domingo, 28 de fevereiro de 2010

Senado Americano versus Rosiglitazona








Na semana que passou, o assunto mais discutido no meio cardiológico foi o Relatório do senado americano sobre o caso da Rosiglitazona. Após dois anos de investigação, os senadores Max Baucus e Chuck Grassley concluíram que o Avandia (GlaxoSmithKline) deve ser retirado do mercado. Este hipoglicemiante oral, agonista do receptor PPAR, aumenta a sensibilidade à insulina em pacientes com diabetes tipo 2, tornando-se um blockbuster de vendas no mundo, a partir de sua comercialização em 1999. No entanto, em 2007 surgiram evidências de que a droga aumenta a incidência de infarto agudo do miocárdio. A investigação do senado mostrou que dois especialistas do FDA haviam recomendado que o Avandia fosse retirado do mercado, porém este posicionamento não deve ter agradado à Diretora deste órgão, Janet Woodcock, que ordenou a formação de outro comitê para avaliar a questão. O senado americano considera um conflito de interesse o fato do mesmo grupo que libera uma droga para comercialização, avalia se a mesma deve permanecer no mercado quando surgem novas evidências. Claro, os indivíduos que liberaram tendem a resistir a evidências indicando que sua decisão pode ter sido precipitada. No mesmo tom enfático, os senadores criticaram a postura da GlaxoSmithKline em tentar “intimidar médicos de opinião independente e minimizar o risco cardiovascular da Rosiglitazona”, e até mesmo consideraram antiético o ensaio clínico TIDE (em andamento), o qual randomiza pacientes diabéticos de alto risco cardiovascular para o uso da droga.

Para entender melhor tudo isso, precisamos revisar a história com base em evidênicas.

A polêmica começa em 2007 quanto o renomado cardiologista Steve Nissen, da Cleveland Clinic, publica no New England Journal of Medicine uma metaanálise de 42 ensaios clínicos randomizados, indicando que a Rosiglitazona aumenta o risco de infarto agudo do miocárdio em pacientes diabéticos (risco relativo = 1.43; 95% IC, 1.03 - 1.98; P = 0.03). Esta meta-análise é polêmica não só por sua conclusão, mas pelos fatos que envolveram sua publicação. Em um episódio escandaloso, Steven Haffner, um dos revisores do trabalho submetido ao NEJM, simplesmente entregou o estudo a representantes da GlaxoSmithKline. Estes marcaram uma reunião com Steve Nissen, que com receio de ser intimidado gravou o teor da conversa.

Mas voltando às evidências: algumas críticas foram feitas à meta-análise pelo Editorial e por Letters to the Editor. Por exemplo, falta de acesso aos dados de pacientes individuais, falta de uniformidade entre os estudos na definição de eventos, critérios de exclusão de alguns estudos da meta-análise e algumas escolhas de métodos estatísticos. Estas limitações são verdadeiras, porém a meu ver representam características inerentes a meta-análises, não problemas específicos deste estudo. Enquanto meta-análise, a evidência é de qualidade satisfatória. Mas como já comentamos em postagem passada, meta-análise representa um nível de evidência menos robusto do que um grande ensaio clínico randomizado.
Passados dois anos, foi publicado no Lancet, o ensaio clínico RECORD, que randomizou 4.447 pacientes para Rosiglitazone ou metformina/sulfonilureia. Este estudo não mostrou aumento na incidência do desfecho primário, definido como o combinado de morte cardiovascular ou hospitalização cardiovascular. O resultado é favorável à Rosiglitazona, porém devemos perceber que infarto do miocárdico foi a principal preocupação gerada pela meta-análise e este desfecho não foi definido como primário, nem o estudo tinha poder estatístico para mostrar aumento da incidência deste evento isoladamente. Na verdade, houve uma tendência a aumento de infarto e aumento estatisticamente significante de internamento por insuficiência cardíaca. Portanto, a ausência de evidência de efeito deletério no desfecho primário do estudo RECORD não representa evidência de ausência de efeito deletério. Ainda é uma questão em aberto.

Então como proceder?

De acordo com o famoso ensaio clínico UKPDS, da década de 90, drogas como Metformina ou Sulfonilureias não só têm efeito hipoglicemiante, como também reduzem eventos cardiovasculares (mais consistente com Metformina). Este é o tipo de evidência ideal para indicar a utilização de uma droga. Porém o FDA liberou a Rosiglitazona para comercialização tendo como base apenas benefício no desfecho substituto ação hipoglicemiante. Mesmo antes da polêmica meta-análise, por que prescrever uma droga nova que não sabemos o efeito clínico, em lugar de drogas que já sabemos que reduzem eventos clínicos?

Dados americanos mostram que médicos prescrevem Avandia como primeira escolha, associada a Metformina ou associada a Sulfonilureia. Errado ser primeira escolha e errado preferir glitazona/metformina ou glitazona/sulfonilureia, ao invés de metformina/sulfonilureia (estas últimas com benéficio clínico comprovado). O FDA liberou uma droga tendo como base um fraco nível de evidência e os médicos prescreveram uma droga sem eficácia clínica comprovada. A indicação já era fragilizada desde o início, então quando surge um indício de que pode ser deletéria, fica ainda mais questionável a prescrição de Avandia. É algo semelhante à associação de Ezetimibe e Sinvastatina (Vytorin). Não se justifica prescrever Vytorin ao invés de uma estatina potente. Vytorin não tem evidência clínica, enquanto a segunda tem benefício clínico comprovado.

Se o FDA não tivesse liberado a droga apenas com base em seu efeito hipoglicemiante, teria evitado um grande problema. Do ponto de vista clínico, o potencial malefício da droga ainda é uma questão indefinida, talvez o ensaio clínico TIDE traga uma resposta definitiva. Do ponto de vista político, deixo para cada um julgar se a droga deve ser suspensa do mercado.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Conselho Federal de Medicina Baseado em Evidências

O CFM revisou recentemente sua resolução referente à prática da "Medicina Ortomolecular", mostrando uma visão baseada em evidências e proibindo uma série de procedimentos relacionados a esta especialidade. Vejam a resolução:

São destituídos de comprovação científica suficiente quanto ao benefício para o ser humano sadio ou doente, e por essa razão têm vedados o uso e divulgação no exercício da Medicina, os seguintes procedimentos da prática ortomolecular e biomolecular, diagnósticos ou terapêuticos, que empregam:
I) Para a prevenção primária e secundária, doses de vitaminas, proteínas, sais minerais e lipídios que não respeitem os limites de segurança (megadoses), de acordo com as normas nacionais e internacionais e os critérios adotados no art. 5º;
II) EDTA (ácido etilenodiaminotetracético) para remoção de metais tóxicos fora do contexto das intoxicações agudas e crônicas;
III) O EDTA e a procaína como terapia antienvelhecimento, anticâncer, antiarteriosclerose ou voltadas para patologias crônicas degenerativas;
IV) Análise do tecido capilar fora do contexto do diagnóstico de contaminação e/ou intoxicação por metais tóxicos;
V) Antioxidantes para melhorar o prognóstico de pacientes com doenças agudas, observadas as situações expressas no art. 5º;
VI) Antioxidantes que interfiram no mecanismo de ação da quimioterapia e da radioterapia no tratamento de pacientes com câncer;
VII) Quaisquer terapias antienvelhecimento, anticâncer, antiarteriosclerose ou voltadas para doenças crônicas degenerativas, exceto nas situações de deficiências diagnosticadas cuja reposição mostra evidências de benefícios cientificamente comprovados.
Art. 10 A indicação ou prescrição de medida terapêutica da prática ortomolecular ou biomolecular é de exclusiva competência e responsabilidade do médico.

