Leio a Veja, para mim é fonte razoável de informações sobre política, economia, cinema, arte em geral. Gosto da revista, porém quando leio uma reportagem médica (o único tipo de assunto que posso julgar de um patamar superior), fico a questionar se o que estou lendo nos outros tópicos tem tão pouca acurácia como o que leio sobre saúde. Será que o que leio sobre economia é tão limitado (ou enviesado) como o que observo nas reportagens sobre saúde? Isso é importante, pois estas reportagens modelam o pensamento coletivo e acabam influenciando a forma como a medicina é exercida. Principalmente quando a reportagem é de capa da Veja, a principal revista do país.
Nesta semana, a reportagem de capa é uma clara defesa das drogas anorexígenas, motivado pela potencial suspensão da Sibutramina pela ANVISA. Já escrevi três vezes neste Blog sobre a Sibutramina (1, 2, 3), mas sou obrigado a voltar ao assunto pela quarta vez. A eloqüente capa da Veja diz:
Remédios para emagrecer. Por que é ruim proibir a venda. Milhões de brasileiros em guerra com a balança dependem destes medicamentos para perder peso e garantir uma boa saúde. Vamos analisar cientificamente esses dois itens: saúde e perder peso.
Primeiro, o marcador mais importante de saúde é a incidência de eventos clínicos. O ensaio clínico que está motivando a suspensão da Sibutramina no mercado é o SCOUT, publicado no New England Journal of Medicine em 2010. Foi um ensaio clínico grande, desenhado para mostrar redução de eventos cardiovasculares com a droga redutora do peso. Para mostrar redução de eventos com mais facilidade, os investigadores selecionaram uma amostra de pessoas mais predispostas a eventos cardiovasculares. Pois bem, o resultado foi o contrário do esperado (como muitas vezes acontece em medicina): a droga aumenta a incidência de infarto e AVC. Isso é “garantir uma boa saúde”, como diz a capa da Veja?
Alguns argumentam (sem evidências consistentes) que não teria problema se a droga fosse usada em pacientes de menor risco cardiovascular. Mesmo se isso fosse verdade (não sabemos), não justifica o uso da droga, pois não há benefício clínico demonstrado nestes pacientes? O que justifica o uso de uma terapia é o benefício e não a simples ausência de malefício. Impressionante como esse tipo de argumento é recorrente, ou seja, se basear em uma eventual ausência de malefício para justificar o uso.
Quanto ao malefício, de fato não sabemos se existe risco em pacientes de menor risco. Porém, uma vez demonstrado malefício no SCOUT, só podemos negar o malefício em outro tipo de população se demonstrarmos segurança cientificamente. Não apenas supor. A segurança em pessoas de baixo risco é só uma hipótese. Além disso, obesos não são pessoas exatamente de baixo risco, pelo menos é o que dizem.
Falar que traz saúde é uma inverdade. O argumento certo a favor da droga seria qualidade de vida. Aí a gente deve considerar a segunda parte da frase trazida pela capa de Veja: “perder peso”. Quanto de peso as pessoas perdem ao usar Sibutramina? Essa é uma pergunta central nessa discussão, portanto nada como um ensaio clínico randomizado para responder essa pergunta. A resposta de acordo com o ensaio clínico SCOUT é 4.3 Kg perdidos em 3 anos de tratamento. Não parece ser exatamente um benefício de magnitude suficiente para justificar o uso frente a aumento de risco cardiovascular ou ausência de conhecimento a respeito da segurança.
De posse destas evidências científicas, não dá muito para entender o porquê de tanta controvérsia, se não pensarmos em conflitos de interesse. É sempre a mesma história, quando um ensaio clínico bem desenhado não dá o resultado que as pessoas querem, justificativas estapafúrdias são utilizadas com objetivo de rejeitar a evidência científica.
Há alguns anos o Rimonabant foi capa da Veja e Istoé ao mesmo tempo, quando do lançamento da droga. A droga foi lançada, médicos prescreveram, presentes foram distribuídos pelo laboratório responsável. Foi um oba oba, se falava em cura da obesidade, sem evidências científica a respeito de desfechos clínicos. A droga foi lançada no Brasil, nunca liberada pelo FDA. Meses depois, a ANVISA suspendeu a medicação, devido a efeitos colaterais na esfera do humor. Não precisava ter passado pelo constrangimento.
O que a ANVISA está fazendo agora nada mais é do que medicina baseada em evidências. A ANVISA não praticou medicina baseada em evidências quando aprovou a Sibutramina, agora está se corrigindo. Ainda não está decidido, mas tudo indica que a droga será suspensa.
Por fim, a pergunta que não quer calar é o que a Veja está ganhando com tamanho lobby a favor dessa droga? Gosto da Veja, principalmente das opiniões políticas que lia durante o governo Lula. Mas tenho que concordar com meus amigos petistas, a Veja parece mesmo tendenciosa.