sexta-feira, 2 de abril de 2021

Manual de Desfechos: O Elo Perdido das Evidências


 

Este texto foi escrito a partir do conteúdo que gravei para o episódio do MBE Podcast dedicado a “Desfechos”. A densidade daquele episódio tornou evidente a necessidade de que as ideias fossem colocadas no papel para organizar o pensamento e ser fonte de consulta. Ao final, percebi que o texto se tornou um tratado de várias postagens. Assim, para tornar o processo de leitura mais leve e prazeroso, publicaremos os diferentes tópicos na sequência dos próximos dias. 


A escolha dos desfechos em estudos clínicos possui implicações importantes na interpretação do significado de um trabalho científico. A crescente preocupação com critérios tradicionais de risco de viés não tem sido acompanhada por um aprimoramento na utilização do desfecho adequado para a pergunta do trabalho. Este descolamento é um dos “elos perdidos da medicina baseada em evidências”. 


Trabalhos classificados como baixo risco de viés ou de erros aleatórios podem ter confiabilidade ou utilidade comprometida a depender do desfecho escolhido. E não me refiro à escala de importância clínica do desfecho, refiro-me à confiabilidade das conclusões. 


Este texto constitui um manual de interpretação, no intuito de estreitar a lacuna entre a escolha e o real significado dos desfechos. 

 

O Significado Conceitual dos Desfechos

 

A função primordial da ciência é descrever as leis da natureza. Portanto, o pensamento científico em essência é conceitual, se refere mais a propriedades do que a ações. É mais a respeito da floresta do que das árvores caracterizadas pelos desfechos. 


O paradigma dos ensaios clínicos randomizados, que testa um conceito ao comparar ação versus inação, enviesa a mente do consumidor de ciência para a confusão entre ciência e "política". Ciência não determina "política", serve de norte para a escolha da "política", que depende de outros fatores. Aqui me refiro a "política" em um sentido maior, que pode ser traduzida em decisões clínicas individuais ou condutas em saúde coletiva. 


 Na prática clínica (política), desfechos são o fim. Mas em um estudo científico, desfechos são apenas um meio para explorar conceitos. A confusão entre pensamento clínico e científico promove a equivocada interpretação da finalidade científica dos desfechos. 


 Diferente do senso comum, o significado de desfechos em estudos clínicos é mais conceitual do que pragmático. Na verdade, desfechos são fundamentalmente ferramentas científicas para testes de conceitos. Por exemplo, ao avaliar se um tratamento para COVID-19 reduz o desfecho primário de tempo de internamento, o objetivo primordial da escolha deste desfecho não está sem saber primariamente o impacto da conduta no tempo, mas em usar essa variável para testar se o tratamento tem um efeito benéfico no curso da doença. 


 Costumamos falar que há desfechos substitutos e desfechos clínicos. Na verdade, os desfechos clínicos também são substitutos de um conceito maior: controle ou prevenção da doença. Na medida em que, por exemplo, um tratamento melhora o tempo de internamento, o significado conceitual está na melhora do curso da doença (eficácia). 


 Desfechos não são entidades isoladas, com vida própria, são apenas um reflexo do status do paciente. É justamente a interpretação dos desfechos como entidades que causa equívocos de interpretação. 

 

O Significado Interconectado dos Desfechos

 

Vamos continuar no exemplo do tempo de internamento. Guardando as precauções de risco de viés (tempo de internamento é um desfecho manipulável de forma não intencional pelo médico, portanto é obrigatório que seja avaliado em estudo cego), se uma intervenção promover verdadeira redução no tempo de internamento, o conceito é de melhora clínica. 


 Se há prova conceitual de melhora no curso da doença, outros desfechos relacionados ao curso da doença também terão resultados mais favoráveis. Assim, desfechos diferentes não são descolados de significado. Este é o princípio da interconexão entre desfechos clínicos.


 Um dos exemplos claros da equivocada percepção de descolamentos entre desfechos é quando se utiliza a ótima ferramenta GRADE para avaliar diferentes desfechos em sequência, como se cada um tivesse uma vida independente, gerando significados diferentes. 


 Outro exemplo recente: a droga de repropósito remdesivir teve a eficácia originalmente testada para COVID-19 em um ensaio clínico (NEJM 2020, ACTT-1 Study) de tamanho moderado, características adaptativas e que sofreu modificação de desfecho primário em seu curso. Este estudo concluiu por eficácia com base na redução de tempo de sintomas. Meses depois o estudo SOLIDARITY (NEJM 2020), cujo tamanho amostral foi dimensionado para mortalidade como desfecho primário, não detectou qualquer benefício da droga. 