Parlamento Baseado em Evidências



Em postagem anterior, apresentamos nossa visão crítica a respeito da Homeopatia. Este assunto é trazido novamente a tona por uma recente notícia da Inglaterra. O Parlamento Britânico (House of Commons) revisou extensivamente as evidências científicas a respeito do tratamento homeopático, concluindo que este tem efeito igual ao placebo. Baseada nestas evidências, o parlamento fez algumas recomendações interessantes: primeiro, o National Health Service (SUS inglês) não deve mais pagar tratamento com base homeopática; segundo, o Medicines and Healthcare Regulatory Agency (FDA inglês) não deve mais registrar fórmulas homeopáticas como medicamentos e não deve permitir que as bulas de remédios homeopáticos transmitam informações falsas a respeito de eficácia. Deve estar escrito na bula que os remédios homeopáticos não passam de pílulas ou gotas de açúcar; terceiro, não há mais justificativas em financiar novos ensaios clínicos sobre homeopatia. A questão não é ausência de evidências. Já há evidências suficientes mostrando ausência de benefício. No site do House of Commons está a excelente revisão das evidências feitas pelos parlamentares (ou assessores com formação adequada). A principal evidência é trazida pela revisão sistemática citada em nossa postagem anterior, publicada em 2005 no Lancet por Linge et al., que conclui pela falta de eficácia da homeopatia.

Ao mesmo tempo em que o documento parlamentar reconhece que o efeito placebo da homeopatia pode trazer algum benefício aos pacientes, este considera antiético prescrever placebo sob a falsa premissa de eficácia terapêutica:

I struggle with the notion that it is ethical to prescribe placebos. I am not saying that it does not happen; I think that a number of the ways in which people behave or prescribe could be described as prescribing placebos but, in principle, if you prescribe a drug which you know to have no clinical efficacy on a basis which is essentially dishonest with a patient, I personally feel that that is unethical behavior.

When doctors prescribe placebos, they risk damaging the trust that exists between them and their patients

Mais uma notícia que nos deixa otimistas em relação à evolução médica baseada em evidências. Aparentemente os parlamentares britânicos não são omissos e trabalham. Deviam servir de exemplo para nossos parlamentares.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Fim do Determinismo Genético

O Projeto Genoma gerou grande expectativa de evolução da nossa capacidade de prognosticar o surgimento e evolução de doenças. Esta expectativa tem sido frustrada por evidências contrárias ao determinismo genético. Acaba de ser publicado no Journal of the American Medical Association o mais importante estudo que avalia o valor prognóstico da genética na predição de eventos cardiovasculares em indivíduos previamente saudáveis: Association Between a Literature-Based Genetic Risk Score and Cardiovascular Events in Women, por Ridker et al. Este é um estudo de coorte prospectiva que acompanhou por 12 anos 19.000 mulheres originalmente saudáveis, registrando a incidência de eventos cardiovasculares (infarto, AVC, revascularização ou morte).

Considero este o mais importante trabalho, pois é o primeiro a avaliar conjuntamente todos os potencias polimorfismos previamente associados a eventos cardiovasculares (ou a fatores de risco para eventos cardiovasculares). Esta avaliação conjunta foi feita através de escores genéticos. Utilizando o banco de dados do National Human Genome Research Institute, os autores criaram um escore que leva em consideração todos os 101 polimorfismos associados a eventos cardiovasculares ou fenótipos intermediários (fatores de risco). Um segundo escore foi gerado utilizando apenas os 12 polimorfismos associados a eventos cardiovasculares. Houve associação dos escores com eventos cardiovasculares, porém após ajuste para fatores de risco (fenótipos intermediários), a informação genética não permaneceu preditora independente. Da mesma forma, o escore não aumentou a capacidade discriminatória (estatística-C), nem promoveu reclassificação significativa quando comparada a escores clínicos de predição de risco.

A idéia do determinismo genético levava crer que o acesso a informações de gens teria grande valor preditor de eventos clínicos. No entanto, percebe-se hoje que a avaliação de fenótipos intermediários (colesterol, pressão arterial, glicemia, etc) reflete a integração da genética com fatores ambientais, resultando em maior capacidade preditora do que a avaliação genética isolada. Outro dado interessante é o fato da história familiar ter melhor poder preditor do que a análise genética, indicando que a primeira reflete não só similaridades genéticas entre familiares, mas também comportamentais e ambientais.

A tecnologia avança e novos biomarcadores surgem com potencial prognóstico. Mas não basta o potencial da plausibilidade biológica, a palavra final está nas evidência científicas. Do ponto de vista prognóstico, as evidências definitivas vêm de estudos de coorte prospectiva, onde o novo biomarcador é testado não só do ponto de vista de significância estatística, mas também é avaliada a questão da relevância clínica (valor incremental – discriminação e reclassificação). Este tipo de evidência indica que não há utilidade clínica em utilizar genética para predição de um primeiro evento cardiovascular.

Este é mais um exemplo de que o modelo científico determinístico não explica todos os fenômenos biológicos. Estes são mais complexos do que o pensamento cartesiano é capaz de perceber. A evolução científica depende da mudança do pensamento para um modelo não determinístico.

Aderência a Recomendações Médicas

Promover uma boa aderência de pacientes a mudanças de hábito de vida ou a terapias específicas não é uma tarefa fácil. Uma revisão sistemática publicada no último número dos Archives of Internal Medicine considerou estudos que testaram a hipótese de que apresentar ao paciente o cálculo de seu risco cardiovascular melhora a aderência às recomendações médicas. A maioria dos estudos foram ensaios clínicos randomizados, tendo comprovado benefício da estratégia na percepção do paciente quanto a sua saúde e aumento do desejo de aderir a terapia; porém a mudança no perfil de risco do paciente foi pequena. Por um lado estas evidências sugerem que devemos apresentar claramente ao paciente seu cálculo de risco, por outro lado, isso está longe de ser suficiente.

Esses dados coincidem com nossa percepção de que conversa de consultório (ou campanhas educacionais) pouco influencia a força de vontade das pessoas para aderir a condutas preventivas. Temos que pensar em outras estratégias, discutir mais profundamente como influenciar os pacientes. A publicação dos Archives of Internal Medicine é um passo inicial para esta discussão. Convido todos a colocar nos comentários desta postagem sugestões de novas estratégias de convencimento dos pacientes.

