cenários clínicos mais abordados pelos artigos são de odontologia, doenças reumáticas, feridas em membros inferiores e alergia.
Qual a qualidade destes estudos?
Prosseguindo na revisão, seria impossível ler todos os 256 trabalhos. Mas existem as revisões sistemáticas da literatura, que se bem feitas nos dão noção da totalidade das evidências. Assim, restringi minha pesquisa a Systematic Reviews, resultando em 5 artigos.
Todas as 5 revisões sistemáticas concluem que não há comprovação da eficácia da ozonioterapia. Três revisões são taxativas quanto ao baixo nível de evidência dos poucos trabalhos existentes e não sugerem qualquer tendência. E duas revisões sugerem um benefício na conclusão (forçado), mas reconhecem que mais estudos são necessários para confirmar.
Merecem destaque duas revisões da Cochrane, uma sobre úlceras de membros inferiores e outra sobre prevenção de cáries. Ambas encontraram apenas poucos trabalhos, pequenos, de baixa qualidade, que não devem influenciar nosso pensamento.
Desta forma, tirei duas conclusões de minha revisão: o assunto é encarado pela comunidade científica como uma terapia que merece o benefício da dúvida, justificando a existência de linhas de pesquisa e trabalhos publicados em boas revistas. Segundo, diferentemente de outras áreas em que há trabalhos de qualidade para influenciar nosso pensamento, este é o caso em que ainda não há evidências suficientes para aumentar, nem evidências que reduzam a probabilidade da terapia ser eficaz.
Ozonioterapia é diferente de homeopatia. No primeiro, dados empíricos poucos nos informam. No segundo, há estudos de boa qualidade que sugerem ausência de benefício além do placebo.
Ozonioterapia também é diferente de condutas médicas tradicionais em que as evidências de boa qualidade sugerem ausência de benefício e por vezes algum malefício, porém continuam enraizadas: angioplastia coronária em assintomáticos, rastreamento de câncer de próstata, reposição de vitamina D.
Por exemplo, para falar de minha especialidade. Como cardiologista, sou entusiasta de um tratamento que desobstrui coronárias sem necessidade de uma traumática cirurgia (angioplastia). Porém a má indicação faz de uma conduta verdadeiramente eficaz nas situações certas se tornar um tratamento fantasioso para situações inadequadas. Estatísticas americanas mostram que apenas metade das angioplastias eletivas são claramente apropriadas. Boa parte são realizadas em pacientes estáveis (não reduz desfechos) e assintomáticos (não melhoram sintomas, pois estes não existem). Este é um tipo de situação também fantasioso, porém mais difícil de entender como fantasioso.
Embora não existam trabalhos capazes de influenciar nosso pensamento (nem para mais, nem para menos) quanto à ozonioterapia, a probalidade pré-teste deste tratamento ser eficaz é muito pequena, o que faz da probabilidade pós-teste mais baixa do que a angioplastia coronária, que começa com uma plausibilidade muito maior. Por outro lado, homeopatia tem probabilidade pré-teste muito baixa e estudos negativos, terminando na probabilidade pós-teste mais baixa do que ozonioterapia.
Dentro de um espectro de coisas que não funcionam, ozonioterapia está entre homeopatia e angioplastia. No extremo inferior, homeopatia tem probabilidade pré-teste baixa e testes negativos. No extremo superior, angioplastia tem probabilidade pré-teste alta e testes negativos. E no meio está ozonioterapia com probabilidade pré-teste baixa e sem testes que mudem essa probabilidade. Essa é uma análise espectral bayesiana.
O que significa experimental?
O CRM definiu ozonioterapia como experimental, dando a conotação de que não há comprovação científica. Corretíssimo com base em nossa revisão. Mas aí surge uma questão: o que é experimental?
Não ter comprovação científica é uma condição suficiente para uma conduta ganhar o rótulo de experimental? Se fosse assim, pintar o cabelo de azul em novembro para prevenir câncer de próstata seria uma conduta experimental.
“Experimental” é um termo lacônico, não ajuda a população entender o nível de evidência a respeito de alguma coisa. Temo que para alguns o “experimental” conote algo promissor, que frente a uma situação em que o tradicional não funcionou, possa ser uma opção.
Proponho que o termo "experimental" seja usado para condutas não comprovadas, porém com probabilidade pré-teste alta, uma boa dose de plausibilidade biológica e com trabalhos iniciais promissores.
Ao dialogar com a população sobre esses assuntos, devemos ser claros e aproveitar para gerar uma cultura científica. Eu publicaria que não há estudos de qualidade sobre ozonioterapia. Não se pode concluir nada do ponto de vista empírico. A luz do conhecimento atual, qualquer ozonioterapia estaria sendo implementada com base em crença.
Por que justamente ozonioterapia?
Compreendo que ozonioterapia seja uma reportagem mais sensacionalista e fácil para ilustrar pseudociência em um programa como o Fantástico. Afinal, não é tão fácil de explicar porque exame de próstata não previne morte por câncer ou porque desentupir uma obstrução estável não traz benefícios em desfechos cardiovasculares maiores. Portanto, entendo os editores do Fantástico, afinal este é um programa feito para ser fantástico.
Mais difícil de compreender (ou concordar) é porque a comunidade médica escolhe seletivamente o que considerar pseudocientífico. Esta seletividade não contribui verdadeiramente para a alfabetização científica da população.
Por que atacamos ozonioterapia e nos fantasiamos de científicos em outros tratamentos fúteis, alguns mais agressivos do que água ozonizada. Ou por que o CRM se posiciona contra ozonioterapia e ao mesmo tempo reconhece como especialidade médica a prática de oferecer soluções hiper diluídas (a ponto de não sobrar nenhuma molécula) sob a premissa de benefício futuro, sem demonstração de benefício em trabalhos com alto nível de evidência?
A discussão sobre uma fantasia específica que não faz parte nossa prática clínica deve servir de estímulo para avaliarmos nossas próprias práticas. Cada um de nós, em nossas próprias especialidades, deve fazer um exercício autocrítico. Quando estamos fantasiando os benefícios de exames de rastreamento, superestimando o benefício de tratamentos, sem levar em conta o custo ao paciente, prognosticando as coisas de forma tendenciosa e univariada? O anticientífico permeia todas as áreas, em inúmeras situações.
O que seria pior, rastrear câncer de próstata, não salvar vidas e provocar impotências e incontinências? Realizar angioplastia coronária em situação inapropriada? Submeter o paciente a uma sessão fútil de quimioterapia, mas de alto custo? Ou tratar qualquer coisa com água ozonizada? É difícil dizer o que é pior.
Há argumentos de que terapias alternativas fazem pessoas deixar de realizar terapias tradicionais. Eu gostaria de ver evidências epidemiológicas do fenômeno da troca de terapias importantes por ozonioterapia. Estes são casos anedóticos ou temos evidências epidemiológicas de uma prevalência substancial do problema?
Medicina tem muito de pseudocientífico e isso não ocorre apenas nas terapias complementares, alternativas ou integrativas, como a homeopatia ou ozonioterapia. Isso ocorre com condutas sofisticadas, como rotinas cardiológicas ou oncológicas, para falar nos dois principais grupos de doenças no mundo civilizado.
Ozonioterapia é um pseudocientífico caricatural. Temo que a atenção demasiada no caricatural ofusque um fenômeno mais amplo e normalize nossas tradicionais terapias oxigenadas e disfarçadas de científicas.
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