 Uma equivocada interpretação, derivada da ilusão de descolamento dos desfechos, tem sido a que concilia os resultados dos estudos, como se estivessem avaliando fenômenos diferentes: a droga reduz tempo de sintomas, porém não tem impacto tem mortalidade. Na realidade, a interpretação mais provável é a de que um dos estudos está errado. Como sabemos, por vários motivos, a maioria das evidências da literatura falham em veracidade. Em uma análise científica bayesiana, o primeiro estudo aumentou probabilidade de eficácia, porém os segundo estudo (que seria confirmatório) reduziu essa probabilidade para o baixo nível original. 


 Precisamos de uma visão mais ampla (conceitual, propriedade): simplesmente, há benefício?


E esse benefício é testado pelo desfecho principal de cada estudo. Os desfechos secundários tendem a acompanhar o primário, ajudando na compreensão. 


 A falta de percepção do caráter interconectado dos desfechos é responsável por equívocos não apenas quando se compara estudos, mas também erros de interpretação interna dos estudos:


 -   “O tratamento não promoveu melhora no desfecho primário, mas beneficia um desfecho secundário”.

 Em um estudo bem desenhado, desfechos primários e secundários são interconectados. O desfecho primário é o melhor marcador do conceito, enquanto secundários sofrem mais de erros aleatórios e sistemáticos. Portanto, ao ver resultados opostos entre desfechos (primário e secundário), não devemos atribuir diferente significados a diferentes desfechos. Pelo contrário, eles falam do mesmo fenômeno, e se houver uma diferença de resultado resulta mais provavelmente de diferença em veracidade. 

 -   “Vacina reduz risco de COVID-19, mas não está provado que reduz risco de morte.”

-   “Estatina reduz infarto, mas não está provado que reduz mortalidade em prevenção primária.”


Se COVID-19 mata, um tratamento que melhora o curso da COVID-19 promoverá redução de morte. Se infarto mata, reduzir infarto reduzirá morte. O primeiro exemplo é bastante atual (vide BMJ), enquanto o segundo é tradicional questionamento dos ativistas contra a terapia redutora do colesterol. 


Nestes casos, a dúvida não está na existência do efeito em um desfecho hierarquicamente superior (morte). A dúvida pode estar no tamanho do efeito, principalmente o absoluto, que depende da incidência do desfecho. Caso morte seja pouco frequente, o efeito absoluto em morte será muito menor, às vezes indetectável. Porém isso não quer dizer que não existe esse efeito.


Como podemos demonstrar redução de mortalidade em um tipo de paciente que quase não morre (assintomáticos em prevenção primária de doença aterosclerótica)? Por outro lado, sabemos que, mesmo minimamente, haverá impacto em morte. A questão maior está na racionalidade: se o paciente quase não morre, o objetivo do meu tratamento não estará na morte. Não importa procurar essa evidência.


O princípio da interconexão evita equívocos de interpretação de desfechos em estudos diferentes e desfechos diferentes do mesmo estudo. 



Próximas Postagens:

Uso Inapropriado do Desfecho Óbito

Óbito Geral é um Desfecho Composto (pragmático, não conceitual)

 Desfecho Substituto

 Nem todo Desfecho Laboratorial é Substituto

 Profecias Autorrealizáveis

 Desfechos Composto

Desfechos Compostos Antagônicos

Desfechos Cumulativos

 Desfechos Secundários - pra que servem?

 ------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Vejam discussão correlata em nosso MBE PodcastCanal do YouTube e tweeter

Conheçam nosso curso online de MBE, que traz o conhecimento que suporta nossas reflexões metodológicas. 


2 comentários:

  1. Excelente texto! Parabéns pela forma clara e didática que escreves.
    Me fez lembrar dos RCT's que regem a conduta atual de trombolisar os pacientes com AVCi (NINDS, ECASS III, WAKE-UP e EXTEND). Todos eles mostram benefício funcional (mRS) mas não demonstra redução de mortalidade. Sempre presenciei especialistas afirmarem que trombólise diminui rankin mas não diminui mortalidade no AVCi. Pelo que entendi do seu texto, esta frase não é de todo verdadeira e esses resultados encontrados devem ser falta de acurácia na análise do desfecho secundário (mortalidade). Contudo, a mortalidade é bastante alta no AVC, diferente de outras doenças, inclusive a COVID. Então, como interpretar esses resultados? Considerando que trombólise de fato é benéfica no AVCi, dimiuindo rankin em 3 meses, a mortalidade também não deveria seguir essa mesma tendência? Te peço ajuda nesta questão, Luis. Obrigado desde já!

    ResponderExcluir