Câncer de Mama e Triagem Precoce



No post “Quando a Evidência é Impopular” comentamos sobre a publicação do US Preventive Task Force, que recomenda contra mamografia de rotina em mulheres com menos de 50 anos. Voltamos a esse assunto, pois o último número do Annals of Internal Medicine publicou as Cartas ao Editor que dizem respeito a este assunto. Interessante notar que a resposta da comunidade científica às recomendações do USPTF foi bem diferente da comunidade assistencialista. Enquanto na imprensa leiga médicos radiologistas e mastologistas criticaram agressivamente a contra-indicação de mamografia rotineira abaixo de 50 anos, as Cartas ao Editor reforçaram a recomendação do Task Force. As críticas apresentadas foram de que a contra-indicação da mamografia deveria ter sido mais enfática: enquanto o Task Force foi claro em afirmar que o benefício da mamografia é pequeno, faltou ênfase nos efeitos negativos do screening precoce.


The Task Force now recommends against breast screening in women aged 40 to 49 years, but the harms may outweigh the benefits in all age groups. An effect of 15% and an overdiagnosis rate of 30% mean that for every 2000 women invited for screening throughout 10 years, 1 woman will have her life prolonged and 10 healthy women, who would not have breast cancer diagnosed if there had not been screening, will be treated unnecessarily. Furthermore, about 1000 women in the United States will have had a false-positive diagnosis. The psychological strain until one knows whether it was cancer can be severe. The harms caused by overdiagnosis are lifelong.


Neste mesmo número do Annals os Editores escreveram o artigo intitulado When Evidence Collides With Anecdote, Politics, and Emotion: Breast Cancer Screening.

The outcry over the Task Force's most recent recommendation shocked many. Over the past decade, Annals has peer-reviewed and published more than 50 USPSTF recommendation statements and background reviews. None of the previous guidelines grabbed the public's attention as much as the Task Force's recommendation against “routine screening mammography in women aged 40 to 49 years.”


It is difficult to be dispassionate about breast cancer. Nearly everyone knows (or is) someone whose breast cancer was found on a mammogram. Many perceive that the mammogram “saved a life.” Unfortunately, only a fraction of abnormalities initially detected on mammography and subsequently treated truly represents a life saved rather than unnecessary or premature treatment. Sadly, it is also true that many women who have cancer detected by screening succumb to the disease despite early detection and treatment.


The initial reaction to the Task Force recommendations might have been less vehement had the potential negative consequences of alternative recommendations also been considered.


Percebemos que a reação da comunidade científica (baseada em evidências) foi bastante favorável à principal conclusão do Task Force. O que presenciamos na imprensa leiga foi apenas uma desesperada reação (não baseada em evidências) baseada em conflitos de interesse e Psicologia do Médico Ativo.

A assim a medicina vai evoluindo. Acredito que a maior evolução da medicina do novo milênio será no pensamento médico, mais do que em tecnologia. Essa é minha visão otimista.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Porque Médicos Rejeitam Evidências Científicas?



Por diversas vezes comentamos neste Blog sobre situações em que precisamos tomar decisões clínicas na ausência de estudos que mostrem qual o melhor caminho. Nesta postagem comentaremos de um fenômeno um pouco diverso: na presença de evidências, muitas vezes os médicos tomam a decisão contrária.

Recentemente o Wall Street Journal publicou uma reportagem crítica a respeito da baixa influência que o estudo Courage tem tido sobre a decisão médica de cardiologistas americanos. O Courage é um conhecido ensaio clínico, publicado em 2007 no New England Journal of Medicine, o qual randomizou 2.200 pacientes com doença coronariana estável para tratamento clínico ou angioplastia coronária, demonstrando que angioplastia não reduz incidência de infarto ou morte cardiovascular quando comparado à estratégia conservadora. Vale salientar que o grupo angioplastia também recebeu tratamento medicamentoso e controle de fatores de risco.

A vantagem demonstrada com o tratamento intervencionista foi melhora dos sintomas de angina, ou seja, melhora em qualidade de vida. Desta forma, angioplastia tende a ser útil em pacientes com doença coronariana estável que tenham qualidade de vida afetada por angina limitante. Por outro lado, há muitos pacientes portadores de doença coronariana que são assintomáticos ou oligossintomáticos. Estes ficarão bem com o tratamento clínico, pois não desfrutariam do benefício da angioplastia. No entanto, na prática estamos cansados de ver indicação de angioplastia para pacientes estáveis, com isquemia silenciosa. Aquela velha receita de bolo: o médico solicita um teste ergométrico para um paciente assintomático, cujo resultado é positivo para isquemia. Daí o paciente é encaminhado para cateterismo cardíaco que mostra uma estenose coronária. Daí o paciente recebe sua angioplastia com um moderno stent coronário. Dias depois o paciente tem alta hospitalar, feliz por ter tido “sua vida salva pelo procedimento”. Mal sabe ele que este procedimento não contribuiu positivamente em nada.

Evidências como a do estudo Courage (e outras subseqüentes, BARI-2) deveriam reduzir o número de angioplastias desnecessárias como no exemplo acima, porém isso não tem sido observado de forma consistente. A lúcida reportagem do Wall Street Journal começa lembrando a simplicidade do paradigma da medicina baseada em evidências.

It sounds like such a simple concept: Study different medical treatments and figure out which delivers the best results at the cheapest cost, giving patients the most effective care.
Depois faz a constatação:
Most cardiologists haven't voluntarily incorporated the Courage criteria into their practice. U.S. stent implants declined 13% in the month after the study's release. But as the headlines about Courage faded, stentings soon began to rise again, and are now back at peak levels of about one million a year, according to hospital surveyor Millennium Research Group - Veja gráfico.

Evitar o procedimento desnecessário traz vantagens: previne o estresse psíquico relacionado ao internamento; evita complicações comuns destes procedimentos, tais como grandes hematomas, alguns com necessidade de transfusão, agressão renal relacionada ao contraste; sem falar na economiza de recursos do sistema de saúde.

Sanjay Kaul, a prominent cardiologist and researcher at Cedars-Sinai Heart Institute in Los Angeles, estimates that the U.S. could save $5 billion of the $15 billion it spends on stent procedures each year if all doctors followed Courage's guidance—that is, putting certain heart patients on generic drugs and turning to stents only if the pains persists.

Como já citamos em post anterior, até Obama já falou isso quando de sua visita ao American Medical Association: "doctors may be placing a stent when adjusting a patient’s drugs and medical management is equally effective – driving up costs without improving a patient’s health.”

Mas porque será que alguns médicos rejeitam evidências de ótima qualidade científica? Para mim, há três razões sociológicas.

