Já comentamos em postagem anterior que, na doença coronariana estável, o tratamento medicamentoso tem eficácia semelhante à angioplastia, em relação aos desfechos de óbito ou infarto. O único benefício é na melhora da angina, ou seja, qualidade de vida. Por outro lado, o paradigma vigente na comunidade cardiológica é que em pacientes com síndromes coronarianas agudas (SCA) a realidade é outra, ou seja, angioplastia é melhor que tratamento clínico na prevenção de desfechos clínicos importantes. No entanto, na semana passada foi publicado no Journal of the American College of Cardiology um estudo que contradiz este paradigma. Trata-se do seguimento de 5 anos do Ensaio Clínico ICTUS, aquele que randomizou 1.200 pacientes com SCA sem supradesnível do segmento ST para cateterismo de rotina seguido de angioplastia quando indicado (estratégia invasiva) ou cateterismo apenas em pacientes que não estabilizaram ou com teste funcional positivo, seguido de angioplastia (estratégia seletiva). O estudo mostrou que a estratégia invasiva não previne infarto espontâneo (não relacionado a angioplastia) ou morte, quanto comparada à estratégia seletiva. E mais, este resultado é consistente nos grupos de risco baixo, intermediário e alto.
Estes resultados são diferentes dos dois outros grandes ensaios clínicos voltados para esta questão: o FRISC e o RITA-3, ambos realizados no final da década de 90. O seguimento de 5 anos do FRISC não mostrou redução de mortalidade, mas mostrou redução de infarto. O seguimento de 5 anos do RITA-3 mostrou redução de morte cardiovascular e infarto. Análises de subgrupo demonstram que estes benefícios se limitam a pacientes de maior risco.
Mas qual onde está a verdade? No ICTUS ou nos FRISC/RITA-3.
Primeiro, estes estudos discordam basicamente nos pacientes de risco alto, pois o FRISC e o RITA-3 também não mostravam benefício nos subgrupos de menor risco. Nos pacientes de risco alto, todos estes estudos estão certos para suas épocas. A diferença é que o FRISC e o RITA-3 foram realizados em uma era quando o tratamento farmacológico era menos efetivo. Por exemplo, naquela época não se utilizava Clopidogrel, a terapia com estatina após síndromes coronarianas agudas não tinha benéfico comprovado, e os principais estudos comparando enoxaparina e heparina não fracionada ainda não haviam sido publicados quando do início da randomização.
Isso nos faz concluir que à luz do tratamento farmacológico atual (ICTUS), não há benefício da estratégia invasiva em relação à prevenção de infarto e óbito cardiovascular. Por outro lado, há um benefício da estratégia invasiva demonstrado pelo ICTUS, que é a redução na necessidade de rehospitalização por sintomas recorrentes, ou seja, mais uma vez qualidade de vida.
Vejam que interessante: é a mesma coisa demonstrada pelo estudo Courage em pacientes estáveis, o benefício é em qualidade de vida. O paradigma não é diferente em síndromes coronarianas agudas! Na verdade os dados a respeito de procedimentos de revascularização em geral são sempre mais consistentes quando o desfecho é controle de sintomas e menos consistentes quando os desfechos são infarto ou morte. O que reduz eventos cardiovasculares maiores é o tratamento farmacológico.
E é fácil de explicar o porque: a doença aterosclerótica representa um acometimento difusa nas artérias coronárias e não um problema focal. Quanto se faz angioplastia, o tratamento é limitado a uma placa aterosclerótica que foi dilatada, sobrando umas 200 placas menores que continuaram da mesma forma. Por outro lado, quando se administra uma droga todas estas 201 placas são tratadas.
E então, esta evidência quer dizer que não devemos realizar angioplastia em pacientes com SCA? Claro que não. Primeiro, nos pacientes que não estabilizam, este é o melhor caminho. Segundo, os pacientes se beneficiam do controle dos seus sintomas e isso previne reinternamentos. Na verdade, quando se opta por uma estratégia seletiva, isso não quer dizer contra-indicar cateterismo ou revascularização, pois de acordo com o protocolo, 54% dos pacientes acabam recebendo revascularização.
Por outro lado, a informação de que não há benefício em morte e infarto, nos permite contemporizar a realidade do paciente, podendo decidir pelo mais ou menos invasivo. Em pacientes de alto risco, a tendência é ser mais invasivo, porém podemos ser mais conservadores naqueles com maior risco de sangramento, pré-dialíticos, anatomia previamente conhecida e complexa, considerando também a opção do paciente. Sabendo que na maioria dos pacientes o real benefício se limita a qualidade de vida, ficamos mais livres para uma decisão individualizada.
Não basta saber se um tratamento é ou não benéfico. Precisamos ir além e avaliar sempre o tipo de benefício e a magnitude deste benefício. Assim fica mais fácil tomar decisões baseadas em evidências.
Assim como o post anterior sobre o assunto, excelente tópico ao chamar a atenção de como a MBE quebra "universalismos terapêuticos" ao demonstrar qual conduta tem melhores desfechos primários em cada grupo. O conhecimento médico muda, reberando na abordagem terapêutica.
ResponderExcluirEsse post vai ser de grande ajuda nas discussões de emergências clínicas...
É uma pena que apesar de todas evidencias os serviços continuam implantando stents em geral pela indicaçao do hemodinamicista sem a presença do clínico.
ResponderExcluirA era dos stents revestidos trouxe um problema eterno ao Clínico.
Nenhum Oftalmo/Dentista/C.Geral opera sem retirar o Clopidogrel, mesmo numa simples Cirurgia de Catarata.
Temos que mudar nosso posicionamento em relação as indicações e reforçar o tratamento clínico.
O que desmoraliza é quando esse paciente tratado Clìnicamente cai num serviço e já volta com a conduta.
Essa cruzada-MDE ainda vai longe.
Wálmore