A primeira é a Mentalidade do Médico Ativo. Esta forma de pensamento leva o médico a se sentir bem quando indica um tratamento – seja benéfico ou não. Prescrever um remédio ou indicar um procedimento conota que o médico está proporcionando um benefício ao paciente. Não importa as evidências, o que importa é o marketing. Ou seja, o médico aceita mais facilmente evidências positivas do que evidências negativas. O bom é prescrever, principalmente quando se trata de uma novidade.

Since the 1970s, the "evidence-based medicine" movement has urged doctors to use studies like Courage as the best way to decide how to treat patients. Many studies have had a substantial impact, especially those that boost a new therapy and its maker. Examples include studies that found benefits from cholesterol-lowering statins. But studies like Courage—that find an already-popular and a lucrative treatment can merely be unnecessary, but not harmful—have rarely altered medical practice to the same degree.

A segunda razão é o Apego ao Paradigma Mecanístico. Sabemos que os sistemas biológicos são complexos, o que faz raciocínios cartesianos serem reducionistas, ou seja, incapazes de prever com acurácia qual conduta será benéfica ou maléfica. Por isso, precisamos de evidências clínicas. Mas há aqueles que insistem em pensar como encanadores, ou seja, desentupindo uma artéria o paciente vai necessariamente melhorar.

Ajay Kirtane, a cardiologist at Columbia University, believes that American expectations about medical "fixes" makes it hard to follow recommendations such as Courage's.

Em terceiro lugar, questões de conflito de interesse muitas vezes dificultam a aceitação de evidências científicas, tal como descrito na reportagem:

Interventional cardiologists, on the other hand, have a financial incentive to use stents—they receive about $900 per stenting procedure, roughly nine times the amount they get for an office visit. Over the past 10 years, improvements in stents have coincided with an explosion in their use, as the hour-long procedure edged out bypass surgery as the preferred treatment for clogged arteries in all but the sickest patients. The average cardiologist who installs stents made about $500,000 in 2008, up 22% from 10 years prior, adjusted for inflation, according to the American Medical Group Association.

Conflitos de interesse têm gerado argumentos cientificamente limitados contra o estudo Courage, porém às vezes convincentes para uma platéia menos atenta. Um dos argumentos mais comuns é aquele que sugere serem os pacientes do estudo Courage pouco graves. Essa idéia é facilmente rebatida quando se percebe que 1/3 dos pacientes tinham comprometimento triarterial e que o resultado do estudo é consistente em subgrupos de diferente gravidade – vide Circulation CV Quality and Outcomes. Agora, pacientes demasiadamente grave realmente não foram avaliados pelo Courage, pois estes não se adéquam ao tratamento clínico. O estudo é voltado para pacientes estáveis, o que representa uma grande parcela dos coronarianos.

Angioplastia é um procedimento de excelência, cuja indicação deve se basear em raciocínio clínico de excelência. Não em receitas de bolo baseadas em Mentalidade do Médico Ativo, Apego ao Paradigma Mecanístico ou conflitos de interesse. A lucidez do repórter do Wall Street Journal deve servir de wake-up call para a comunidade médica.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Revisão Metodológica: Incidence Rate, Hazard Ratio


Para exemplificar esta questão utilizaremos o ensaio clínico JUPITER, que randomizou pacientes para uso de rosuvastatina ou placebo, mostrando que a droga reduz eventos cardiovasculares em pacientes de risco intermediário, com LDL “normal”. Observem a frase que mostra o resultado principal deste estudo: The rates of the primary end point were 0.77 and 1.36 per 100 person-years of follow-up in the rosuvastatin and placebo groups, respectively (hazard ratio for rosuvastatin, 0.56; 95% confidence interval [CI], 0.46 to 0.69).

À primeira vista esta frase nos parece estranha, pois normalmente os ensaios clínicos relatam a incidência simples de eventos, que é representada por uma fração para cada grupo. Por exemplo, no estudo JUPITER seria droga 1.6% vs. placebo 2.8% - mais intuitivo para compreender. No entanto, a forma utilizada pelo estudo é a taxa de incidência (incidence rate), que descreve o número de eventos dividido por unidades de tempo. Ou seja, ao invés de relatar o número de eventos/número de pessoas em cada grupo, os autores relatam o número de eventos/número de unidades de tempo de acompanhamento. O denominador da taxa de incidência é o número de pessoas-ano. Se um estudo tem 5 pessoas e cada pessoa foi acompanhada por 10 anos, no denominador será 50 pessoas-ano, ao invés de 5 pessoas.

A vantagem desta metodologia é levar em conta não só o número de pessoas, mas também o tempo que cada um foi acompanhado. Esta técnica é mais útil quando não há uniformidade de tempo de acompanhamento entre os pacientes. E foi justamente isso que ocorreu no estudo JUPITER, pois este foi interrompido precocemente e muitos pacientes não tinham sido acompanhados o tempo inicialmente planejado.

Hipoteticamente, se no grupo placebo os pacientes tivessem sido acompanhados por mais tempo do que no grupo droga, a incidência simples de eventos no primeiro poderia ser maior simplesmente porque os pacientes ficaram expostos mais tempo. Porém se o resultado é relatado em taxa de incidência, se previne este potencial viés.

A taxa de incidência é também chamada de hazard. O hazard do grupo droga dividido pelo hazard do grupo placebo resulta aproximadamente no hazard ratio, medida que estamos acostumados a ler nos ensaios clínicos, cuja interpretação é parecida com o risco relativo, só que leva em conta o tempo que cada paciente foi acompanhado.

Agora fica mais fácil para entender o que os autores do JUPITER quiseram dizer com 0.77 and 1.36 per 100 person-years of follow-up. Só mais um detalhe: ao invés de usar per person-years, eles usaram per 100 person-years - da mesma forma que se usa percentual (a cada 100 pessoas).

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Medicina Baseada em Evidência na China

No último número do Lancet foi publicado um Comentário por Wang et al intitulado Evidence-Based Medicine in China. Interessante notar que na China há várias organizações ligadas a medicina baseada em evidências (MBE), que desenvolvem programas apoiados pelo Ministério da Educação para disseminação do paradigma e de técnicas relacionadas à aplicação de evidência na prática clínica. Hoje, MBE é parte obrigatória do currículo de qualquer faculdade médica da China. Até mesmo a medicina tradicional chinesa começa a interagir com a MBE. Isto é evidenciado pelo surgimento de ensaios clínicos voltados para testar terapias seculares, porém de eficácia ainda não demonstrada cientificamente.

Pelo visto a China está mais engajada com a MBE do que o Brasil. Se uma medicina tão embasada em tradição e mito pode estabelecer uma relação sinérgica com a ciência, nós que praticamos a medicina ocidental não podemos perder este bonde da história.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Cirurgia Bariátrica: Qual o Nível de Evidência?



Publicado no último número do Journal of American Medical Association o primeiro ensaio clínico randomizado avaliando benefício da cirurgia de obesidade em adolescentes. Trata-se de um pequeno estudo, no qual 50 pacientes entre 14 - 18 anos e IMC médio de 42 kg/m2 foram randomizados para cirurgia endoscópica de bandagem gástrica ou mudança de hábitos de vida. Após dois anos, houve significativo benefício no desfecho primário, pré-definido como perda de peso: o grupo cirúrgico apresentou redução média de peso de 35 Kg, comparado a apenas 3 Kg no grupo controle. Diferença enorme.

O estudo não mostrou diferença entre os grupos quanto a redução de pressão arterial, parâmetros metabólicos, ou mesmo qualidade de vida. Porém estes eram objetivos secundários, sem tamanho amostral adequado para testar estas hipóteses.

Um resultado secundário que merece destaque é o fato de 33% dos pacientes cirúrgicos terem necessitado de nova cirurgia. Este dado gera dúvida em relação ao benefício líquido do procedimento.

Em resumo, a cirurgia reduz mais peso do que o tratamento convencional. Ponto. Peso é um desfecho substituto, não garante que há benefício em desfechos maiores, como incidência de eventos cardiovasculares ou morte. Porém já é um começo. É bom perceber que começam a surgir resultados de ensaios clínicos a respeito de cirurgia bariátrica, pois esta é uma lacuna da literatura médica.

Em adultos ou adolescentes, os ensaios clínicos se limitam a demonstrar perda de peso e benefício metabólico, mas não se sabe sobre impacto em desfechos mais definitivos.

Na prática clínica, todos nós conhecemos pacientes que experimentaram significativa perda de peso com a cirurgia bariátrica e ganho impressionante em qualidade de vida. Por outro lado, acho que todos nós lembramos de pelo menos um caso de paciente com obesidade mórbida que experimentou complicação grave no pós-operatório da cirurgia. Sobrevivendo o período de complicações, existe plausibilidade para redução de mortalidade, pois muitas das conseqüências negativas da obesidade revertem com a perda de peso. Por outro lado, ficamos imaginando as conseqüências nutricionais de longo prazo da cirurgia.

Por tudo isso, só ensaios clínicos randomizados e adequados para testar desfechos clínicos maiores serão capazes de definir a questão.

Por outro lado, ensaios clínicos já comprovam melhora da qualidade de vida de adultos. Essa é uma justificativa razoável para a indicação do procedimento na prática clínica, antes mesmo de demonstrado benefício em desfechos maiores. Justificativa razoável desde que o paciente tenha consciência de que o benefício que desfrutará em qualidade de vida pode estar associado a benefício clínico ou a malefício clínico. Não se sabe. A escolha deve levar em conta esta incerteza.

We Are the World 25



Há dois dias o vídeo We Are the World 25 foi apresentado na abertura das Olimpíadas de Inverno em Vancourver. O vídeo gravado por famosos artistas é uma nova versão da música We Are the World, que foi composta por Michael Jackson e Lionel Richie há 25 anos atrás. Hoje o intuito é ajudar o Haiti. Emocionante, principalmente em ver as crianças haitianas cantando e dançando em meio à catástrofe. Nem tudo precisa ser baseado em evidências.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Recesso de Carnaval

Como carnaval e medicina baseada em evidências não combinam, este Blog entrará em recesso durante o feriado prolongado.

Para quem quiser curtir um carnaval baseado em evidências, recomendo a leitura de alguns artigos especiais que Barral divulgou em seu Blog durante a fase pré-carnavalesca, sobre efeitos do álcool vs. refrigerante, imunologia da ressaca, e até rebollation. Este último sem evidências.

Bom carnaval a todos.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A Relação Médico - Indústria Farmacêutica

Não há dúvida da importância da indústria farmacêutica do desenvolvimento, avaliação e disponibilização de novos medicamentos. Parte da evolução médica e do financiamento de pesquisa em centros universitários se deve à indústria farmacêutica; devemos reconhecer este inestimável valor. Por outro lado, não parece saudável o tipo de relação que a indústria estabelece com os médicos. Neste ponto, a indústria exerce um papel que vai de encontro ao paradigma da medicina baseada em evidências.

A maioria dos médicos recebe presentes/vantagens da indústria, o que direta ou indiretamente influencia na prescrição médica. Artigo publicado no New England Journal of Medicine em 2007 mostra que 94% dos médicos americanos recebem algum tipo de incentivo da indústria, sendo cardiologia uma das especialidades em que este tipo de troca de favores está mais presente. Em segundo lugar, é patente que os argumentos da indústria a favor de seus medicamentos são enviesados e fogem em grande parte das vezes a uma análise científica correta. Porém há um certo tipo de ingenuidade ou conflito de interesse dos médicos, o que faz com que boa parte aceite alguns argumentos questionáveis da indústria. Por fim, existem os “formadores de opinião”, pagos pela indústria para emitir sua impressão a respeitos de condutas médicas. Em relação a esta questão, recomendo a leitura do artigo “Key opinion leaders: independent experts or drug representatives in disguise?” Há evidências de que a relação com a indústria enviesa a opinião do médico. Em 2009 foi publicado no American Heart Journal um trabalho mostrando que 35% dos médicos que tinham relação com indústria de stents apresentaram opinião crítica em relação ao estudo Courage (que foi desfavorável à angioplastia), comparado a apenas 15% de médicos clínicos sem relação com a indústria.

Hoje conheci um interessante Blog intitulado Campanha Alerta, cuja missão é discutir de forma crítica a influência negativa da indústria farmacêutica na comunidade médica. Recomendo a leitura do artigo que mostra o fundamento da missão daquele Blog, que é encabeçado por Dr. Guilherme Brauner Barcellos, diretor do Sindicato dos Médicos do RS. Parabéns pela iniciativa e qualidade das postagens.

Muitos justificam o íntimo vínculo da indústria farmacêutica pela necessidade de financiamento dos eventos de educação continuada. Em parte isso é uma justificativa. Porém vale salientar que há alternativas. Por exemplo, o I Congresso de Medicina Hospitalar, coordenado por Guilherme, foi um sucesso e não obteve financiamento da indústria farmacêutica ou de equipamentos. Com certeza, dá mais de trabalho, mas vale pela imparcialidade.

Acredito que a postura da indústria poderia ser melhor, porém isso em parte é justificado pela realidade do capitalismo. Por outro lado, não se justifica que os médicos permitam que seus pensamentos sejam manipulados pela indústria, cabendo a nós dar tom adequado à relação com a indústria. Ou seja, este tom deve ser gerido pelo paradigma da medicina baseada em evidências e sem conflitos de interesse. Nós é que temos de dominar a forma de relação.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A Polêmica Meta-Análise da Gordura Saturada


Recentemente Dr. Barral festejou em seu Blog a “descriminilização da manteiga” ao citar uma recém publicada meta-análise no American Journal of Clinical Nutrition, na qual um conjunto de 21 trabalhos não sugere benefício da dieta pobre em gordura saturada na prevenção de doença coronariana ou AVC. Nas últimas semanas este trabalho ganhou evidência na imprensa leiga, como mostra reportagem na Folha de São Paulo. Interessante observar as mais diversas reações. Há aqueles que comemoram a notícia, outros ficam atordoados e há os “especialistas” que simplesmente dizem que o estudo não muda as recomendações, sem justificar suas conclusões. Desta forma, precisamos analisar criteriosamente o nível de evidência deste estudo.

A primeira característica que chama atenção é o fato de ser uma meta-análise de 21 estudos observacionais. Ou seja, não se trata de ensaios clínicos randomizados, o tipo de evidência considerada definitiva. Além dos desenhos observacionais serem mais vulneráveis a efeitos de confusão, este desenho é ainda mais limitado em estudos de dieta, pois esta é relatada pelos voluntários através de questionários, sem o controle que um ensaio clínico ofereceria. Apesar destas limitações, temos que reconhecer a consistência do resultado neutro da dieta: 19 dos 21 estudos não mostram associação entre dieta e incidência de eventos. O ajuste estatístico para o valor do colesterol poderia artificialmente ter feito desaparecer o efeito da dieta, porém este só foi realizado em metade dos trabalhos. Sendo assim, consideramos que o estudo tem limitações, mas esta é uma evidência que no mínimo deve despertar um questionamento.

A resposta ideal virá de ensaios clínicos randomizados. Há 4 ensaios clínicos que randomizaram indivíduos para dieta pobre em gordura ou dieta controle, sendo que 3 deles foram realizados na década em 70, de pequeno tamanho amostral, sugerindo benefício da dieta (Circulation 1969, Circulation 1970, Int J Epidemiology 1979), enquanto o maior e mais recente estudo não confirma o benefício (8000 pacientes, Lancet 1989). Portanto, no mundo dos ensaios clínicos, esta questão não está resolvida. Devemos lembrar que todos estes trabalhos foram realizados antes da era das estatinas, e hoje o efeito da dieta pode ser até menos significativa quando pessoas com dislipidemia estão em uso de drogas redutoras de colesterol.

Se por um lado não podemos considerar o resultado da meta-análise como definitivo, por outro lado, esta é uma evidência provocativa, que desperta nossa percepção para a realidade de que não temos resposta exata a respeito da questão. Precisamos de moderação: devemos moderar na ingestão de gordura saturada; e ao mesmo tempo devemos moderar na intensidade das recomendações, evitando mantras que repetimos diariamente aos pacientes, sem nem mesmo questionar se estamos plenamente embasados em evidências. A comunidade médica deve estimular a busca de mais evidências a respeito de hábitos de vida.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O Paradoxo da Obesidade



É de conhecimento geral que a obesidade é um fator de risco para o desenvolvimento de doença cardiovascular em indivíduos previamente saudáveis. Esse pensamento tem sido extrapolado para a população já portadora de doença cardiovascular, onde também se interpreta a obesidade como um fator prognóstico negativo. No entanto, as evidências epidemiológicas demonstram o contrário, ou seja, obesidade tem um fator protetor ou pelo menos neutro nas pessoas que já são portadoras de doenças cardiovasculares. Pelo fato deste fenômeno ser contrário ao que se considera plausível, chama-se isso de Paradoxo da Obesidade.

A primeira possível explicação do Paradoxo é a presença de variáveis de confusão provocando este resultado aparentemente espúrio. Porém, só de pensar um pouco percebemos ser mais provável que variáveis de confusão contribuam para um pior, e não melhor, prognóstico nos obesos, pois estes têm maior prevalência de diabetes, hipertensão, dislipidemia, hábitos de vida inadequados (sedentarismo, tabagismo, dieta pouco saudável) e até mesmo nível sócio-econômico inferior aos não-obesos. Mesmo assim, obesidade é um fator protetor. Porque?
Uma variável de confusão que pode contribuir com este fenômeno é a idade, pois os obesos desenvolvem doença cardiovascular mais precocemente que os não obesos. Ou seja, os primeiros são mais jovens na época do evento cardiovascular. Mas o Paradoxo permanece após ajuste estatístico para a variável idade.

Em janeiro deste ano foi publicado no European Heart Journal mais uma evidência a favor do Paradoxo da Obesidade. Durante nove anos, foram acompanhados 4.880 pacientes submetidos a angioplastia coronária, sendo evidenciado que pacientes com sobrepeso apresentaram menor mortalidade, quando comparados ao pacientes com peso normal. Após ajuste para variáveis de confusão (idade, fatores de risco, nível sócio-econômico, extensão da doença coronária), os indivíduos com sobrepeso permaneceram com risco de morte menor do que os pacientes com peso normal (Harzard Ratio = 0.59; 95% IC = 0.39 – 0.90). Já os obesos apresentaram o mesmo risco dos pacientes com peso normal. Este estudo avaliou apenas mortalidade geral, não descrevendo mortalidade cardiovascular. Porém estudos prévios também mostram este fenômeno com a variável mortalidade cardiovascular (Meta-análise - Lancet 2006).

Intrigante, não? Então, sobrepeso é bom?

Devemos sempre ter em mente que os sistemas biológicos são complexos e nem sempre a lógica de um pensamento reducionista prevalece. Podem existir fenômenos biológicos que justifiquem o Paradoxo, ou seja, a associação entre sobrepeso e prognóstico favorável pode ser causal. Por exemplo, os autores do trabalho chamam atenção de que o tecido adiposo produz receptor solúvel do TNF, que pode neutralizar os efeitos deletérios do TNF-alfa.

Na verdade, esta é uma área que futuros trabalhos ajudarão a entender melhor. Em ciência, é importante que a observação não seja enviesada com uma visão preconceituosa. Ou seja, temos que partir da premissa de que é possível que o Paradoxo represente uma relação de causalidade entre sobrepeso e bom prognóstico. Isso pode ou não ser verdadeiro.

Enquanto isso, devemos reconhecer que em pacientes com doença cardiovascular o efeito da obesidade pode ser algo diferente do que indica o senso comum. Se por um lado, não vamos recomendar que as pessoas com doença cardiovascular ganhem peso, por outro lado, devemos evitar o mantra dogmático da perda de peso nesta população. Podemos ser ponderados e razoáveis na interpretação das particularidades de nossos pacientes com sobrepeso.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Religiosidade e Doença Cardiovascular

Religiosidade tem sido associada de forma consistente a melhores condições de saúde e estudos longitudinais demonstram que pessoas religiosas apresentam menor taxa de mortalidade geral quando comparadas a pessoas não religiosas. Do ponto de vista biológico, esta vantagem dos religiosos se justifica por hábitos de vida mais adequados neste grupo; por exemplo, religiosos fumam menos. Do ponto de vista espiritual, não temos evidências para afirmar que há razões divinas. Mas como eu já disse em outra postagem, ausência de evidência não é evidência de ausência. Prefiro deixar esta questão em aberto, depende de cada um.
E do ponto de vista cardiovascular, há benefício da religiosidade? Acaba de ser publicado na sessão ahead of print do Circulation o artigo Burden of Cardiovascular Risk Factors, Subclinical Atherosclerosis, and Incident Cardiovascular Events Across Dimensions of Religiosity: The Multi-Ethnic Study of Atherosclerosis (MESA). O MESA é um estudo de base populacional, que acompanha longitudinalmente 5.474 indivíduos de diversas etnias. Este trabalho não confirmou associação entre religiosidade e melhor prognóstico cardiovascular. A incidência de eventos cardiovasculares foi semelhante entre religiosos e não religiosos. Da mesma forma, o escore de cálcio coronário (marcador de aterosclerose) não foi associado a religiosidade em análise multivariada. Dentre os fatores de risco cardiovascular, religiosos fumavam menos, porém tinham mais obesidade. Um pode ter anulado o outro.

Devemos salientar que há estudos sugeriram redução de eventos cardiovasculares com religiosidade, portanto esta questão pode ser considerada controversa. O ideal seria randomizar os indivíduos para ser ou não ser religiosos, porém isso não é factível.

Em conclusão, de acordo com o estudo MESA, não há benefício em ser religioso no que tange incidência de eventos cardiovasculares.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Ablação de Fibrilação Atrial ao Vivo no Today Show

O equivalente ao Bom Dia Brasil nos Estados Unidos é o popular programa Today Show, da rede NBC. Nesta semana este programa resolver transmitir ao vivo uma ablação de uma idosa com fibrilação atrial paroxística, procedimento realizado em um hospital de Cleveland.
Será que é ético expor um paciente em rede nacional durante um delicado procedimento cardíaco? Mesmo a paciente tendo consentido, é uma questão complicada. Se houvesse uma grave complicação durante a transmissão ao vivo? Durante o procedimento o médico conversava com a repórter. Será que este estava concentrado no procedimento ou estava mais preocupado com sua aparição em rede nacional?

São exatamente estas estratégias de marketing que seduzem a população com base em sensacionalismo, em detrimento de evidências científicas. Nesta reportagem o eletrofisiologista afirma que o procedimento é 90% eficaz. Mentira, ensaios clínicos demonstram que o procedimento resolve fibrilação atrial paroxística em 60% dos casos. Muito melhor que terapia farmacológica, é verdade. Porém muito diferente de 90%. A repórter afirma que a radiação recebida pela paciente é desprezível, outra mentira. Tudo isso é o sensacionalismo marqueteiro.

Mas não é só nos estados Unidos. Já vi até na coluna social de A Tarde “propaganda” sensacionalista sobre novo equipamento dignóstico que chegou em hospital da cidade. Na coluna social, o que uma coisa tem a ver com a outra?

Veja crítica embasada em evidências a respeito da reportagem da NBC que um eletrofisiologista americano colocou em seu blog.

Medicina Baseada em Ervas



Publicado esta semana no Journal of the American College of Cardiology uma revisão sistemática a respeito dos efeitos cardiovasculares de ervas utilizadas como terapia complementar. Este artigo mostra diversas ervas possuem efeitos cardiovasculares e interações medicamentosas indesejadas. Ervas predispõem a sangramento, hipotensão, hipertensão, taquicardia, efeitos neurológicas, etc. Além disso, nenhumas destas ervas tem benefício cardiovascular comprovado. Já comentamos em post anterior que um recente ensaio clínico randomizado mostrou que Ginkgo Biloba não melhora função cognitiva. Da mesma forma, um ensaio clínico demonstrou que alho não reduz colesterol, como muitos pensam.

O pior problema vem do fato das ervas serem consideradas alimentos e não drogas. Isso faz com que ervas não estejam sujeitas às regras dos medicamentos: antes da comercialização, não há exigência de comprovação de segurança, nem eficácia; não há controle de qualidade a respeito dos métodos de fabricação e armazenamento; não há conhecimento adequado a respeito de interações com medicações; falta vigilância de efeitos adversos pós-marketing; e permitem-se estratégias de marketing não éticas, que utilizam falsa propaganda em revistas, rádio, televisão.

Apesar de todas estas deficiências, há uma falsa percepção coletiva de que produtos naturais são mais seguros. Tem sido vertiginoso o crescimento do consumo de ervas nos Estados Unidos, e (pasmem) o número de visitas a médicos complementares supera o número de visitas a médicos tradicionais, com gasto pessoal com medicamentos alternativos superando o gasto pessoal com tratamento tradicional (vide figura).

A alternativa da evidência científica é o mito. Medicina baseada em ervas é medicina baseada em mito.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Dieta Hipossódica – Mito ou Evidência?


Recentemente comentamos sobre o artigo do New England Journal of Medicine, que estima o benefício populacional da dieta hipossódica. Exatamente, é uma estimativa, pois não há dados concretos sobre redução de eventos cardiovasculares obtidos com a dieta hipossódica. Exceto em insuficiência cardíaca, não há ensaios clínicos randomizados que avaliam o benefício clínico da dieta hipossódica, comparando com a dieta usual. Só existem ensaios clínicos randomizados que avaliam o efeito hipotensor da dieta hipossódica. Ou seja, o que sabemos é que esta dieta reduz a pressão arterial, uma variável fisiológica. Se este efeito fisiológico leva a um benefício clínico, é outra história.
Variáveis fisiológicas ou laboratoriais são chamadas de desfechos substitutos. Supõe-se que o efeito em um desfecho substituto venha a provocar um benefício clínico, mas isso não é garantido. Por exemplo: há drogas que reduzem arritmia, mas aumentam morte súbita (Flecainide); há drogas que aumentam fração de ejeção do ventrículo esquerdo, mas aumentam mortalidade em pacientes com insuficiência cardíaca (Vesnarinone); há drogas que aumentam o HDL-colesterol, mas aumentam mortalidade (Torcetrapib); há drogas que controlam hipertensão, mas aumentam eventos cardiovasculares (Doxasozin); há drogas que reduzem peso, mas aumentam eventos cardiovasculares (Sibutramina). Etc.

Acredita-se que reduzindo a pressão arterial com a dieta, haja redução de eventos cardiovasculares. A estimativa feita pelo artigo do NEJM é baseada no benefício clínico do efeito hipotensor de certas drogas. Por isso é uma extrapolação do que acontece com as drogas. Esta ausência de certeza foi tema de um comentário publicado no Journal of American Medical Association nesta semana. Que avalie o efeito clínico da dieta hipossódica, só há estudos observacionais. E sabemos que os estudos observacionais são sujeitos às variáveis de confusão: foram os estudos observacionais que indicaram benefício cardiovascular da terapia de reposição hormonal, dado derrubado pelos ensaios clínicos, que mostraram justamente o contrário. Estudos observacionais mostraram benefício cardiovascular da Vitamina E, dado também anulado pelos ensaios clínicos. O mesmo pode ocorrer com a dieta hipossódica, pois as pessoas que comem menos sal provavelmente têm outros hábitos favoráveis à saúde. Estes hábitos são variáveis de confusão.

Mesmo assim, os dados dos estudos observacionais de dieta hipossódica são controversos: há 6 estudos sugerindo benefício, 5 estudos sugerindo efeito neutro e 4 estudos que mostram malefício desta dieta. Alguns inclusive sugerem o padrão de curva J, onde doses baixas são benéficas, mas doses muito baixas de sal são maléficas.

Desta forma, precisamos reconhecer a limitação desta evidência e ponderar nossas decisões no consultório e nossas recomendações de saúde pública. Devemos pedir para os pacientes não exagerarem no sal, mas não temos evidência para exagerar nesta recomendação.
Inclusive minha sugestão no post anterior a respeito da necessidade de medidas efetivas de saúde pública pode ter sido exagerada e não embasada em evidência. Melhor do que propor medidas de saúde pública imediatas, devemos propor a realização de ensaios clínicos randomizados para resolver esta questão.

Análise de Subgrupo: quando acreditar



Há dois tipos de análise de subgrupo. Uma confiável e outra não confiável.

A análise confiável é aquela que vem de um estudo onde o resultado da amostra total foi positivo. Por exemplo, um ensaio clínico mostra que a droga é benéfica. Depois disso, se faz análises de vários subgrupos para avaliar a consistência deste resultados de acordo com as características dos pacientes. Este foi o caso estudo OASIS-6, onde o Fondaparinux foi superior ao controle e depois os autores testaram os subgrupos, mostrando que no caso dos pacientes submetidos a angioplastia primária este resultado não é consistente. Veja primeira figura.
A outra situação, comumente encontrada em ensaio clínicos é representada pela segunda figura. Ocorre quando o estudo não mostra benefício da droga na amostra total e os autores ficam tentando desesperadamente encontrar algum subgrupo onde este efeito esteja presente. Neste caso, um resultado positivo pode ser devido ao acaso decorrente das múltiplas comparações. Sempre deve prevalecer o resultado da amostra total.

Falaremos mais a respeito de análises de subgrupo em posts futuros, mas este é o critério principal para julgar esta questão.

Fondaparinux no IAM com Supradesnível do ST?

Na mesma época do estudo OASIS-5, foi publicado o OASIS-6 no Journal of American Medical Association, que randomizou os 12.000 pacientes para Fondaparinux ou heparina não fracionada. O estudo relatou redução significativa de morte ou infarto com 30 dias (desfecho primário), sem diferença em sangramento. Este benefício se limitou aos pacientes que fizeram trombólise, sendo que os pacientes submetidos a angioplastia primária tiveram uma tendência a benefício no grupo heparina.
Então, devemos usar Fondaparinux com trombolíticos?
O problema deste estudo é que o Fondaparinux não foi comparado à melhor terapia adjunta ao trombolítico, que é a Enoxaparina. Lembro que de acordo com o estudo Extract-TIMI a Enoxaparina é superior à heparina não fracionada, no caso de pacientes trombolizados. Portanto, podemos considerar que o OASIS-6 é um estudo com grupo controle desatualizado, perdeu o rumo da história. Não por culpa dos pesquisadores, mas sim porque o Extract-TIMI foi publicado em 2006, no mesmo ano em que o OASIS-6 foi publicado.
Desta forma, permanecemos com Enoxaparina associada a trombolíticos e heparina não fracionada no momento da angioplatia primária. Fondaparinux é para síndromes coronarianas agudas sem supradesnível do ST.
Que os não cardiologistas desculpem nossa conversa de anticoagulantes, mas precisávamos relembrar o resultados destes ensaios clínicos antes do lançamento da droga. Se não, ficamos na mão dos marketeiros.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Lançamento do Fondaparinux: a Morte da Enoxaparina?

A Glaxo-Smith-Kline está convidando vários médicos “formadores de opinião” para o lançamento do Fondaparinux (Arixtra) em um hotel cinco estrelas de São Paulo. Desta forma, vamos aproveitar essa oportunidade para relembrar as evidências científicas a respeito deste novo anticoagulante no tratamento de síndromes coronarianas agudas sem supradesnível do ST. Afinal, a gente aprende mais revisando as evidências do que participando de eventos de marketing.

Fondaparinux é novo um anticoagulante sintético que inibe a ação do fator X ativado, via ativação da antitrombina III. Esta droga não inativa a trombina, nem atua sobre plaquetas. O principal ensaio clínico em síndromes coronarianas agudas é o OASIS-5, publicado em 2006 no New England Journal of Medicine. Este estudo randomizou 20.000 pacientes com síndromes coronarianas agudas sem supradesnível do segmento ST para Fondaparinux 2.5 mg SC 1 vez ao dia ou Enoxaparina 1 mg/Kg 12/12h, ambos durante a fase aguda. Ficou demonstrada não inferioridade do Fondaparinux em relação ao desfecho primário de benefício (morte, infarto ou isquemia refratária durante internamento) e maior segurança desta droga em relação a sangramento maior (desfecho primário de segurança = 2.2% vs. 4.1%, P menor que 0.001). A menor incidência de sangramento esteve presente tanto em pacientes submetidos a angioplastia, quantos em pacientes tratados clinicamente.

Houve relato de maior trombose de cateter em pacientes submetidos a angioplastia, porém foi um problema de pequena magnitude em termos absolutos e este não foi um end-point primariamente definido, portanto não há certeza de ausência de casualidade. Mesmo assim, o fabricante passou a orientar o uso de heparina associada ao Fondaparinux durante angioplastias.

E agora vem a pergunta que não quer calar: ainda existe algum espaço para a Enoxaparina, a antiga estrela que está sendo desbancada por uma nova estrela? A relevância do benefício de prevenção de sangramento é modesta (NNT = 50), o que gera a questão de custo-efetividade. Embora de benefício modesto, em alguns subgrupos de maior risco para sangramento a droga faz mais diferença. Por exemplo, em pacientes com insuficiência renal (CC menor que 30 ml/min) a diferença em sangramento foi ainda maior (2.4% vs. 9.9%). Por outro lado, em pacientes com baixo risco de sangramento, provavelmente a magnitude do benefício em segurança seria desprezível. Devemos lembrar do princípio de que a magnitude de um benefício demonstrada em um ensaio clínico é uma média de todos os pacientes; na verdade o benefício individual varia em cada paciente e é proporcional ao risco do evento que estamos querendo prevenir.

Desta forma, concluímos que a preferência pelo Fondaparinux ocorrerá quando o risco de sangramento for moderado a alto. Para tomada de decisão, devemos utilizar escores preditores de sangramento na admissão do pacientes (calculadora). Para pacientes de baixo risco de sangramento, caso haja diferença de preço significativa, a preferência será pela Enoxaparina, principalmente em hospitais públicos.

Vamos acompanhar atentamento qual será o custo do Fondaparinux. Há rumores de que será lançado com o mesmo custo do Clexane. Porém cairá em breve a patente do Clexane, o que vai reduzir mais seu custo.